Arquivo para fevereiro \28\-03:00 2009

A Princesa e O Sapo

Era uma vez uma bela princesa de longos cabelos vermelhos e olhos cor de mel, que, em uma tarde ensolarada, após almoçar, decidiu sair para passear pelos arredores do castelo. Adentrou o denso bosque que lá havia, caminhou por longos minutos entre as árvores, provando frutos e observando pássaros, até que resolveu descansar e sentou-se sobre uma pedra ao lado de um lago.

– Olá, princesa. – disse uma voz inesperada; a princesa quase caiu na água com o susto, e olhou em volta procurando quem teria lhe falado. Tudo o que encontrou foi um sapo, que pulou mais para perto e continuou: – Ora, não se assuste! Pois sou eu apenas um pobre príncipe amaldiçoado por uma bruxa vil a terminar meus dias coaxando e pulando neste lago…

– Um príncipe? – já não havia mais susto nos olhos da moça, que agora brilhavam de curiosidade.

– Sim, um príncipe! – o sapo pulou um pouco mais para perto, os próprios olhos brilhando intensamente. – Herdeiro de um vasto reino em uma terra distante, preso neste infeliz corpo anfíbio. – virou o rosto para baixo, como que envergonhado; mas logo voltou-se outra vez para a princesa com um ar esperançoso. – Mas basta que uma nobre donzela me presenteie com um beijo e voltarei a minha forma verdadeira, livre para agradecê-la com a minha devoção e amor eternos!

A princesa pensou por alguns segundos, ainda um pouco relutante, então pegou o sapo nas mãos e beijou-o na boca. O que começou com um simples selinho, no entanto, logo aumentou em intensidade, e suas línguas passaram a trocar carícias a cada segundo mais apaixonadas. Ela apertava fortemente o sapo contra o rosto, esfregando e acariciando com os dedos sua pele úmida e escamosa; e ele se deixava apertar, usando o comprimento da sua língua para atingir pontos improváveis da boca da princesa.

Separaram-se, afinal, após longos e ardentes minutos, e ela o largou de volta no chão, esperando a transformação. Mas nada aconteceu.

– Tenho que confessar. – disse o sapo, ao ver a expectativa diminuindo no rosto da moça e transformando-se em decepção. – Menti sobre minha natureza; não sou nenhum príncipe amaldiçoado, apenas um pobre sapo falante. Tudo que queria era uma desculpa para beijar a dona de tão belo par de lábios… – e então sorriu, olhando diretamente nos olhos dela. – Mas vai dizer vossa excelência que não gostou?

A princesa não respondeu; apenas olhou para baixo e sorriu desajeitada, deixando o rosto preencher-se de um vermelho envergonhado. O sapo então pulou de volta para o lago, e desapareceu. Também a princesa logo resolveu voltar para o castelo.

Voltou ao bosque no dia seguinte, no mesmo horário, sentou-se sorridente na mesma pedra ao lado do lago, e esperou. Passou uma hora, então duas, e três, mas o sapo não apareceu. O sorriso desfez-se em uma expressão de tristeza, e ela retornou ao castelo.

E todos os dias, por longos anos, ela voltou ao local no mesmo horário, e esperou o retorno do sapo. Mesmo depois de velha, já rainha, casada com um belo príncipe de um reino distante, ainda voltava ao lago sempre que podia, e por horas observava em silêncio a superfície da água, deixando-se levar por um olhar distante e sonhador.

Meu Doce Bebê Dragão

Era o meu tipo favorito de inverno – aquele que está acabando. Assim me diria o calendário, ao menos, se eu tivesse um calendário. Um do ano corrente, quer dizer. O do ano anterior que estava na parede não me diria muita coisa. Mas eu deixava ele lá do mesmo jeito. Não era como se houvesse algo melhor para pôr no lugar. Pelo menos assim eu podia esquentar minhas noites olhando para a jovem de orelhas pontudas, cabelos púrpuras e dotes generosos que ilustrava o último mês. Tanya, é o nome que eu dei para ela. Minha rotina se resumia a olhar para seus olhos pentrantes por longas horas, um exercício diário de caça de baratas, e tirar o pó da pequena plaqueta que havia sobre a mesa, onde se liam as palavras Gary Abas-Largas, Detetive Particular.

Esse é o meu nome. Gary Abas-Largas. Não tem nada a ver com o meu chapéu. Peculiaridades dos nomes halflings, vai entender. Detetive particular é a minha profissão. Não é a melhor delas, mas paga as contas. Às vezes. Não é como se eu soubesse fazer algo melhor. Em anos viajando pelo mundo, explorando masmorras e enfrentando monstros não existe uma variedade muito grande de habilidades a se aprender. Então um dia você está arriscando a vida em um combate contra uma família de gigantes para salvar uma vila ingrata, e no outro está investigando um caso de adultério entre casais goblins no bairro mais nojento de Valkaria. Coisas da vida.

Vida, por sinal, que não estava indo muito bem naquele inverno. Tempos difíceis. Poucos casos. Nenhuma esposa goblin pulando a cerca. Pelo menos isso significava que eu não precisava sair muito e enfrentar o frio lá fora. Era o que pensava então, tentando adormecer sobre a cadeira, quando um bam-bam-bam forte como um martelo me acordou e tirou em um pulo repentino o meu traseiro do seu repouso relaxante.

Ouvi o bam-bam-bam mais uma vez e me virei para o único lugar de onde ele poderia vir: a porta de entrada. Caminhei até lá sem pressa, posicionei o banco que uso para ficar na altura da portinhola, anotando mentalmente pela sexta vez na semana que precisava trocá-la por uma de altura mais adequada às minhas proporções, e a abri para ver quem estava do outro lado. Fechei a portinhola, esfreguei bem os olhos, e a abri de novo: não, eu não tinha visto errado.

Do outro lado estavam dois objetos grandes e redondos, apertados um contra o outro por um tecido vermelho em forma de V. Desci do banco e abri a porta, sendo imediatamente tomado por uma onda de calor que invadiu a sala quando a dona daquele par se pôs para dentro. Tinha quase dois metros de um corpo soberbamente esculpido em proporções generosas sem ser exageradas, e apertado de forma insinuante em um longo vestido vermelho. Seus cabelos também eram vermelhos, parecendo emanar todo aquele calor improvável para o inverno que se abatia sobre o lado de fora, e os olhos cor de mel brilhavam tão intensamente que quase tornavam desnecessárias as velas dos candelabros que iluminavam a sala. Completava o conjunto um par de lábios carnudos como morangos silvestres, emoldurados em uma pele suave e rosada como a de um anjo flamejante.

– Me ajude! Por favor, me ajude! – dizia, aos prantos, enquanto me levantava e apertava contra o belo e caloroso par de seios que me chamara a atenção pela portinhola. Então notou que eu não conseguia falar naquela posição, e me soltou. Não que eu desse qualquer sinal de estar desconfortável.

– Em que posso ajudá-la, senhorita…? – perguntei, deixando espaço para que se apresentasse e lhe oferecendo uma cadeira para sentar. Meus olhos subiam indiscretamente pela sua perna esquerda exposta em uma longa abertura do vestido, terminando apenas poucos centímetros antes de chegar nos quadris. O calor que tomava o meu escritório era intenso, e era um feito e tanto de força de vontade que eu me contivesse e não me despisse ali mesmo, na sua frente.

– Larina. Meu nome é Larina. – ela disse, olhando firme nos meus olhos. Por pouco não me verti naquele mesmo instante em uma poça de suor sobre o chão. – Meus bebês… Meus pobres bebês… Eles… Eles… –  o pranto voltou incontrolável, e eu me aproximei para consolá-la. De pé ficava mais ou menos na altura do seus seios quando sentada, e era impossível não reparar na generosidade do decote que os sustentava porcamente, como se pudesse explodir a qualquer instante. Ela me agarrou e apertou outra vez contra eles. Me deixei envolver por aquele calor ardente, desejando passar ali o resto da estação. Mas logo me soltou novamente, e, entre lágrimas e soluços, terminou de explicar o caso.

Alguém havia seqüestrado os seus bebês, e ela queria que eu os encontrasse. Por que alguém faria algo assim com uma dama tão obviamente respeitável é algo que não pude entender, ou ela explicar. Mas aceitei o caso. O que mais podia fazer? Baixinhos como eu não resistem aos charmes e às pernas das mulheres altas. Ainda mais altas e ruivas.

E quentes. Muito quentes.

***

Resistindo aos pedidos suplicantes dos meus olhos azuis, Larina foi embora e me deixou sozinho com Tanya, as baratas e o frio da noite que chegava. Não me disse onde encontrá-la, mas prometeu voltar para saber do andamento do serviço. Algo que eu só podia torcer para acontecer logo. Agora, no entanto, era hora de dar início à investigação. Sem lugar melhor por onde começar, só havia um para onde ir: o Kobold Sarnento, provavelmente a pior estalagem da cidade, salvo por algumas encontradas nos cantos mais imundos da Favela Goblin. Mas não todas.

Peguei meu casaco e meu chapéu e saí em direção à ela. Eram apenas algumas quadras de caminhada do meu escritório. Não era uma área muito nobre, mas era o que eu podia pagar. Quando eu podia pagar. As ruas eram sujas e escuras, as poucas lamparinas no caminho pouco ajudando a enxergar mais do que alguns centímetros adiante. Mendigos e outras criaturas urbanas se encolhiam pelos becos, rodeados por ratos e kobolds. Dois garotos humanos se puseram no meu encalço, provavelmente esperando tirar algum lucro do meu tamanho diminuto, mas hesitantes demais para se arriscar de fato. Senti também que havia outra pessoa me seguindo, mas sempre que virava para ver quem era não estava mais lá. Não pude deixar de pensar que, enquanto os regentes e nobres se preocupavam com suas Tormentas e exércitos goblinóides, os subúrbios da cidade eram deixados para apodrecer à própria sorte. Mas o que se podia fazer? Assim era Valkaria, o coração do Reinado, a metrópole fantástica da aventura e das oportunidades.

Sim, claro. Se você for um aventureiro atrás de oportunidades.

As luzes e o barulho crescentes anunciaram a aproximação da estalagem. Entrei e avaliei o ambiente. Garçonetes gordas corriam das mesas para a cozinha e de volta para as mesas, tentando equilibrar bandejas com pratos e canecos entre espaços estreitos e mãos indiscretas. Humanos, anões, goblins, até mesmo um ogro e um minotauro, se espremiam e acomodavam pelo espaço disponível. Kobolds se esgueiravam entre as pernas dos clientes, aproveitando os restos de comida que caíam no chão. No palco, a cantora da noite se insinuava atrás do pedestal mágico de projeção da voz, lançando olhares convidativos para aqueles nas mesas próximas. A pele esverdeada sob o vestido vermelho, o rosto salpicado de pústulas e cicatrizes, e as presas no lábio inferior não deixavam dúvidas quanto à sua ascendência impura. Mas isso pouco importava: sob o feitiço daquela voz potente como ondas quebrando na costa em uma tempestade, e com gestos cuidadosos chamando a atenção para as partes certas, era impossível não se deixar fisgar pelo movimento hipnótico do seu corpo, com quadris que balançavam vagarosamente de um lado para o outro, e de novo, e de novo…

– Gary! – a voz que me libertou do transe era justamente uma das que eu esperava ouvir. Virei-me para encontrar um homenzinho da minha altura vestindo trapos de tecido remendados, com pele acizentada sem pêlos, orelhas pontudas e olhos negros que me fitavam com um ar de surpresa.

– Klaus, velho amigo! – respondi, caminhando na direção do goblin.

– Achei que ficaria o inverno inteiro hibernando no seu casulo.

– Você me conhece. Sempre disposto a congelar os pés por uma boa caminhada. – não era um exagero. Halflings não usam botas. Pés grandes e peludos demais. Se tanto, nos damos ao luxo de sandálias, se o chão estiver muito frio. Como, aliás, seria o caso. Se eu tivesse sandálias para usar.

Sentei-me ao lado dele no balcão e pedi uma cerveja. O atendente me serviu sem demora, em uma caneca suja como a latrina de um acampamento militar. De orcs.

– E então, como vão as coisas? – perguntei.

– Como sempre. Você sabe, trabalhando duro. Pagando as contas. – “trabalho duro”, para um goblin, normalmente no sentido de “atividades ilícitas”.

Tomamos alguns goles e trocamos palavras e novidades, antes que eu decidisse prosseguir para o assunto principal. Mas não sem notar primeiro a presença de um homem encapuzado que nos observava de uma mesa próxima, com o braço direito oculto por uma capa enquanto usava o esquerdo para segurar a caneca de cerveja. Havia mais alguém nos observando, estava certo disso, mas não conseguia descobrir quem era.

– O que você sabe sobre desaparecimento de bebês? – perguntei, enfim.

– Desaparecimento de bebês? – ele respondeu entre um gole e outro.

– Você sabe, aquelas coisas pequenas e irritantes que saem das mulheres. Além de halflings. E goblins.

– Por que a pergunta?

– Curiosidade. Ouvi falar de alguns casos assim recentemente.

Klaus me observou, curioso, por vários segundos. A curiosidade logo se transfigurou em dúvida, e então espanto. Ele sabia de alguma coisa.

– Desembucha. – falei, tomando outro gole de cerveja.

– Não sei de nada, Gary.

– Vamos, Klaus, eu te conheço. Você sabe alguma coisa e não quer…

– Gary Abas-Largas. – a voz de trovão que me interrompeu vinha de trás, e eu me virei para dar de cara com um homem negro de mais de dois metros de altura, os músculos apertados visíveis sob um elegante sobretudo de couro de trobo, e uma cabeça de touro com uma prótese de prata substituindo o chifre esquerdo. Na sua volta estavam dois meio-orcs, um ogro e um meio-elfo, todos igualmente elegantes e olhando de forma séria e desconfiada para o ambiente da estalagem.

– Tony Um Chifre. – respondi. Tony era um dos chefões do crime de Valkaria, um ex-aventureiro minotauro que, após se aposentar, estabeleceu um pequeno império no submundo da cidade com o tesouro que acumulara. Drogas, prostituição, comércio de pólvora e as armas para usá-la – tudo estava dentro do seu portfólio. A prótese que usava na cabeça, diziam, era de prata maciça, e substituía um chifre perdido durante sua época de aventuras. O que diz muito sobre quanto os minos valorizam essas coisas. – Imagino o que o trouxe a um lugar como este? – Tony tem sua própria estalagem, em uma área mais nobre e muito melhor freqüentada que o Kobold Sarnento. Só uma coisa o faria vir até um buraco imundo como este.

– Negócios, Gary. Negócios. – é claro. Negócios discretos, digamos assim. Provavelmente envolvendo grupos de aventureiros contratados. Tony sempre faz questão de lidar pessoalmente com eles. Nostalgia da juventude, imagino. Sendo também um ex-aventureiro, posso entender o sentimento. Apesar de não compartilhar. – Klaus, onde podemos falar da ninhada?

“Ninhada?”, pensei, traindo com os olhos meu súbito interesse, “como em ‘conjunto de filhotes’?”

Klaus me lançou um olhar assustado. Tony percebeu, e virou-se também na minha direção.

“Merda”, completei meu raciocínio.

– Senhores, me desculpem, mas acho que exagerei nos líquidos. – disse, levantando. – Acho que vou visitar as latrinas.

Deixei algumas moedas no balcão e me dirigi apressado para as ditas cujas. No caminho olhei rapidamente sobre o ombro e notei Moe e Joe, os dois irmãos meio-orcs, me seguindo. Chefões do crime são criaturas previsíveis. Então virei de volta para frente, a tempo de bater de cara em alguém que atravessou a minha fuga. Era o homem encapuzado que observava minha conversa com Klaus.

– Gary Abas-Largas? Precisamos conversar. – ele disse.

– Sem problemas, passe no meu escritório pela manhã. – respondi, tentando abrir caminho.

Ele tirou para fora da capa o braço direito, que vestia uma espécie de armadura metálica. Quanto o colocou sobre o meu ombro, no entanto, senti que tinha o peso de um item de ferro maciço.

Arkam Braço de Ferro! Olhei para cima, fitando assustado por longos segundos a sombra do seu rosto oculta pelo capuz. Então lembrei dos meus perseguidores e virei de volta para trás, bem a tempo de vê-los se aproximar em uma carga rápida. Arkam também os notou, e eu aproveitei o momento para me soltar e fugir por entre suas pernas. Corri até as latrinas, subi pela janela e pulei para o lado de fora. Em um último olhar para dentro da estalagem, vi Arkam bloqueando o ataque de um dos meio-orcs, enquanto rapidamente se colocava em posição de atacar o outro com o braço metálico. Não gostaria de estar na pele deles.

Uma vez em segurança, era hora de refletir alguns instantes. O que exatamente estava acontecendo aqui? Até mesmo o líder do Protetorado, o grupo de aventureiros particular do governo do reino, estava interessado. Precisava ser alguma coisa grande. E não só do meu ponto de vista halfling. Será que eu queria mesmo descobrir?

Tony, no entanto, mencionou uma “ninhada”. O que deixou Klaus assustado com a minha presença. Depois de ter me ouvido perguntar sobre seqüestros de bebês. Poderiam ser os bebês de Larina? O que Tony podia querer com eles? Não podia ir embora sem ter certeza. Devia isso à minha cliente. E eu posso não ser o maior defensor da moral, da tradição e dos bons costumes, mas eu tenho alguma ética no meu trabalho. Ou tento ter. Ainda mais quando a cliente é uma mulher. Alta. E ruiva. E quente.

Após um suspiro profundo, comecei a revirar o lixo no beco ao lado da estalagem.

***

Kobolds são uma praga. Ninguém, em Valkaria ou qualquer outro lugar onde eles existam, vai negar isso. Espalham-se por todos os cantos, vivendo na sujeira e espalhando doenças. Como ratos. Aliás, piores que ratos. Ratos são estúpidos. Kobolds podem não ser grandes gênios e intelectuais, mas são espertos o bastante para saber as vantagens que têm. E sabem usar armas. Nunca vi um rato com uma lança de pedra.

Por outro lado, eles têm suas utilidades. Para sobreviver e atacar estoques de casas e estalagens, cavam túneis e passagens entre elas. Pequenos demais para um humano ou elfo, até mesmo um anão. Para um halfling, no entanto, basta se ajoelhar e apoiar sobre as mãos e eles são perfeitamente utilizáveis. Sujos, apertados e nojentos, mas utilizáveis.

Agora tente dizer isso para o meu sobretudo. Iam ser dias até ele ficar utilizável de novo.

O túnel por onde segui terminava na sala de estoque do Kobold Sarnento. O lugar onde, eu esperava, Tony fosse pegar a sua ninhada, o que quer que ela fosse. Saí em meio a um conjunto de sacos de batatas e me escondi entre eles, em uma posição de onde pudesse ver a área central do aposento. Três pessoas já estavam lá – um elfo e dois humanos, um homem e uma mulher. O elfo tinha cabelos longos e loiros, vestia um manto esverdeado com um capuz abaixado atrás do rosto, e carregava um arco na mão e uma espada curta na cintura. O homem tinha cabelos castanhos curtos e um cavanhaque, vestia um conjunto de mantos acizentados, e carregava um cajado com uma espécie de jóia na ponta. A mulher era alta e morena, usava uma placa de metal sobre uma camisa de tecido, com uma espada presa na cintura, um pequeno escudo nas costas e uma caixa de madeira nas mãos. Notei que não havia nada das redondezas remotamente parecido com bebês, ou que pudesse escondê-los. Exceto, talvez, os sacos de batatas entre os quais me escondia.

Não parecia muito promissor. Pensava já em voltar pelo túnel dos kobolds, quando ouvi o barulho de uma porta se abrindo seguido de passos, e vi Tony, seus capangas e Klaus se juntando aos três. Trocaram algumas palavras que não pude ouvir, então a garota se aproximou e abriu a caixa. Subi discretamente sobre um dos sacos e me estiquei para tentar ver o seu conteúdo: envolto em alguns pedaços de panos chamuscados, estava um belo conjunto de meia-dúzia de…

Ovos?

Perdi meu equilíbrio e caí para trás entre os sacos de batatas, fazendo barulho suficiente para acordar um vampiro ao meio-dia. Me levantei apressadamente, xingando todo o Panteão e meia-dúzia de deuses menores de que me lembrei no momento, e me preparei para fugir, mas já era tarde: o meio-elfo capanga de Tony já havia me encontrado – como ele podia ser tão rápido? – e se preparava para me agarrar. Escapei com uma cambalhota por entre suas pernas e corri até a porta. Antes de alcançá-la, no entanto, fui parado pelo ogro, que me atirou com um tapa contra a parede. Ele então caminou até mim, me levantou e levou até Tony.

– Sr. Abas-Largas. – ele não parecia surpreso. – Imagino que errou o caminho das latrinas?

– Oh, elas não são por aqui? – fiz minha melhor cara falsa de bêbado. Que não era muito boa, exceto quando eu estava realmente bêbado. – Então me desculpem, já vou me retirar.

Tony ia responder alguma coisa, mas o elfo do grupo de aventureiros o interrompeu.

– Há mais alguém aqui. – disse, olhando com o canto do olho para o humano do grupo, que acenou com a cabeça e levantou o cajado com a mão direita enquanto gesticulava largamente com a esquerda e falava algumas palavras em voz baixa. A jóia na ponta do objeto emitiu um clarão de luz esverdeada, e em seguida todos se viraram na direção dos sacos de batatas. Lá estava uma mulher alta e ruiva, com um corpo generoso apertado de forma insinuante em um vestido vermelho, e olhos cor de mel surpresos com a súbita atenção que recebiam.

Larina. O que estava fazendo aqui?

– Meus b… – tentou dizer algo, mas antes de terminar o meio-elfo já estava atrás dela e a nocauteou com um golpe rápido sobre a nuca.

– Amarrem os dois. Depois descobriremos o que está acontecendo. – Tony falava com pressa, gesticulando para seus capangas. – Mort, pague os aventureiros e pegue a ninhada.

Klaus se aproximou e começou a amarrar meus pulsos, enquanto o meio-elfo trazia Larina para ser amarrada junto a eles. Só havia uma corda disponível.

– Você não imagina a encrenca em que se meteu, Gary.

– Você me conhece, Klaus. Sempre fiel à rotina. Suponho que não possa soltar um pouco as cordas sobre os meus pulsos?

– Sinto muito, Gary. Eu tenho uma família pra alimentar. E você sabe como famílias goblins são grandes.

– Bem, valia a pena tentar.

O goblin apertou bem os nós, e fomos empurrados para o lado dos sacos de batatas. Pelo menos podia me aquecer de novo no calor que vinha de Larina. Para minha surpresa, no entanto, ela parecia já estar recuperando a consciência. Garota durona.

– Não se preocupe. Eu vou tirar a gente dessa. – eu disse, mesmo sem acreditar. Tony ia querer uma boa explicação, e não achava que nossas afinidades enquanto ex-aventureiros me salvariam. Ou à Larina. Apesar de que ela teria outros meios de convencê-lo. Mas eu tinha que dizer alguma coisa, certo?

– Meus bebês! – foi tudo que ela respondeu, com força e intensidade suficientes para chamar a atenção de todos no aposento. Senti seu corpo esquentando ainda mais, e comecei a suar incontrolavelmente. Parecia que estava realmente derretendo. A corda que nos prendia queimou e se soltou, e eu me virei assustado para ver o que acontecia.

A pele de Larina fora tomada por escamas vermelhas, enquanto sua cabeça era substituída pela de um lagarto que expelia fumaça e chamas pelas narinas. Suas mãos agora possuíam garras, e um par de asas saía das suas costas. O corpo sinuoso e generoso converteu-se na figura quadrúpede de um dragão que cresceu até ocupar boa parte do espaço disponível.

A criatura avançou em direção à aventureira que segurava a caixa com os ovos, antes que qualquer um esboçasse uma reação. Os outros dois aventureiros tentaram contê-la, mas foram incinerados por uma baforada de chamas. O capanga ogro de Tony também tentou atacá-la e teve o tórax dilacerado por um golpe das garras. Tony, Klaus e o meio-elfo fugiram.

A aventureira largou a caixa com os ovos no chão e tentou atacar Larina, mas ela, sem hesitar, arrancou o tronco da inimiga com os dentes, cuspindo para fora a armadura metálica e espalhando sangue e tripas pelo chão. Então pegou os ovos entre as garras, lançou para o alto uma baforada que destruiu o teto, e saiu voando em direção às estrelas.

Eu estava ainda paralisado, assimilando a cena que acabara de assistir, quando ouvi passos apressados se aproximando e a porta se abrindo novamente. Arkam e outros membros do Protetorado, imaginei. Sem perder tempo, encontrei o túnel por onde havia entrado e fugi também da estalagem. Nunca é muito inteligente estar sozinho na mesma sala que dois corpos incinerados e outros dois mutilados quando o Protetorado faz uma entrada triunfal. Principalmente se estiverem atrasados.

***

Alguns dias depois foi entregue na porta do meu escritório um pacote contendo o pagamento pelos meus serviços, moedas de ouro e prata suficientes para me sustentar pelo resto do inverno e boa parte da primavera, e um bilhete. Aproveitei o dinheiro para comprar um calendário novo, mas ainda não o pendurei na parede. Não estou pronto para me despedir de Tanya.

O bilhete era assinado por Larina, e explicava todo o ocorrido. Ela era na verdade uma dragoa vermelha chamada Larinathrax, que se estabeleceu nos subterrâneos de Valkaria, próximo à Favela Goblin, onde se sentia segura após a época de acasalamento para chocar os ovos e cuidar dos filhotes durante seus primeiros anos. Pode não parecer, mas era uma idéia bastante inteligente – dragões são criaturas solitárias e territorialistas, e, indefesa enquanto cuidava dos bebês, ela seria presa fácil para algum que tentasse tomar o seu covil. Em Valkaria, no entanto, qualquer dragão que se aproximasse menos do que alguns quilômetros seria logo atacado pela milícia e o Protetorado, que o mataria ou expulsaria para longe. Bastava chegar na cidade sob forma humana e manter-se anônima até encontrar um local adequado, e então transferir aos poucos seu tesouro para lá.

Tony, no entanto, a descobriu, e contratou um grupo de aventureiros para roubar seus ovos. Provavelmente pretendia criá-los e treiná-los como guarda-costas de luxo, que lhe dariam uma vantagem considerável sobre seus concorrentes, além de permitir que desafiasse abertamente o governo da cidade. O que explica o interesse de Arkam Braço de Ferro e o Protetorado. Klaus, imagino, foi quem guiou os aventureiros até o covil. Ninguém conhece os os labirintos sob a cidade tão bem quanto um goblin, e ele próprio é um rastreador de destaque entre os seus.

Larina não estava lá quando o covil foi invadido, o que tornou a missão dos aventureiros bastante fácil. Quando retornou e encontrou o local esvaziado tentou rastreá-los de volta, mas não conseguiu encontrar uma trilha confiável. Imagino que o mago do grupo tivesse usado algum tipo de truque. Decidiu então contratar os serviços de um profissional para ajudá-la – que, é claro, só poderia ser o halfling ex-aventureiro de olhos azuis preferido deste lado da cidade. Ela apenas não me disse que meu trabalho seria apenas o de encontrar os responsáveis, enquanto ela própria lidaria com eles. Por isso me seguiu desde que saí do escritório em direção ao Kobold Sarnento, usando poderes mágicos para se manter invisível.

O final do bilhete continha ainda um convite para que eu conhecesse o seu covil e ela pudesse me agradecer devidamente… Bem, em particular. Disse que ela própria viria até mim, não fossem os ovos já terem chocado e ela não se sentir segura para deixar os filhotes sozinhos novamente. Acho que vou recusar, de qualquer forma. Não quero pegar fama de matador de dragão.

Os bebês, no entanto, são algo que eu gostaria de ver. Ouvi dizer que são uma graça logo que saem dos ovos. Isto é, quando não estão chorando ou defecando. O que deve ser o que fazem a maior parte do tempo.

Só não quero imaginar o que vai ser quando crescerem.

Duelo ao Meio-Dia

Paulo ajeitou a bola com calma, levantou a cabeça e lentamente caminhou para trás, de costas, sem tirar os olhos do oponente. Era considerado o melhor batedor de pênaltis da região, apesar de preferir jogar na defesa, e não no ataque. Seu chute era forte e preciso; diziam que jamais havia errado uma cobrança.

Do outro lado, no entanto, o goleiro era uma incógnita – Felipe, que morava em outro bairro e só passava nas proximidades do campo pela manhã quando resolveu parar para assistir a partida. Entrou no jogo quando o goleiro de um dos times caiu de mau jeito ao pegar uma bola e teve que sair; perguntado se jogava no gol, Felipe respondeu que sim e tomou o seu lugar.

E jogou bem: era então quase meio-dia e nenhum gol havia sido feito, mesmo com o time de Paulo atacando com força o tempo todo. Mas, poucos minutos antes, um zagueiro do time de Felipe derrubara um jogador adversário próximo do gol; todos concordaram que era um pênalti claro – estavam já famintos e pensando no almoço que se seguiria, de forma que decidiram que aquela cobrança decidiria a partida: depois dela, o jogo acabaria. O time de Paulo já comemorava a vitória enquanto ele lentamente se dirigia de um lado para outro do campo, antevendo aquela que seria a sua mais recente glória, enquanto, do outro lado, Felipe calmamente se preparava para a cobrança.

E ele permaneceu calmo enquanto Paulo ajeitava a bola. Estalou os dedos, posicionou-se no meio do gol e olhou friamente para o seu oponente, já parado e preparado para cobrar a penalidade. O olhar foi devolvido com a mesma frieza; encararam-se mutuamente por segundos que pareceram horas, enquanto todos os demais aguardavam ansiosos o resultado daquele embate de nervos.

O sino da igreja ao lado do campo tocou uma vez – era meio-dia em ponto. Uma leve brisa levantou um pouco de poeira entre os duelistas, que continuavam se encarando friamente.

Veio então a segunda badalada. O silêncio ensurdecedor permaneceu; os outros jogadores tremeram e suaram, os nervos à flor da pele.

A terceira badalada. Os dois ainda se encaravam friamente, sem desviar os olhos um do outro por um instante sequer.

A quarta badalada – e Paulo correu em direção à bola. Chutou forte e preciso, como de costume, em direção ao ângulo inferior esquerdo do gol. Um leve sorriso se esboçou no seu rosto ao perceber a perfeição do chute que acabara de desferir – mais alguns milésimos de segundo e toda aquela tensão acabaria.

O sorriso rapidamente se transformou em uma expressão espanto ao ver a mão de Felipe tocando a bola, empurrando-a em direção à trave, e dali para fora do gol. Ele havia defendido!

Paulo caiu de joelhos, sem acreditar no que via. Levou as mãos ao rosto, desconsolado – havia sido vencido, afinal. Jogou-se para trás, olhando o sol que brilhava forte no centro do céu. Os outros jogadores foram cumprimentar o goleiro – mas ele permaneceu lá, parado, derrotado, arrasado.

Felipe cumprimentou seus companheiros e adversários, mas permaneceu sério. Olhou uma última vez para o corpo do seu rival, estendido no chão como um cadáver, e sentiu uma pontada de pena ao pensar que poderia ser ele no seu lugar. Mas aquele era o código do duelo: apenas um pode ser vitorioso, e ao perdedor resta aceitar a derrota com a honra de ter dado o melhor de si. Então, reconfortado, virou as costas para o campo, e calmamente caminhou em direção ao horizonte distante de onde viera.

O Futebol é o Rock do Brasil

veneno-remedioAproveitei o último fim de ano para ler um livro que havia comprado há algum tempo já, Veneno Remédio – O Futebol e O Brasil, de José Miguel Wisnik, cuja capa ilustra este texto e que trata da história do esporte e do esporte no Brasil, visando explicar o país a partir do futebol e o futebol a partir do país. É uma obra interessante, sem dúvida, até porque trata de um tema que eu mesmo tenho interesse e vez por outra trabalho; ele parte de obras clássicas de análise do caso brasileiro, como as de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, somadas ainda a leituras de Machado de Assis e Lima Barreto e outras referências que vão de cineastas italianos a filósofos tchecos, oferecendo uma visão intelectualizada e culta, mas nem por isso depreciativa, do esporte e do mundo que existe na sua volta. Em alguns momentos o autor até chega a exagerar um pouco nessa visão, na verdade, atirando interpretações e citações shakespereanas que parecem um pouco bestas e despropositadas, do tipo que parece estar lá apenas para exibir erudição, mas de maneira geral eu diria que é um bom livro, recomendado para qualquer um com interesse pelo tema e que não tenha dificuldades em ler obras ensaísticas mais carregadas nas análises e referências, pra fugir daquela mesmice e superficialidade de jornalistas e cronistas esportivos tradicionais.

De qualquer forma, me chamou um pouco a atenção as suas teses a respeito do “estilo brasileiro” de jogar, que pegou um jogo bruto e reto de origem britânica trazido até aqui por membros da elite e o converteu em um estilo fluido e repleto de ginga e elipses (pra usar os termos do próprio livro), tomado pelas massas e praticado por todas as raças e classes sociais. O livro discute bastante a idéia da origem do futebol à brasileira a partir da nossa raíz mestiça, da mistura de raças e aquela história toda que boa parte da crônica esportiva repete pelo menos desde O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho, já uns bons 60 anos atrás. É a tese de que o nosso jeito de jogar surge a partir da apropriação do jogo inglês pelas massas de negros e mestiços, que lhe imbuem elementos da sua própria cultura sincrética, misturando-o, por exemplo, à ginga e às fintas da capoeira, com a sua luta que se disfarça de dança e dança que se finge de luta, com chutes e golpes falsos que lembram os toques falsos de uma pedalada sobre a bola. Por lugar-comum e clichê que seja, no entanto, não há como negar a esta tese algum crédito, sobretudo à luz de todos os jogadores mulatos e negros que deram forma ao estilo que se tornaria característico do país, desde Friedenreich, Leônidas e Domingos da Guia nos anos 20 e 30 até os Ronaldinhos e Robinhos mais atuais. E há ainda um outro paralelo interessante que se pode tratar a partir daí, com um outro tema de meu interesse que já me rendeu também horas de pesquisa no passado.

O blues norte-americano também surgiu a partir da mistura de povos, dos cantos religiosos europeus apropriados e alterados pelos escravos africanos a partir da sua própria cultura musical. A blue note, nota que caracteriza o estilo, nada mais é que uma distorção dos semi-tons da escala européia para se adequar ao ouvido acostumado à escala de tons inteiros da música africana. E é certamente digno de nota que o blues tenha uma influência marcante em toda a cultura musical dos Estados Unidos – ele está na origem do jazz e do rock, e não deixa de se fazer presente mesmo no pop radiofônico mais contemporâneo. Não é exatamente à toa que a escala do blues é considerada a principal contribuição norte-americana à música de forma geral; a sua onipresença na música popular local é facilmente comparável à do futebol na cultura popular brasileira.

As duas histórias são ainda repletas de outros elementos coincidentes. É difícil não notar, por exemplo, que ambos começam de forma amadora na cultura popular, e se profissionalizam velozmente em seus respectivos países a partir dos anos 20 – no caso do blues, ainda que já houvesse uma cultura de espetáculos e apresentações musicais profissionais anterior, é a partir deste período que surgem as gravações em disco, dando início à indústria fonográfica e criando um novo meio de ganhar a vida que atrairá trabalhadores rurais à cidade; e no caso futebol brasileiro, este período corresponde ao “profissionalismo marrom”, em que os jogadores eram pagos extra-oficialmente por dirigentes de clubes para disputar as ligas amadoras, criando também um novo tipo de ganha-pão que atrairá jogadores das periferias para os grandes times. Mesmo alguns dos seus principais nomes, por vezes, parecem se espelhar – desde os trágicos pioneiros, como Charlie Patton e Robert Johnson ou Leônidas da Silva e Garrincha, até os filósofos e intelectuais, de Dylan e Zappa a Tostão e Sócrates.

Não posso deixar de comentar, é claro, os pontos em que as duas histórias divergem. É importante destacar, principalmente, as diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos ao tratar a sua questão da raça e da mestiçagem, que têm influência sobre a forma como os dois elementos se desenvolvem nas suas culturas. Os EUA são um país multirracial/étnico, mas não um país mestiço – ele foi formado e colonizado por etnias diversas, mas freqüentemente isoladas, sem se misturar com as demais. Isso fez com que o blues, por exemplo, fosse desenvolvido fundamentalmente em um ambiente negro, ainda que aberto a outras influências. E, uma vez que o estilo, já a partir dos primeiros rocks dos anos 50 mas principalmente com o rock inglês nos anos 60 e 70, foi apropriado pelas elites brancas, ele foi gradualmente abandonado por esses guetos de afro-descendentes, substituído primeiramente pelo funk e, posteriormente, pelo rap.

O Brasil, por outro lado, se destaca pela sua formação mais profundamente mestiça, de brancos, negros e índios, mais do que convivendo, se misturando. Alguns dos grandes nomes da literatura brasileira já no século XIX e começo do XX, por exemplo, eram mulatos, a destacar Machado de Assis e Lima Barreto, e o mito sociológico do “caldeirão racial” já foi invocado muitas vezes de forma tanto positiva como negativa, ao ponto de ser um chavão da interpretação do país. E também o futebol vai se desenvolver a partir desta lógica da mestiçagem, da mistura de culturas e elementos, de forma que nunca qualquer dos lados consegue se apropriar dele de forma exclusiva. Todas as grandes seleções nacionais foram formadas não apenas por negros ou mulatos, mas por estes jogando ao lado de brancos, e de jogadores pobres ao lado da classe média e da elite. Como Wisnik destaca no livro, é como se, ao menos no futebol, existisse realmente a democracia racial e social que tanto se alardeia mas nunca se cumpre de fato em outras áreas.

Há um ponto, no entanto, em que os dois se encontram de forma muito mais marcante e decisiva. O blues, como já destaquei antes, está na origem do rock, que é o paradigma principal da música popular no mundo ocidental-capitalista, para o bem ou para o mal. De uma forma ou de outra, a música pop contemporânea é freqüentemente comparada ao auge do rock, justamente o período em que a influência do blues era mais evidente, e não poucas vezes é lá que busca as suas referências formadoras. E o mesmo acontece com o futebol brasileiro – independente dos seus resultados mais recentes, é ele que é tomado como base de comparação para o resto do mundo. O futebol é o rock do Brasil: se os principais clássicos do rock são tocados em qualquer parte do mundo, os dribles dos jogadores brasileiros também são imitados em todos os lugares onde o futebol é conhecido; e se os Beatles são mais famosos que Jesus Cristo, Pelé também é.

É fácil ver as evidências dessa onipresença brasileira em termos de futebol. Está nos milhares de jogadores que saem do país para o exterior todo ano, e nem mais apenas para os grandes centros econômicos – há jogadores brasileiros na China e na Coréia, na Tailândia e na Arábia. Está nos principais craques nacionais reconhecidos em qualquer parte do mundo, de Kaká a Ronaldinho a Robinho, e tratados como astros do rock por fãs e paparazzi. E está no estilo de jogo dos próprios craques de outros países – independente de serem brasileiros ou não, o estilo de jogadores como Michael Owen ou Cristiano Ronaldo deve muito aos dribles de Pelé e Garrincha que tomaram de assalto o futebol a partir dos anos 60 e, principalmente, 70. (Aliás, é curioso que até Nick Hornby, em seu livro sobre a sua paixão pelo time do Arsenal, dedique-se a comentar as proezas da seleção de 70, destacando como ela mudou a visão de todos sobre como o esporte poderia ser jogado.)

Claro que eu não tenho a menor idéia se tal fato pode ter um significado mais profundo do que apenas nós sermos bons no futebol (o que nem é tão verdade recentemente) e os norte-americanos terem lá os seus méritos musicais. Talvez possa se tirar daí alguma teoria da globalização cultural, a partir do fato de que tanto o Brasil como os EUA já eram desde a sua formação nações a seu próprio modo globalizadas, resultantes de aldeias culturais diferentes interagindo num mesmo espaço físico; é possível, quem sabe, que as suas culturas tenham apelo amplo justamente por juntarem elementos familiares a diversos grupos, ao mesmo tempo que os misturam a características exóticas que não deixam de ser sedutoras. Wisnik ainda comenta bastante que a influência brasileira sobre o futebol mundial é uma influência espontânea, a que as pessoas aderem por vontade própria, diferente da influência cultural, inclusive musical, dos Estados Unidos, que muitas vezes é forçada sobre outros países por meio da economia – é curioso, aliás, que já se tenha tentado expandir essa influência para o campo esportivo, com a tentativa da Nike em meados dos anos 80 de transformar o basquete de raízes norte-americanas em esporte mundial, frustrada justamente devido à concorrência com o futebol. E é digno de nota também que os astros esportivos, sobretudo os do futebol, são os principais do imaginário popular atual, da mesma forma que os do rock já foram em outros momentos – são eles que, hoje, namoram modelos, ganham milhões a cada semana, e promovem campanhas e encontros beneficentes, na proporção em que músicos e roqueiros populares atuais têm sua relevância cultural progressivamente diminuída; e, dentre estes novos mega-astros, são justamente os brasileiros os mais destacados. Seria exagero imaginar aí relances de uma nova potência cultural emergente? Bem, possivelmente sim; no fim, talvez isso tudo não passe mesmo daquela citação a Shakespeare que Wisnik freqüentemente recorre no seu livro: som e fúria, significando nada.

Futebol, Arte e Espetáculo

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Algum tempo atrás, estava eu a assistir os programas de comentários de esportes (leia-se futebol) da TV a cabo, mais especificamente da SporTV, comentando sobre as finais dos campeonatos estaduais, apesar de que o meu próprio time mal foi citado uma ou duas vezes, por razões que não me vem ao caso no momento. Em um dado momento, no entanto, o comentarista Paulo César Vasconcelos, que pessoalmente eu acho um dos mais antipáticos da TV nacional (só perde para o gaúcho Maurício Saraiva), disparou, acho que durante o comentário do jogo do Flamengo, aquela pérola do senso comum: futebol é espetáculo. Houve lá um ou outro comentário irônico e cômico sobre a afirmação dos outros jornalistas da bancada, mas em geral todos concordaram com ele.

Pois bem… Eu discordo. Dizer que o futebol é um espetáculo, que é uma forma de entretenimento artístico, é uma leitura muito superficial de todo o universo do esporte, e simplesmente não prestar direito a atenção no que acontece no campo e em volta dele. Não digo que o futebol não seja alguma forma de entretenimento, no sentido em que, para o torcedor (ou a maioria deles), certamente não é um trabalho; no entanto, se ele fosse realmente um espetáculo, como uma peça de teatro ou apresentação musical, ninguém vaiaria um time que joga bem, mesmo quando ele humilha a equipe da casa, nem aplaudiria um time que ganha um jogo de 1 a 0, na retranca, com gol de bola parada aos 40 minutos do segundo tempo. Pouca gente, se é que há qualquer um, vai ao estádio ou assiste pela TV um jogo de futebol para se divertir; e quem diz isso não sou eu, mas o inglês Nick Hornby, naquela que é, na minha opinião, a obra que melhor explica a visão de um torcedor sobre o futebol: o livro Febre de Bola, sua autobiografia enquanto torcedor do Arsenal de Londres. Como ele bem destaca já nos primeiros textos, uma das coisas que mais o surpreendeu nas primeiras partidas que compareceu foi a forma como ninguém no estádio parecia estar apreciando o tempo que estava lá; todos xingavam os jogadores, os juízes, os torcedores rivais, e mesmo uns aos outros, como se odiassem aquela situação, odiassem ter que estar lá, e ainda assim o faziam toda semana.

Na verdade, o futebol, enquanto espetáculo, é muito ruim. O ritmo de jogo é inconstante, normalmente há pouquíssimos gols e momentos de brilho, e não há como prever que o desfecho seja aquele que todos querem ver, com a vitória do time preferido, mesmo quando este possui uma equipe visivelmente superior à do adversário. Assim, não é de se admirar que muitas pessoas não vejam graça no futebol; tentar vender ele como espetáculo é como tentar vender grãos de areia no deserto, e ainda assim é a forma como TV e os meios de comunicação em geral tentam fazê-lo, em parte por ser mais fácil do que a outra opção.

Mas tio BURP, se futebol não é um espetáculo, então o que ele é? Bem, aí entramos num assunto que pode ser um pouco polêmico e complicado. Pessoalmente, sou adepto da visão do Nelson Rodrigues e do Eduardo Galeano: futebol, muito mais do que um espetáculo ou qualquer tipo de entretenimento, é uma mitologia, e, em certo sentido, uma religião. Posso até dar algum embasamento acadêmico para essa afirmação, na verdade: analisando o desenrolar de um campeonato, é muito fácil fazer um paralelo com a jornada do herói mitológico proposta por Joseph Campbell no seu clássico Herói de Mil Faces, com a passagem por um limiar (o início do campeonato), diversas provas heróicas (os jogos do campeonato), e um momento apoteótico no final (a partida da final e, se tudo correr bem, o título de campeão); e, da mesma forma, Richard Giulianotti, em Sociologia do Futebol, também não deixou de notar que a forma como a torcida se comporta durante uma partida, com cantos e movimentos em uníssono, tem todos os elementos de um ritual xamânico.

Claro, não vou afirmar que o futebol seja de fato um substituto completo para a religião; dizer isso seria ignorar o fato de que com certa freqüência os torcedores são, também, devotos bastante dedicados de seus cultos. No entanto, as razões que levam alguém a torcer para um time de futebol e a comparecer aos jogos, mesmo quando o seu time de preferência não está passando por um bom momento, são muito semelhantes as razões que levam alguém a seguir uma religião e cumprir todos os seus rituais e preceitos: é a necessidade de se sentir parte de algo maior, de se reconhecer em uma coletividade única em meio a um grupo de indivíduos aparentemente diferentes, e de ter um sentido de vida e, mais importante que isso, a experiência e vivência de um sentido.

Enfim, da próxima vez que quiser assistir um espetáculo, vá a um teatro ou show de música, que você estará ganhando muito mais.

Rhythm & Blues & Rock n’ Roll

howlinwolfAlgum tempo atrás lembro de passar em uma loja de CDs e DVDs pra comprar um presente de aniversário pra minha mãe (um DVD do acústico do Eric Clapton, pra quem ficar curioso), e, enquanto dava uma olhada por lá, achei um CD do Howlin’ Wolf  (o negão aí de cima) com preço de ponta de estoque, e resolvi levar também. Howlin’ Wolf, para quem não sabe, foi um dos principais nomes do Rhythm & Blues do pós-guerra norte-americano, na segunda metade da década de 40, junto com Muddy Waters, Willie Dixon, T-Bone Walker e outros tantos. Ouvindo o disco, achei que seria interessante escrever algumas linhas a respeito desse R&B dos anos 40 e 50, que musicalmente pouco tem em comum com o que se chama de R&B hoje em dia, e que, ao contrário do diz o senso comum, artigos de enciclopédia e documentários de televisão em geral, são os legítimos pioneiros do rock ‘n roll que se consolidaria nas décadas seguintes.

Pois bem, comecemos do início então. Não estou muito certo de quando o termo Rhythm & Blues foi criado, mas o seu uso se consolidou e difundiu nos anos 40. Era, essencialmente, uma forma nova de se referir à música dos race records, os “discos de cor”, que eram discos de artistas negros gravados desde meados da década de 20 e destinados, principalmente, ao crescente público negro dos centros urbanos norte-americanos. Estamos na primeira metade do século XX, é bom lembrar, e, nos Estados Unidos, essa foi uma época de intensa segregação racial, o que nas décadas seguintes geraria diversos conflitos políticos e sociais pela igualdade de direitos civis; a própria busca de uma nova denominação para esses race records já ilustra bem o crescente poder que esse público negro começava a representar, já que era uma forma de tirar a óbvia conotação racial que o nome implicava. O tipo de música que foi associado a ele na época era, fundamentalmente, uma derivação do blues rural norte-americano, mas tocado com instrumentos elétricos e com um ritmo mais frenético – era uma música de festa, enfim, que buscava fazer as pessoas dançarem mais do que atingir qualquer tipo de mérito artístico.

Essas “músicas de festa” dos artistas negros já eram bem conhecidas do público urbano desde a década de 20, na era de ouro do jazz. Eram tocadas em clubes e festas bastante animados, com sexualidade latente e drogas e álcool sendo consumidos quase que livremente; fazendo um paralelo contemporâneo, era um ambiente muito semelhante com o imaginário que se tem hoje em dia sobre o funk carioca, e que chocava as elites conservadoras da época pelo menos tanto quanto esse funk choca as de hoje, se não mais pelo agravante da mistura racial que propiciavam, o que, nos Estados Unidos de então, era uma idéia absurdamente escandalosa. Robert Crumb retratou bem muitas das características desse ambiente na sua obra Blues, que, por sinal, foi o tema da minha monografia final na faculdade, e o que me motivou a fazer toda a pesquisa que levou a essas conclusões. E o R&B dos anos 40 herdou muito dessas características também, inclusive a antipatia e choque que causava nos conservadores, bem como o charme irresistível sobre as classes médias em busca de diversão, independente de cor da pele. E é claro que, eventualmente, essas elites seriam obrigadas a buscar outras estratégias de superar o problema dessa música – e é aí que entra o rock n’ roll dos anos 50.

Era lugar comum entre os empresários de então dizer que o segredo do sucesso naquele setor estava em encontrar um artista branco com alma negra. Essa era a idéia essencial do rock n’ roll: transformar aquela música negra e sensual em algo, se não plenamente aceitável, pelo menos mais palpável de ser consumido pelos públicos brancos mais conservadores. Fazendo novamente a comparação com o funk carioca, é mais o menos o que artistas como MC Leozinho tentam fazer – uma música limpinha e inocente, sem os temas e conteúdos moralmente chocantes que possuíam originalmente. Basta, no entanto, uma audição cuidadosa desses artistas do R&B para perceber o truque – a música que eles faziam já era esse rock n’ roll posterior, com o mesmo ritmo dançante e progressão típica de acordes, apenas em uma embalagem diferente, eu diria até mais autêntica.

E nem é preciso ouvir Muddy Waters e Howlin’ Wolf, na verdade, mas só dar uma olhada nos primeiros grandes sucessos do rock n’ roll: Hound Dog, Whole Lotta Shakin’ Going On, Great Balls of Fire, e muitas outras eram originalmente canções de artistas do R&B negro dos anos 40 até meados dos 50, regravadas pelos artistas brancos do rock n’ roll. É bom destacar também que mesmo os artistas negros mais conhecidos do gênero, como Little Richard ou Chuck Berry, só viriam a estourar em um momento posterior. E ainda entre os roqueiros ingleses dos anos 60 e 70 – talvez os principais responsávels pela consolidação definitiva do gênero, e maciçamente influenciados pelos artistas de blues, R&B e jazz norte-americanos que, desde fins dos anos 50, faziam constantes turnês européias atrás do público que os artistas do rock haviam tirado deles na América -, ainda havia muitas regravações e releituras de artistas dessa época ou anteriores, de Crossroads, do Cream, até Whole Lotta Love, do Led Zeppelin.

Enfim, eu sei que esse texto curto e superficial nem de longe encerra o assunto, que ainda é passível de muita discussão e aprofundamento posterior, que eu ainda pretendo fazer quando me for conveniente. No entanto, é um bom começo para o reconhecimento que merecem esses verdadeiros heróis da música, pioneiros legítimos do estilo que se tornaria o grande paradigma musical do mundo globalizado contemporâneo.


Sob um céu de blues...

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