Sobre Safras e Mercados

No livro Febre de Bola, o inglês Nick Hornby relata uma história interessante, entre tantas outras, de quando ele jogava pelo terceiro ou quarto time da universidade de Cambridge, onde estudava. Segundo ele, dentre todas as equipes da academia, apenas um ou dois atletas da época em que ele jogava chegaram a ter algum tipo de carreira como profissionais. E o melhor deles, um verdadeiro craque entre aqueles estudantes e protótipos de intelectuais, teve como grande momento um gol marcado por um time da quarta divisão inglesa.

A história ilustra bem a distância que existe entre torcedores e jogadores, e foi esse o objetivo também de Hornby ao contar ela – se o melhor jogador profissional com quem já teve algum tipo de proximidade teve como maior momento na carreira uma partida da quarta divisão, podemos apenas imaginar o abismo que o separa das estrelas do Arsenal, o seu time do coração. Jogar por ele, então, é algo totalmente fora dos limites da realidade: o mundo do futebol profissional é um legítimo universo paralelo, um mundo fantástico não muito diferente em essência de certos cenários de RPG e literatura.

O tipo de jogador que habita esse universo, hoje, já tem poucas relações de fato com o mundo de fora, sendo formados e fabricados dentro desse mundo paralelo. A maioria deles vive no futebol desde muito cedo – em torno dos 13 ou 14 anos, talvez menos, e eu não falo de simplesmente freqüentar uma escolhinha ou jogar com um time semi-amador nos fins de semana; muitos deles já nessa idade vivem nos clubes onde jogam as categorias de base, a quilômetros de distância da família, que às vezes é até mesmo de outro estado. Essa é a idade onde se começa a semeadura dos jogadores, em geral; é difícil alguém que comece muito depois ter qualquer chance em qualquer equipe um pouco maior, mesmo sem levar em consideração os clubes realmente grandes. E o próprio mercado do futebol também já chega cada vez mais cedo entre eles.

Hoje em dia se compra e vende jogadores de base da mesma forma como se faz com jogadores profissionais – talvez até mais, visto que a idade para a liberação de passe já foi bastante reduzida. Grande parte dos jogadores que se tornam profissionais no Grêmio, ou no Flamengo, ou no Cruzeiro, não são gaúchos, cariocas ou mineiros, muito menos torcedores dos times. Foram trazidos ainda crianças por algum empresário de outro estado, e simplesmente viveram no clube desde então. Não é difícil dar exemplos: muitas das últimas revelações de Grêmio e Inter não eram gaúchas – o Lucas, por exemplo, hoje no Liverpool, nasceu no Mato Grosso do Sul, e Alexandre Pato, atualmente no Milan, no Paraná. O caso do Pato, inclusive, é bem curioso: nascido em Pato Branco, em uma região com grande presença de famílias gaúchas, ele é, ou pelo menos foi, torcedor gremista quando criança, como a foto que ilustra esse texto não deixa enganar. Mas, ao vir para Porto Alegre jogar futebol aos 13 anos, não foi aceito no Grêmio por ser considerado ainda muito jovem para viver tão longe da família, o que, aparentemente, não foi problema no Inter.

O que leva também a outro ponto interessante. Não sou exatamente uma pessoa muito velha, apesar de ser um velho rabugento de espírito, então não posso fazer aqueles comentários nostálgicos sobre alguma época romântica em que os jogadores realmente amavam os times por qual jogavam, não apenas seus salários, e esse tipo de coisa. Bem pelo contrário: nasci e cresci já no mundo do futebol de consumo, com jogadores profissionais e distantes das torcidas, e além disso, como pesquisador da história do futebol, sei bem que na maioria dos casos esse tipo de afirmação não corresponde exatamente à realidade da época. Até algum tempo atrás, no entanto, ainda ouvia comentários de amigos próximos sobre jogadores ruins que pelo menos jogavam com vontade por torcer pelo time, ao menos quando se referiam aos que vinham das categorias inferiores; e eu mesmo lembro do Ronaldinho Gaúcho, o mesmo que hoje ganha milhões e já foi o melhor do mundo, quando ainda era uma jovem revelação tricolor, saindo de campo chorando após uma derrota; quando o repórter perguntou a razão, ele prontamente respondeu que torcia para o Grêmio e queria que o time ganhasse. Dificilmente se pode esperar a mesma coisa do mineiro Léo, ou o paulista William Magrão, ou o sergipano Thiego, ou outros tantos jovens do Grêmio atual, pelo menos quanto a parte de ser torcedor do clube – não dá pra imaginar, por mais que tenham simpatia pelo clube onde vivem já há algum tempo e pensem nas conseqüências para suas carreiras, que tenham sofrido da mesma forma que eu e outros gremistas sofremos com as recentes derrotas em campeonatos, e certamente não se podia esperar que realmente levassem a sério uma campanha como a “entrega Grêmio” que houve durante essa última semana. Mesmo entre garotos da base, é muito raro um caso como o do Adriano, que largou tudo na Europa pra voltar pro Brasil e pro Flamengo.

Na verdade, acho que dá pra falar o mesmo até de alguns jogadores que tiveram, ou ao menos pareceram ter, alguma identificação com a sua torcida e clube – como o já citado Lucas, que, em uma entrevista ao canal SporTV algum tempo atrás, falou da sua experiência na famosa Batalha dos Aflitos. Quando o segundo pênalti contra o Grêmio foi marcado e tudo parecia perdido, diza ele, com toda naturalidade, que o que passava pela cabeça no momento é o que ia ser dele e da carreira dele se o Grêmio não se classificasse. E eu realmente compreendia esse ponto de vista, e não conseguia achar que estivesse errado: ele é um profissional, afinal, e, mais do que isso, um profissional jovem, em começo de carreira. Hoje em dia o profissionalismo no futebol simplesmente já não é mais apenas dos times principais, começando desde os times infantis.

Anteriormente eu falei em “semeadura” dos jogadores, e não acho que tenha sido um termo exagerado. Como eu disse, a formação desses jogadores começa muito antes do que a maioria das pessoas costuma ter qualquer decisão concreta sobre a carreira que deseja seguir quando adultos (eu mesmo não tenho muita certeza ainda hoje, com meus 25 anos jogados na cara). Eles precisam ser fabricados desde cedo, como as mercadorias que são; não é à toa que muitos comentaristas esportivos, quase sem perceber, falam de “safras” de jogadores quando vão se referir às últimas gerações de atletas. Falam da safra atual de jogadores do São Paulo, ou então a última safra de jogadores do Internacional, ou tantas outras safras, e acho que não devem a demorar a identificá-las pelos respectivos anos, como se fossem vinhos – dá até pra fazer um paralelo cômico com a idéia de que ambos melhoram com os anos e a maturação.

De qualquer forma, não sei exatamente qual era o meu objetivo quando comecei a tecer esse texto. Como de costume, são apenas algumas linhas aleatórias que estavam passando pela minha cabeça, e eu resolvi colocar no monitor, sem lá um embasamento muito profundo. Na minha curta experiência, lembro ainda de alguns casos de jogadores que realmente vieram de fora desse mundo, tendo a formação de pessoas “normais” até que foram descobertos por acaso e tardiamente antes de virarem jogadores profissionais; algo que deve acontecer cada vez menos no futuro, visto que os olheiros e empresários, hoje, ocupam muito mais do seu tempo em times pequenos mas profissionais do que em campinhos de terrenos baldios e torneios colegiais. Mas não quero fazer um juízo de valor e dizer que os tempos atuais são necessariamente piores do que aqueles por isso; talvez sejam diferentes, apenas, com essa coisificação assumida dos jogadores e a produção em massa com fins de exportação. No fundo, talvez seja mesmo um desdobramento irreversível daquele primeiro momento em que um jogador de futebol recebeu pagamento para jogar contra uma equipe, tão bem retratado por Lourenço Cazarré no conto Meia Encarnada, Dura de Sangue.

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