Arquivo para setembro \17\-03:00 2010

A Oficina

A pequena construção de madeira destoava dos gigantes de concreto em volta, tornando-a naturalmente destacada. O viajante se aproximou, curioso, e viu a pequena placa em frente à porta: Oficina; entre sem bater. Entrou.

O interior era desorganizado e sujo. Em cada canto se amontoavam palavras desconexas e inexistentes, baldes de letras separadas se espalhavam pelos aposentos, idéias estavam penduradas nas paredes, como que secando e amadurecendo. O viajante caminhou pelo local, a cada instante parando para observar uma obra inacabada, um soneto que lhe chamava a atenção, um parágrafo de arestas irregulares.

Percorreu o corredor de conceitos esparramados, e chegou a uma pequena sala onde um operário trabalhava juntando letras em palavras, palavras em frases e frases em parágrafos. Usava uma máscara de ferro para proteger o rosto, pois o lápis faiscava criatividade a cada rabisco na folha, e um avental sujo com as idéias não aproveitadas que escorriam da mesa de trabalho. Ao notar o viajante, virou-se para ele, levantando a proteção e revelando o rosto cansado.

– Procurando alguma coisa em especial?

– Desculpe. – o viajante se virou de volta para a saída. – Acho que entrei em um clichê.

– E quando já esteve fora de um? – o operário baixou a máscara e voltou à fundição das palavras, enquanto o viajante silenciou. Deu mais uma olhada no material que havia em exposição e saiu de lá com algumas linhas de prosa pretensiosa. Atravessou a rua, e entrou em um restaurante cuja placa na entrada lia Prato do Dia: chavões ao molho de mostarda.

Neon Azul

Neon Azul é um livro de Eric Novello, escritor carioca radicado em São Paulo, lançado pela Editora Draco durante a última Fantasticon. E é também o nome da boate onde se passa a maior parte das suas histórias, um inferninho típico das grandes cidades, onde florescem todos os vícios e acontecimentos da vida noturna.

Como anuncia já na capa, trata-se de um romance fix-up, o que quer dizer que ele não possui uma única trama que se desenvolve com início, meio e fim, mas sim uma série de contos que podem ser lidos de forma indepente ou entendidos como partes de uma história maior. Mesmo a ordem de leitura não é muito importante: a sequência do livro não é cronológica, há idas e vindas no tempo, e um conto no final pode estar acontecendo simultaneamente com um dos primeiros. Há diversos personagens recorrentes, que são coadjuvantes em algumas histórias e viram protagonistas em outras, quando você então compreende seus comentários e atitudes; tudo formando um grande mosaico que é o Neon Azul sob a sombra do Homem, o seu misterioso proprietário, que realiza os desejos daqueles dispostos a pagar o seu preço.

Não é um livro 100% perfeito, claro. Há alguns deslizes menores na escrita, e nem todas as histórias têm um final satisfatório. Mesmo quando isso acontece, no entanto, a viagem até lá vale a leitura – é um pouco como uma apresentação de jazz, repleta de improvisações e desvios, onde o tema de fundo é apenas uma ambientação para os músicos (ou personagens) brilharem, e onde a soma das partes muitas vezes é menos importante do que as atuações individuais. A presença do fantástico, em algumas histórias de forma mais sutil do que em outras, colabora para criar um clima surreal, próximo de um realismo mágico – é um mundo que você conhece bem, e, se já tiver frequentado algum dos bares da vida, talvez até reconheça os personagens, mesmo que estejam escondidos atrás de assassinos seriais e prostitutas; mas é ao mesmo tempo mais do que isso, um mundo de fantasia e magia, de viagens através de espelhos e demônios presos em garrafas, que pouco ou nada deve àqueles habitados por elfos e dragões.

Neon Azul, enfim, é um dos lançamentos mais interessantes do ano, ao menos entre os que eu li. É um livro que você terá vontade de ler mais de uma vez, seja pelo cenário e situações surreais, seja para desvendar e montar o quebra-cabeças que é a boate do título. Uma recomendação fácil.

O Violão

Sentou na beira da estrada deserta, em meio a um lugar que era nenhum lugar. O terno escuro coberto de rasgos e remendos o tornava quase invisível na escuridão da noite. Tirou o chapéu, o colocou com cuidado no chão, e puxou o instrumento para fora da capa: um violão gasto e sujo, coberto de rachaduras na madeira; as cordas úmidas e escorregadias partiam de nós descuidados na base até as longas pontas soltas no fim do braço. Posicionou-o sobre a perna direita, fechou os olhos, suspirou longa e profundamente. Então os abriu, virou-os em direção às mãos, e começou a dedilhar.

Os dedos se moviam pelas cordas como patas de aranha sobre uma teia, se apoiando nos nódulos que conectavam pontos e notas, fazendo gestos e posições como símbolos místicos a conjurar sons de sonhos distantes para aquele devaneio particular. Cada acorde era um chamado, cada batida um sinal, que ecoava pela imensidão vazia se perdendo na escuridão. Destoavam do silêncio, em desarmonia com o mundo.

E assim também era ele: dissonante e desconexo, um acorde diminuto perdido entre maiores, um bemol em meio a sustenidos. Aquela era a sua música, a única que sabia tocar; se cada nota era uma lágrima, e cada pausa uma súplica, era apenas assim que conseguia ser, e negá-lo seria tornar-se vazio como o universo que o cercava.

Parou por um instante e olhou em volta. Não havia encruzilhada, e ninguém viera ao seu encontro.

Rambo IV

Não é necessário fazer qualquer introdução ao nome Rambo – ele é um ícone muito maior do que os próprios filmes, cuja simples menção já nos faz imaginar o estereótipo de brucutu que extermina exércitos com uma faca e um arco e flecha; o quintessencial John McClane, Snake Plissken (aliás, reparem no jeitão de Metal Gear do pôster…), Capitão Nascimento, ou mesmo, nas devidas proporções e atualizado para a era da informação, Jason Bourne. E não dá pra negar que o Stallone, por velho e acabado que esteja, da mesma forma que em Rocky Balboa, tem o mérito de entender e aceitar esse ícone, e não tentar atualizá-lo, justificá-lo ou transformá-lo em algo diferente.

Rambo IV é o tipo de filme que vai direto ao ponto, sem firulas: o velho veterano John Rambo leva uma vida tranquila na Tailândia até que um grupo de voluntários americanos o contrata para levá-los até a Birmânia (que se chama Mianmar hoje em dia, mas vamos nos manter nos nomes do filme), que algum tempo atrás estava na capa das manchetes de todo o mundo devido a uma violenta guerra civil que oprime o povo e toda aquela ladainha pacifista que dá o que fazer para membros de ONGs humanitárias. Tudo vai bem até que a vila onde ele deixa os missionários é atacada pelo exército local, sequestrando os missionários e obrigando o velho soldado à voltar a ativa para tirar os pacifistas ingênuos de lá, massacrando todos os inimigos que ficarem no caminho.

Até aí o filme é perfeito, oferecendo exatamente o que se espera dele – mortes mortes absurdas e ignorantes, com o bônus de serem brutais e realistas; as cenas destacam bastante detalhes como membros sendo decepados e o sangue jorrando com os tiros de metralhadoras, sem tentar mascarar a violência com um véu de limpeza como é tão típico no gênero. Bem, é só ver os trailers. É isso que o personagem é, afinal, e tentar justificá-lo com discursos filosóficos seria enfadonho e ingênuo. A escolha de um conflito relativamente periférico como cenário também foi boa nesse sentido, já que impede que ele seja confundido com qualquer tipo de manifesto político – apesar de que eu li algumas notícias de que o filme, obviamente proibido pelo governo militar de Mianmar, chegou até o país através de cópias piratas, e citações dele têm virado gritos de guerra pelos soldados rebeldes. E no fim, na verdade, o roteiro até consegue, despretensiosamente e sem ferir a sua óbvia razão de ser, aprofundar um pouco o personagem título, mostrando como ele aceita sua natureza e fica em paz consigo mesmo.

No fundo, acho que a única razão que me impede de recomendar com veemência Rambo IV é que ele é curto, muito curto. Mal chega na parte do massacre total e generalizado e logo acaba, deixando aquela sensação chata de alguma coisa ficou faltando, como se fosse só uma pequena amostra de algo que deveria ser maior. À parte por isso, no entanto, é um filme divertido e bem produzido, pelo menos para quem souber o que esperar.

A Felicidade

Uma vez, perdido em suas andanças, o viajante encontrou a Felicidade. Tinha momentos sublimes levemente escondidos por longos segundos que caíam por entre os olhos, e um corpo belo de pôr-do-sol que se movia ao barulho de ondas. Não demorou em se aproximar e cumprimentá-lo, deixando um assunto qualquer se formar pela fumaça no ar enquanto trocavam suas idéias.

Ele quase não percebeu o que passava – apenas era levado por seus encantos, deixando para trás como zumbis as velhas melancolias que o acompanhavam. E, antes que pudesse pensar que estava aproveitando a companhia, a Felicidade despediu-se com um sorriso, e seguiu sua viagem rumo a alguma memória distante e esquecida, enquanto o viajante, novamente só, voltou à interminável estrada em direção àquele destino perdido.


Sob um céu de blues...

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@bschlatter

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