Arquivo para dezembro \25\-03:00 2010

Uma Aventura de Natal

Marley estava morto: era este o começo de tudo. Já fazia muito tempo – anos, na verdade -, mas, de alguma forma, era ali que começava. Agora só o que restava de Ebenezer, seu velho companheiro, era um aventureiro amargo e solitário, um guerreiro sanguinário que viajava de masmorra em masmorra matando monstros e tomando seus tesouros sem remorso, para então gastá-los moeda por moeda em bebidas e mulheres em longas noites de taverna.

E assim estava também naquela noite, apenas havia a diferença de ser a véspera do Natal. Nada com que se importasse: feriados pouco significavam para um eterno viajante, que fazia o próprio horário e seguia crenças muito pessoais. No máximo haveriam festas na cidade em que estivesse, o que era uma coisa boa. Como sempre, bebeu e brigou a noite toda, até ser expulso da taverna onde estava. Cambaleou pelas ruas, recusou esmolas a três crianças ameaçando-as com a lâmina suja da espada, e enfim caiu e adormeceu entre as latas e sacos de lixo de um beco escuro.

***

Acordou de repente com o som de correntes se arrastando pelo chão. Levantou num pulo, segurando com a mão direita o cabo da espada, mas, ainda atordoado pela bebida, se desequilibrou e caiu outra vez sobre os sacos de lixo. Então observou, indefeso, os olhos ainda cobertos de vertigens, enquanto uma forma humanóide semi-transparente adentrava o beco, arrastando as correntes presas no corpo como um detento há muito condenado.

– Ebenezer… – o chamado percorria o beco como um sussurro.

– M-marley! – Ebenezer arregalou os olhos e segurou com força o medalhão em forma de cruz que trazia no pescoço, última lembrança deixada por aquele que agora estava à sua frente. – Mas você está morto!

– Em anos como aventureiro, imaginei que estivesse acostumado com o fato de a morte raramente ser um fim definitivo.

Ebenezer não respondeu. Inspirava e expirava com rapidez, suando apesar da neve fria que o cercava.

– Estou aqui para lhe avisar da sua missão esta noite. – continuou Marley. – Você deverá explorar três masmorras, e elas lhe indicarão o caminho para a redenção da sua avareza e pecados do passado.

– Redenção? Mas eu não preciso de reden… – não completou a frase, pois o fantasma já desaparecera deixando apenas um pergaminho enrolado no chão. O guerreiro se aproximou e o pegou: era um mapa, indicando a localização de uma masmorra nas proximidades da cidade. Resolveu seguir o conselho do amigo e se dirigir para lá, curioso sobre o que encontraria.

***

A entrada do local não era muito surpreendente: uma velha escadaria de mármore levando para o subsolo, com algumas rachaduras e pedaços de degraus carcomidos. Ebenezer desceu com cuidado, já bem acordado e sóbrio, mantendo a espada em prontidão para o caso de encontrar alguma criatura inesperada. Os corredores eram cobertos de poeira e teias de aranha, revelando sua idade: certamente esta era uma masmorra do passado, há muito abandonada e esquecida pelos seus construtores.

Explorou os túneis como o aventureiro experiente que era, escapando de armadilhas e enfrentando os monstros que encontrava. Bastaram alguns aposentos, no entanto, para começar a prever com antecedência onde estaria cada armadilha e monstro, e que tesouro encontraria; era quase como se já houvesse explorado aquela masmorra antes. E, de fato, já o tinha feito: logo a reconheceu como a de uma de suas primeiras aventuras, quando ainda um jovem garoto em busca de fama e fortuna. Ficava mais claro a cada corredor que explorava e aposento em que entrava; até as passagens secretas estavam todas nos mesmos locais.

Convencido de que era aquele o lugar, Ebenezer percorreu os corredores como lembrava ser o caminho até a câmara principal, esperando encontrar o cadáver do dragão que havia então derrotado. E lá estava – mas longe de ser um cadáver! A criatura o atacou com a baforada ácida no instante em que entrou no aposento, e foi por pouco que Ebenezer conseguiu se esquivar e evitar ser derretido. Quase sem pensar, investiu contra o monstro, procurando o local na sua barriga onde uma cicatriz revelava o ponto fraco que, na batalha anterior, levara longas esquivas para descobrir. Golpe certeiro: a espada cravou fundo na carne da criatura, banhando o velho guerreiro em sangue dracônico. A fera urrou de dor e caiu morta no chão.

Triunfante, Ebenezer retirou a espada da criatura e procurou o lugar onde, sabia, estaria seu tesouro. Estava todo lá: montanhas de jóias, ouro e outros objetos valiosos. No entanto, sua atenção foi desviada para algo que não havia notado da outra vez – ao lado das pilhas de moedas havia uma nova escadaria de mármore, levando a um nível ainda mais profundo e desconhecido da masmorra. Não pensou muito e desceu com cuidado os degraus.

O novo nível da masmorra era muito melhor cuidado que o anterior. Não havia qualquer sinal de poeira ou sujeira nas paredes; aparentava ser uma masmorra do presente, ainda em uso por quem quer que a tivesse construído. Ebenezer percorreu os túneis com cuidado, mas surpreendeu-se em encontrar todas as armadilhas desativadas, os monstros derrotados e os tesouros saqueados. Mais: espantou-se ao reconhecer neste nível o mesmo desenho do anterior; era como se ainda explorasse os mesmos túneis, apenas depois de serem esvaziados de qualquer conteúdo de interesse.

O guerreiro se acalmou com a falta de ação e, com a guarda baixa, seguiu o mesmo trajeto anterior até a câmara principal. Não se surpreendeu com o que havia lá: o cadáver do dragão abatido, já velho e apodrecido. Olhou em volta à procura do tesouro, mas não o encontrou; todo ele já fora saqueado. No entanto, reparou em um detalhe que lhe havia escapado anteriormente: uma pequena ninhada de ovos de dragão abertos. Desembainhou a espada e se aproximou com cuidado, esperando um ataque surpresa de um dos filhotes.

Nem todo cuidado do mundo, no entanto, o prepararia para o que encontrou. Ebenezer largou a espada e levou a mão à boca para segurar o vômito: dentro dos ovos quebrados estavam os restos mortais de uma dúzia de fetos dracônicos. Sem a mãe para chocá-los e alimentá-los, estavam abandonados à própria sorte antes mesmo de nascerem.

O guerreiro se ajoelhou e socou o chão repetidas vezes, deixando o sangue das mãos esfoladas misturarem-se às lágrimas que caíam dos olhos. Reunindo o tanto de determinação que ainda possuía, ergueu o rosto em prantos e olhou para o lado. Como imaginou, havia outra escadaria de mármore. Um pouco relutante, pegou a espada do chão e caminhou até ela, e então desceu os degraus para explorar o nível seguinte da masmorra.

Os túneis do terceiro nível eram de uma aparência estranha a Ebenezer. As paredes eram feitas de um metal límpido e reluzente, que refletia de forma embaçada a imagem do guerreiro quando ele as olhava diretamente; se o perguntassem, diria que estava em uma masmorra do futuro. Não demorou a reconhecer também nela o mesmo desenho dos níveis anteriores, e decidiu seguir sem interrupções o mesmo caminho em direção à câmara principal.

Mal entrou nela e foi rapidamente atacado – teve tempo apenas de se defender porcamente, levantando a espada para bloquear o adversário. Desviou de outras duas investidas antes de assumir uma postura adequada de combate, e ver o seu oponente: um esqueleto animado, com o equipamento e o porte de um guerreiro. Bloqueou outro ataque, e desta vez conseguiu desferir um contra-golpe que desequilibrou o inimigo. Com ele caído, fincou-lhe a espada com força no peito, atingindo o resto de carne que ainda havia presa entre os ossos. No entanto, ao olhar para baixo, viu algo que o fez arregalar os olhos e quase cair assustado no chão.

O esqueleto possuía, preso ao pescoço, um medalhão exatamente igual ao de Ebenezer, aquele que servia de lembrança do velho Marley. Quase por reflexo o guerreiro levou à mão ao peito, e então olhou naquela direção para confirmar o que havia encontrado: era ele, e não o esqueleto, que estava com a espada cravada na carne. Olhou novamente para cima e viu o teto da masmorra; um pouco mais ao lado, teve tempo de ver um guerreiro desconhecido retirando a arma do seu corpo, antes de tudo escurecer em um urro de dor…

***

Foi acordado de manhã pelas vozes de três crianças no beco onde adormecera na véspera. Correram assustadas ao ver o velho abrir os olhos e se levantar, mas uma delas tropeçou e caiu.

– D-desculpe! D-desculpe! Foi tudo idéia deles! Não faz nada de mau comigo, por favor!

Ebenezer podia perceber o pavor na voz; a reconheceu também como uma das crianças que pediram esmola na noite anterior. Um pouco atordoado com o que passara – havia realmente acontecido? -, atirou um saco cheio de moedas para ela, e seguiu caminhando em meio a agradecimentos aliviados.

Desde então o velho Ebenezer nunca mais foi o mesmo. Antes um aventureiro avarento e ganancioso, agora era gentil e generoso com os pedintes, e nunca mais conseguiu levantar uma arma contra uma criatura viva. Chegou mesmo a encabeçar e financiar campanhas em defesa dos direitos dos monstros de masmorras, promovendo longas cruzadas e programas de assistência e conscientização.

Ainda que tudo não passasse de um sonho, que nunca tivesse sido visitado pelo fantasma do velho companheiro e explorado as três masmorras do passado, presente e futuro, ainda assim teria para sempre consigo a memória daquela aventura de Natal, para lembrá-lo de que havia mais na vida do que os tesouros brilhantes que tão avidamente cobiçara.

X-Men – Garotas em Fuga

X-Men – Garotas em Fuga é uma edição especial do grupo mutante, mas estrelando apenas as suas garotas – no caso, Vampira, Lince Negra, Garota Marvel, Psylocke, Tempestade e a Rainha Branca; o título original do projeto, inclusive, era X-Women, para destacar este fato. A história escrita por Chris Claremont conta qualquer coisa sobre um resgate na ilha de Madripoor, mas, francamente, quem é que tá prestando atenção? O que realmente importa é o artista convidado para ilustrá-la, o mestre dos quadrinhos eróticos Milo Manara.

Da primeira à última página, é a arte de Manara a grande estrela da edição, enquanto o roteiro de filme de Sessão da Tarde está lá apenas como ornamento. O destaque, como seria de imaginar, são as mulheres: diferente daquela volúpia inverossímil tradicional dos comics, com suas cinturas impossivelmente finas e bustos impossivelmente largos, as mulheres de Manara são curvilíneas e sensuais, mas sem deixarem de parecer reais; como diz Nick Lowe no posfácio, elas não são como a sua vizinha, mas poderiam ser (se você tivesse a sorte de morar ao lado da garota mais gostosa da cidade). Algumas delas inclusive lembram mulheres reais – olhem para a Vampira em algumas cenas e digam se ela não está a cara da Liv Tyler. É difícil não se deixar levar pelo voyeurismo e apenas admirar alguns quadrinhos, sem prestar muita atenção no que está acontecendo.

Claro, ainda é uma história de super-heróis Marvel antes de uma do Manara, o que quer dizer que a censura não é de 18 anos. Há alguns ângulos estratégicos aqui e ali, mas o máximo de nudez de fato que você vai encontrar são um biquini fio dental e uma coadjuvante vestindo apenas um casaco aberto da cintura para cima (que logicamente oculta os detalhes mais interessantes da sua anatomia). O resultado final lembra um pouco o reboot cinematográfico d’As Panteras, aquele com a Drew Barrymore, a Lucy Liu e a Cameron Diaz, inclusive por ter mais explosões do que conteúdo. Também falta um pouco de dinamismo na arte em algumas cenas de ação, embora não seja nada que atrapalhe demais.

Enfim, X-Men – Garotas em Fuga não é lá a melhor coisa que já foi feita com o grupo, e alguém esperando uma história especialmente inovadora ou cativante provavelmente vai se decepcionar bastante, mas não deixa de ser uma releitura interessante das personagens. E, é claro, as mulheres do Manara sempre valem a pena…

After Dark

A noite é um universo paralelo. Seja em casa ou na rua, em frente ao computador ou em uma casa noturna, é como estar em um mundo alternativo, com outras leis, outras regras. É interessante notar essa mudança: longe da luz do sol, fora das suas rotinas diurnas, as pessoas não são as mesmas, e mesmo o tempo às vezes parece correr de forma diferente.

After Dark (ou Após o Anoitecer, na edição nacional da Alfaguara Brasil), do escritor japonês Haruki Murakami, é um livro sobre a noite. A história toda transcorre em uma única madrugada; você pode mesmo acompanhar a passagem do tempo pelos títulos dos capítulos, que marcam a hora em que eles começam. E os seus personagens e situações são também aqueles que habitam o cenário noturno, esse mundo estranho que existe entre a meia-noite e o nascer do sol.

O roteiro acontece basicamente em duas frentes. Numa delas temos a história de Mari Asai, uma jovem que perdeu o último trem para casa e pretende passar a noite em um restaurante 24 horas de Tóquio lendo um livro. Eventualmente, claro, ela será abordada por um jovem rapaz, um músico que para no local para jantar no caminho para um ensaio, e isso mudará os seus planos para a madrugada.

Na outra frente conhecemos Eri Asai, a bela irmã de Mari, que dorme um sono “perfeito demais, puro demais” para ser normal – na verdade, ela está adormecida há dois meses. Nesta noite, no entanto, exatamente à meia-noite, eventos estranhos começam a acontecer no seu quarto, que poderão ou não enfim despertá-la.

Murakami tem um estilo interessante de escrever, narrando os acontecimentos a partir de uma espécie de câmera imaginária, descrevendo como ela se aproxima ou afasta dos personagens, foca determinados pontos do cenário, etc. É um pouco como se estivesse nos contando o roteiro de um filme. Somos transportados, assim, ao seu universo particular, repleto de acontecimentos oníricos que nos confundem sobre onde acaba a realidade e começa o sonho.

Não se trata de uma história muito convencional, no entanto, com um enredo que vai construindo tensão até chegar a um desfecho climático. A trama se desenvolve um pouco como um ensaio de jazz, com idas e vindas de personagens, e diálogos que ocorrem como improvisos instrumentais. O final é inconclusivo para quem espera resoluções para todas as situações; como prega a filosofia oriental de maneira geral, o caminho aqui é mais importante do que o destino, como a própria noite, que nem sempre espera pela melhor hora para acabar.

É um ótimo livro, enfim, de leitura gostosa e com personagens cativantes. Recomendo para qualquer um que já passou madrugadas em claro, na rua ou em casa, ou que já preferiu em algum momento os sonhos noturnos à claridade mundana do dia.

Magibol Alpha

Então, eu to há mais de ano com esse netbook pronto, esperando um amigo diagramar. Infelizmente ele tem andado ocupado e tem atrasado um bocado o trabalho, de forma que ele próprio já ficou bastante desatualizado em relação aos últimos acontecimentos do cenário de Tormenta. Assim, resolvi lançar pra download um PDF com todo o texto do material, pra quem já quiser utilizar em jogo e dar algum feedback bacana.

Pra quem não conhece, magibol é um esporte fantástico criado por mim pro cenário de RPG Tormenta, praticado pelos magos do mundo. Pense em um quadribol que faz sentido, apesar de Harry Potter não ter sido a minha principal inspiração, mas sim o futebol do nosso próprio mundo. No PDF do jogo vocês vão encontrar:

  • regras completas pra usar o magibol no 3D&T Alpha, que eu acho que ficaram bem bacanas e das quais eu to especialmente orgulhoso;
  • dicas e idéias para construção de jogadores de magibol, incluindo novas vantagens/desvantagens e um novo kit de personagem;
  • 28 jogadas de efeito para tornar seus jogos mais emocionantes e imprevisíveis;
  • descrição completa do esporte e a sua situação no mundo de Arton logo antes dos acontecimentos do livro O Terceiro Deus, com três pequenos contos, regras variantes praticadas em alguns reinos, 40 equipes da Grande Liga de Magibol do Reinado, o magibol na Academia Arcana de Valkaria, regras especiais para jogar magibol nas áreas de Tormenta, e algumas coisinhas mais;
  • 21 idéias de aventura usando o esporte;
  • um mini-cenário, Esféria, para quem quiser jogar magibol fora de Tormenta.

E é isso. Para quem se interessar, o PDF com o texto pode ser baixado clicando aqui.

Comentários a respeito podem ser feitos nesse post mesmo, ou no fórum da editora Jambô.

Meu Amor é um Vampiro

Antes de mais nada, é sempre bom ressaltar a masculidade e hombridade deste blog e do seu autor. Sou adepto das ideias do grande filósofo do século passado, Seu Madruga, segundo o qual um homem deve ser feio, forte e formal; uma boa história pra mim tem que envolver sexo casual, tiroteios, explosões, socos, chutes, e, se sobrar espaço (mas sendo evidentemente um elemento descartável), alguma reflexão filosófica genérica sobre a natureza da vida. Apesar disso, no entanto, também não sou um completo bruto e insensível – é preciso ser homem também para reconhecer que há mais além testosterona pura no mundo, e saber admitir quando se é tocado de alguma forma por uma história mais, assim, sensível. Já fiz isso antes por aqui, aliás, mais de uma vez até.

De qualquer forma, se me pedissem para recomendar uma história sobre vampiros, e ainda mais uma que envolvesse algum tipo romance, eu provavelmente indicaria sem pensar essa aqui como o que de melhor já foi feito no tema. Meu Amor é Um Vampiro, no entanto, coletânea de contos organizada por Eric Novello e Janaína Chervezan, também mereceria uma meção honrosa por vários motivos – o primeiro deles o fato de eu ser amigo de algumas das autoras, que me cobram essa resenha há algum tempo, mas não só ele, evidentemente.

Os contos em geral possuem visões bastante heterogêneas a respeito das lendas vampíricas. Não há nada tão extremo quanto brilhar como purpurina à luz do sol, claro, mas temos algumas quebras de paradigmas bem interessantes mesmo assim. Isso pode bem desagradar alguns puristas, e eu até me peguei perguntando algumas vezes o que uma pré-adolescente fã de Crepúsculo pensaria de algumas das histórias; mas, a bem da verdade, também é parte da riqueza da coletânea, tornando-a mais interessante ao resto do público.

Assim, há desde histórias açucaradas com um pé mais fundo na fantasia e nos seres místicos, com direito a fadas, dragões e bruxos (em A primeira noite de neblina, de Adriana Araújo, e O presente, de Valéria Hadel), até histórias mais violentas e sensuais, com muito sangue e torsos descamisados (O vermelho do teu sangue, de Cristina Rodriguez). No meio disso tudo, temos espaço para uma viagem à Inglaterra vitoriana com um certo quê de Hellsing (Meu Amor Eterno, de Ana Carolina Silveira), alguns romances mais juvenis (O Rosa e O Negro, de Nazarathe Fonseca, e Feio como a Fome, de Regina Drummond), e algumas interpretações mais curiosas dos mitos vampíricos (O Vampiro Genérico, de Rosana Rios, e Nix, de Giulia Moon). Pessoalmente, no entanto, achei que a melhor história foi Sede, de Helena Gomes, que tem como protagonista o ajudante de um vampiro ancião, e conseguiu me cativar com a sua paixão platônica proibida.

Um ou dois contos estão um pouco abaixo dos demais, mas a média geral no fim até que é bem positiva. Descontando-se aí o excesso de açúcar (não é um livro recomendado para diabéticos), são histórias bem concebidas e narradas, e que podem ser boas leituras para qualquer um que goste dos sugadores de sangue. E em último caso, claro, para quem for macho demais para esse tipo de coisa, ainda pode ser um bom presente pra namorada.

RPG e Experiência

Mais um desses devaneios que surgem de conversas despretensiosas. Esse, especificamente, saiu de umas palavras que troquei com um amigo na frente da Jambô algum tempo atrás, onde estávamos falando um pouco sobre o 3D&T, que, não tento esconder, é um sistema que eu gosto bastante, talvez mesmo o meu favorito. Falávamos especificamente sobre as regras para magia, que eu vejo há algum tempo já como um redundância dentro dele – quer dizer, tecnicamente, as regras básicas já servem para realizar efeitos mágicos; basta você colocar pontos em Poder de Fogo e dizer que são mísseis mágicos, ou em Armadura e interpretar como proteção mística, e daí por diante. Independente de como tenha seguido a discussão, acho que isso pode levar a algumas divagações interessantes, não tanto sobre o próprio 3D&T quanto por outras questões que podem surgir daí.

Acredito que o grande objetivo de qualquer um ao jogar RPG seja o de ter algum tipo de experiência. Do que exatamente consiste essa experiência pode variar de pessoa para pessoa, e mesmo de momento para momento – para alguns é só passar algumas horas dando risadas com alguns amigos, para outros pode ser exercitar o pensamento lógico e estratégico, outros ainda querem exercitar dotes artísticos (sejam eles quais forem), e, claro, sempre há os que acham que o RPG pode servir para encontrar algum tipo de verdade oculta sobre o mundo e o universo. Essencialmente, no entanto, o objetivo final é simplesmente o de poder olhar para trás, pensar no tempo em que estava jogando, e dizer para si mesmo aquilo não foi tempo perdido, valeu a pena cada minuto. Isso vale não só para o RPG, claro, mas para boa parte de todo o resto que não envolva aí instintos biológicos básicos, tipo sobrevivência ou reprodução (embora às vezes e/ou para alguns possa ser mais importante que ambos) – Joseph Campbell mesmo já dizia que o que procuramos na vida não é tanto um sentido para ela como uma experiência desse sentido, e isso pode estar em um partida de RPG da mesma forma que em um culto religioso, filosofia pessoal, time de futebol, música e artes em geral, ou tudo isso junto, em momentos diferentes ou não.

Enfim, cortando toda a pseudo-filosofia, o que isso implica especificamente dentro do RPG? Que cada sistema ou jogo vai ter uma abordagem diferente sobre essa experiência, e, em geral, oferecer toda uma experiência diferente ao ser jogado. Isso não está só no cenário de jogo, personagens e roteiros que podem ser aproveitados em aventuras; está nas próprias regras de jogo dele, que fazem com que certos elementos funcionem de determinada forma, ou certas ações tenham mais ou menos chances de sucesso, e assim acabam influenciando as atitudes e escolhas dos jogadores. Não adianta ninguém aí dizer que o que vale mesmo é a interpretação ou esses chavões e frases prontas; é só lembrar daquela velha máxima que diz que, se o sistema realmente não importasse, ninguém faria alterações nele para se adequar aos seus gostos.

O exemplo clássico e óbvio é o D&D. D&D sempre foi muito mais uma experiência do que propriamente um jogo; algumas campanhas publicitárias chegam mesmo a destacar isso, convocando os possíveis interessados a conhecer a grandiosa experiência D&D, ao invés do simples e mundano jogo D&D, e D&D Experience já foi mesmo o nome de uma convenção organizada pela Wizards of the Coast. Isso também se reflete no funcionamento e mecânicas gerais dele: essencialmente, em D&D, um guerreiro funciona de forma completamente diferente de um mago, que funciona completamente diferente de um ladrão, e daí por diante; toda a experiência de jogar pode ser bastante diferente para cada um deles, pois eles possuem capacidades e funções diferentes, e mesmo certas regras podem vir a funcionar de forma diferente dependendo da classe escolhida.

Esta é, inclusive, uma das grandes questões acerca da 4º edição, pela forma como ela tenta uniformizar a experiência do jogo. Pelo que pude ver em resenhas e comentários gerais, tanto positivos como negativos, a nova edição estabeleceu quatro formas básicas de jogar, os infames roles das classes personagens, que muitas vezes definem seus poderes e habilidades mais do que o seu próprio conceito. Por um lado isso até traz algumas coisas interessantes – por exemplo, a facilidade em criar novas classes se você puder encaixá-las em um dos roles; e eu também achei interessante a forma como o Livro do Jogador consegue fechar bem toda essa experiência de jogo, estabelecendo até mesmo um objetivo a ser alcançado (ou só eu reparei que o livro sugere que a carreira de um herói deve acabar no 30º nível, de uma entre as formas sugeridas pelo seu Epic Destiny?). Por outro lado, no entanto, toda a experiência do jogo fica mais restrita e reduzida, uma vez que muitos personagens conceitualmente diferentes vão acabar funcionando de forma bem parecida em muitos aspectos; você pode até mesmo ter um mago e um arqueiro com uma habilidade rigorosamente igual, só que enquanto o primeiro dispara Mísseis Mágicos, o segundo lança uma Saraivada de Flechas, ou coisa que o valha. Não que isso seja necessariamente ruim, mas é uma mudança na forma de experimentar o jogo que nem todo mundo vê como benéfica.

O outro lado da moeda vem de jogos como GURPS ou Mutantes & Malfeitores. Aqui, não há uma experiência pronta; você monta a sua própria experiência, a partir de peças e opções previamente apresentadas. Você pode montar um personagem cheio de habilidades diversas em GURPS, ou então ir inventando formas de misturar poderes, extras e falhas no M&M, e o resultado final vai ser uma experiência de jogo completamente diferente, com personagens que funcionam de forma diferente. Fazer esse trabalho de montagem pode ser bem uma diversão auto-contida até, para quem gosta de brincar com números e pontos.

É por esse lado também que vai o 3D&T, mas de uma forma muito mais extrapolada. Pois essa é a grande virtude e, ao mesmo tempo, o grande defeito dele enquanto sistema de RPG: não há uma experiência pronta, nem mesmo peças para montar essa experiência. O que há é um sistema de jogo simples e funcional, que te deixa completamente livre para desenvolver a tua experiência em cima dele; ele te dá mínimo que tu precisa pra jogar, e deixa o resto por tua conta. O 3D&T per se, simplesmente as regras de jogo e nada mais, é realmente simplório, superficial e sem brilho – é preciso algum trabalho de imaginação para torná-lo interessante, e ver bolas de fogo onde não há uma lista de feitiços conhecidos, ou então espadas onde não há uma linha dizendo espada (dano 1d8) em qualquer lugar da ficha do personagem. Mas, uma vez que se tenha esse trabalho, a liberdade que se ganha na experiência do jogo tende a compensar.

Lembro, por exemplo, de alguém algum tempo atrás comentando que era impossível jogar campanhas longas de 3D&T, pois simplesmente não havia material de jogo suficiente para isso. Eu discordo, pelo menos da primeira parte; já consegui jogar ótimas e divertidas campanhas de 3D&T simplesmente mudando o foco da partida do ganho de experiência e desenvolvimento de habilidades para o desenvolvimento dos próprios personagens e da história da campanha. Em outras palavras, o objetivo não era pegar aquela classe de prestígio apelona, ou aprender aquele feitiço de enésimo nível; era simplesmente cumprir os objetivos estabelecidos para o personagem, seja vingar-se de quem ele queria se vingar, ou encontrar aquilo que ele estava buscando, ou qualquer outra coisa. O 3D&T, nos seus melhores momentos, é de fato um jogo para jogar sem alterações, não porque seja perfeito, mas porque as regras simplesmente não devem ser o foco da partida.

Isso não quer dizer que o 3D&T não possa ter uma experiência mais corpulenta em termos de regras, claro. Os próprios materiais para ele, até mesmo nas fontes consideradas “oficiais”,  vez por outra tentam oferecer essa possibilidade – e dá-lhe kits de personagem, Vantagens Únicas, Poderes Garantidos, Caminhos da Magia, e outras dúzias de regras extras muitas vezes mal-coladas com o resto do sistema. Eu mesmo vez por outra gosto de brincar em cima destas possibilidades, ainda que raramente pensando em usar em jogo, vide aí os maginautas, laptops místicos e poderes sombrios, entre outros. Em geral, no entanto, eu acho que o grande brilho do 3D&T está em não tornar isso necessário, mas, se tanto, uma opção; está em ter um poder psíquico funcionando da mesma forma que uma magia, e ainda assim eu conseguir ver ele no jogo como uma coisa diferente, sem precisar jogar toda uma série de dados diferentes para isso.

O que também não quer dizer que isso torne 3D&T um sistema necessariamente melhor do que todos os outros, claro. É um sistema diferente, que oferece um tipo de experiência diferente; e, em geral, a grande questão é que grupos e pessoas diferentes estão atrás de experiências diferentes. Alguns podem gostar do modelo D&D, de ter toda uma série de possibilidades prontas para serem experimentadas, enquanto outros podem preferir o modelo monte-o-seu-jogo do GURPS e Mutantes & Malfeitores. Quanto a mim, em geral depende do momento, e da companhia.

E, por fim, nada disso quer dizer também que eu deva ser levado muito a sério em qualquer destes devaneios. Não sou, nem quero ser, qualquer tipo de pretenso especialista no assunto, nem estou tentando descobrir a América ou inventar a roda; mas apenas, se tanto, divagando um pouco sobre assuntos aleatórios do meu interesse. Mas acho que seja um devaneio interessante, e que pode trazer algumas boas reflexões a respeito da experiência de jogar RPG.


Sob um céu de blues...

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