Arquivo para janeiro \23\-03:00 2012

Paisagismo

Um sol oculto ilumina o céu azul, as poucas nuvens sobrevoando o campo verde que se alarga no ponto onde a vista acaba, enquanto as cabras pastam a grama que se transforma em moitas que se transformam em árvores após a cerca, escondendo de quem as vê todo um universo que expande-se entre suas folhas e galhos, até ser interrompido pela rocha do morro que se eleva no seu limiar, um maciço monte de pedregulhos que sobe até perto dos céus cortado por uma pequena via de destino incerto, logo deixado para trás e cedendo espaço ao vasto lago de ondulações escuras, pássaros e peixes saltitantes, fazendo fronteira com a margem do deserto verde e céu alaranjado do poente, antes que a escuridão fria das luzes artificiais e cubos de concreto que escondem a lua aposse-se do horizonte quando o ônibus enfim chega na rodoviária.

Panorama do Inferno

Um pintor louco sem nome apresenta aos leitores sua obra: retratos de paisagens infernais, com cadáveres que dançam enquanto queimam e sessões públicas de decapitação, pintadas com uma tinta feita do próprio sangue do artista. E em cada imagem, uma história – um micro-conto em quadrinhos, revelando em detalhes o mundo insano e grotesco de uma vida atormentada pela sombra de um grande deus-cogumelo nuclear, montando um perturbador Panorama do Inferno por vezes bem mais próximo da realidade que o traço caricato faz parecer.

Esta é, fundamentalmente, a sinopse desse velho lançamento da Conrad, de Hideshi Hino, um dos mais aclamados autores de terror do Japão, apesar de não ser exatamente muito conhecido fora dele – ainda que outras obras suas tenham sido lançadas posteriormente diretamente para livrarias pela editora Zarabatana. Junto com algumas obras de Junji Ito, ele representou um período um pouco mais desbravador dos mangás lançados por aqui, apostando em autores consagrados de gêneros alternativos, antes deles caírem na mesmice dos shonen e shoujo genéricos. E Panorama do Inferno é, ainda, uma obra bem mais perturbadora do que outras lançadas nessa época, por seus protagonistas cruéis e insanos, pela sua naturalidade quase poética em tratar do grotesco, e pelo tom auto-biográfico dado por um autor que, segundo revela no posfácio, se vê mais próximo da insanidade do seu personagem do que ele próprio acredita ser saudável.

Panorama do Inferno, enfim, é uma obra grotesca, perturbadora e enojante. E essas são as suas grandes qualidades – uma pintura de um inferno pós-nuclear fantástico, porém com alguma estranha e assustadora verossimilhança. Quem ainda achar por aí, pode valer a pena dar uma olhada.

Haicai

Chove chuva
Chove sem
Parar.

Dandelion Wine

Então passou o natal, passou o ano novo, e estamos oficialmente nas férias de verão. Tecnicamente ela já começou antes disso, eu sei, mas na prática é agora que ela começa a ser o assunto da vez – basta ver a publicidade, programas de televisão e blogs em geral: este é o momento da profusão de especiais temáticos sobre praia, mar, biquínis… Pra não ficar para trás na tendência, uma pequena resenha daquele que considero um dos melhores livros sobre esta estação, Dandelion Wine, do mestre Ray Bradbury.

O livro tem como protagonistas os irmãos Douglas e Tom Spaulding na cidade fictícia de Green Town, inspirada na cidade natal do autor, Waukegan, no estado norte-americano do Illinois. A cidade e os personagens também estão presentes em outros livros dele, Something Wicked This Way Comes e Farewell, Summer, que fecham a chamada “trilogia de Green Town.” No caso, este primeiro volume começa no início do verão de 1928 – que nos Estados Unidos, é sempre bom lembrar, ocorre entre junho e agosto, e não entre dezembro e fevereiro -, quando Douglas, aos treze anos, tem uma epifania sobre o significado da sua vida. Motivado por isso, ele decide registrar junto com o irmão todas as sensações, acontecimentos e descobertas que ocorrerem durante a estação.

A partir daí ele se desenvolve como um típico romance fix-up, formado menos por uma linha narrativa única do que por várias histórias semi-independentes, unidas por pequenos capítulos em que os irmãos conversam entre si e refletem a respeito dos seus acontecimentos – pense em algo como o outro clássico do autor, As Crônicas Marcianas, ou mesmo no brasileiro Neon Azul. Muitos dos contos inclusive já haviam sido publicados anteriormente à sua reunião neste volume, em revistas literárias e afins. Os próprios irmãos geralmente são apenas coadjuvantes nas histórias contadas, que versam muito mais sobre os outros habitantes e situações da cidade; o resultado final, assim, é menos uma única história com início, meio e fim do que um grande panorama geral sobre ela, seus personagens e suas peculiaridades. Temos lá um relojoeiro que quer construir uma máquina de felicidade, e acaba pondo em risco a sua própria no processo; uma máquina do tempo um tanto peculiar e única; uma despedida dolorosa; um misterioso assassino de jovens mulheres que ronda as suas noites; e outros tantos contos únicos e envolventes.

Acho que posso confessar aqui minha fanboyzice com Bradbury, que considero o melhor dos autores clássicos de ficção científica, e, como já discorri em outro momento, um dos poucos cujas histórias conseguem se manter atuais e cativantes mesmo décadas depois. E ele é também um dos melhores autores quando o assunto é a nostalgia da infância – a sua escrita é cheia de sensações e descrições impressionistas, por vezes quase como poesias em prosa. Frente às epifanias de Douglas e a inocência de Tom, é difícil não ser transportado de volta para a nossa própria infância, e as nossas primeiras descobertas sobre a vida, a morte e tudo o que acontece entre elas.

O que outros fãs do autor devem estranhar, no entanto, é o relativo realismo das histórias. Há lá alguns pequenos elementos de fantasia, uma máquina impressionante aqui, uma suposta bruxa acolá, uma certa referência a reencarnações em um dos contos mais tocantes do volume; mas é muito mais o fantástico no sentido todoroviano, onde há essa hesitações entre o maravilhoso de fato e o real, e você nunca pode ter certeza de que ele está lá realmente e não é apenas uma impressão passada pelo ponto de vista dos personagens. O que não impede, é claro, que que o livro seja vendido na sessão de ficção científica das livrarias, apenas por ser escrito por Ray Bradbury…

Em todo caso, Dandelion Wine é uma leitura única e envolvente, que eu recomendo facilmente para fãs do autor, ou apenas de boas histórias e boa literatura mesmo.

Z

No começo eram casos isolados, pequenas notas aqui e ali que me intrigaram pela frequência, mas ainda longe de assustar. Soube de um amigo de um amigo que havia sido infectado, eu mesmo cheguei a ver outro com meus próprios olhos, dentro de uma livraria de renome. Mas essas coisas acontecem, você está sujeito a pequenos surtos como estes algumas vezes. Pela minha experiência o melhor a fazer é se proteger em sua casa, armado com uma poltrona confortável e um bule de café, esperando ele passar.

Aos poucos, no entanto, comecei a desconfiar de que desta vez havia algo de diferente. Os seus números aumentavam em progressão geométrica; as vítimas identificadas passaram a ser contadas nas centenas, logo nos milhares. Parecia que para onde quer que eu me virasse havia uma fratura exposta, um pedaço de carne putrefata, um verme saindo dos olhos.

Me isolei em minha casa, fazendo da poltrona a minha armadura e da xícara de café a minha espada. Ao meu redor, meus aliados no exílio, organizados em fileiras e colunas pelas paredes da biblioteca. Minha fortaleza seria impenetrável; nenhum deles se aproximaria.

Como fui ingênuo. Não havia para onde correr, não havia onde se esconder. Um deles já estava mesmo oculto em minhas próprias fileiras, e, antes que pudesse perceber e me esquivar do seu ataque, ele pulou sobre mim com a fúria de um lobo faminto.

Senti uma dor lacerante e intensa enquanto ele me rasgava por dentro, como se me virando do avesso. Suas garras prendiam minha cabeça, e logo ele já se banqueteava com o meu cérebro. Reunindo minhas últimas forças, ainda com ele sobre mim, me arrastei até a mesa da biblioteca, onde peguei uma folha e um lápis e comecei a escrever:

É o fim. Eles estão por toda a parte. O Apocalipse dos livros sobre zumbis enfim chegou até mim.

Sertanejo Blues

Vou falar de um estilo musical cuja origem está no campo, na área rural. Seus músicos são filhos de gente simples, muitas vezes peões e camponeses mesmo, que aprenderam a tocar com parentes, outros músicos errantes, na igreja, ou às vezes sozinhos mesmo. A busca pelo dinheiro e a fama eventualmente os levou à cidade grande, onde começaram suas carreiras tocando em pequenos bares e festas populares. Entre a população proletária mais simples e alguns membros da classe média buscando diversão, conseguiram um sucesso razoável, vendendo grandes quantidades de discos e, posteriormente, chegando às rádios de massas. Músicos inspirados por eles algum tempo depois iriam fazer o mesmo na televisão, conquistando o público jovem e consolidando o estilo de vez no imaginário popular. Nada disso, no entanto, impediu que fossem criticados por suas letras simples, que falavam sobre a vida no campo, situações do cotidiano, ou, mais freqüentemente, sobre as dores do amor e a vida bebendo, fazendo farra e “pegando” mulher. Música séria, afinal, era a que esses críticos ouviam, longas sinfonias com variações rítmicas e cuidado técnico apurado.

De qual estilo estou falando? Do blues de raiz norte-americano, é claro. Mas não se assuste se pensou em outro. A sua história e a dos seus artistas é, de fato, muito parecida com a do nosso sertanejo. Gente do campo, de origem simples, que buscou fugir do trabalho duro em sítios e fazendas indo para cidade grande, tentando a sorte através da música. Alguma diferença significativa, talvez, possa se dar nas suas origens e influências prévias, em especial na influência da música africana sobre o blues, que não me parece tão evidente no sertanejo (e algum especialista sério no assunto pode me corrigir se for o caso) – a nossa influência musical do continente negro está muito mais no samba mesmo, que, pela sua origem urbana e mesmo a posterior transformação em um estilo semierudito, lembra mais o jazz do que o blues propriamente dito. O contexto social e cultural de ambos, no entanto, é sim muito parecido. Ambos são mesmo reconhecidos pela virtuose de alguns de seus praticantes, e até a famosa “dor de cotovelo” das canções sertanejas tem muito em comum com o feeling blue do blues (que também é muitas vezes causado pela rejeição de uma mulher – ou homem, tanto faz).

O ponto em que quero chegar é que muitas vezes, numa ânsia civilizatória tosca e que tem muito de mentalidade colonizada, parece fácil querer desmerecer a nossa música popular só por ser, bem, popular, e ignorar que a própria música que ouvimos na verdade tem origens e premissas muito semelhantes, que nos parecem mais dignas apenas por virem de fora ou terem se originado décadas atrás. Quem ouve Cream, Rolling Stones, Led Zeppelin ou qualquer outro herdeiro dos velhos bluesmen errantes não tem exatamente muita moral para falar mal de quem ouve Michel Teló ou outro dos herdeiros contemporâneos do sertanejo de raiz. Vamos refletir um pouco e admitir: ai, ai, se eu te pego, enquanto letra, não é muito pior do que hey, hey, baby, hey que um Big Bill Broonzy cantava oitenta anos atrás, e que já foi regravado por artistas do cacife do Eric Clapton, por exemplo. E o tal Teló pelo menos ainda tem mais de sertanejo de verdade, com o seu gingado dançante e riffs de acordeão, do que um Luan Santana, de quem eu já falei um tanto anteriormente.

É bom, enfim, tentar ver as coisas de uma perspectiva histórica, de longa duração, e se dar conta de que esse tipo de crítica não passa mesmo de um preconceito tosco, o mesmo que tanto se desdenhava da high society WASP norte-americana de sessenta anos atrás, por não entender os méritos do rock derivado do blues enquanto movimento social e cultural. É claro que ninguém é obrigado a gostar da música do rapaz, e eu mesmo não sou exatamente um fã, embora já tenha me pego cantarolando ela inocentemente algumas vezes… Mas dar chiliques por causa dele ser capa de revista é um pouco de recalque demais, a meu ver. Goste ou não, ele é sim um fato cultural relevante dessa temporada, desses que geralmente são esquecidos até o fim do ano – ou não, é claro, nunca se pode prever com certeza. E vocês podem mesmo estar falando mal do nosso Elvis – ok, ok, compará-lo ao Rei é exagero sensacionalista meu, no nível desses que são feitos por revistas semanais; mas pelo menos o nosso Bill Haley da vez ele pode muito bem ser sim.


Sob um céu de blues...

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