Arquivo para março \31\-03:00 2012

Journey

Journey começa com um peregrino em um manto vermelho no meio de um deserto. Não há um longo vídeo de apresentação em CG, nem qualquer história prévia: apenas você cercado de dunas por todos os lados. O único ponto de referência que você possui é uma montanha no horizonte com uma luz no seu topo; por falta de opção melhor, portanto, você decide ir em direção a ela. E, assim, parte em uma das jornadas mais únicas e envolventes dos videogames nos últimos tempos.

Tudo no jogo é mínimo. Não há tempo perdido com longas cenas entre as fases, nem dúzias de tutoriais ou menus onde escolher habilidades e poderes. Sequer há uma barra de energia ou qualquer coisa semelhante, muito embora a sua echarpe, cujo tamanho vai aumentando conforme você avança de nível, possa servir como um substituto equivalente.  O seu desafio em cada fase é menos o de vencer hordas intermináveis de inimigos e chefes apelões do que apenas explorar as regiões tentando descobrir o que fazer para chegar à próxima área. Nisso ele lembra bastante o clássico Ico do Playstation 2, e a sua continuação, Shadow of the Colossus, também me veio à mente várias vezes, graças aos cenários desolados e solitários e a ênfase em mostrar antes do que contar – para um jogo sem uma linha de diálogo sequer, é realmente impressionante a expressividade que ele possui, através tanto de histórias contadas por meio de murais estilizados, como se fossem feitos em alto-relevo, como pela forma magnífica como a música se mescla ao ambiente, dando o tom e a tensão de cada momento.

A isso se soma ainda uma direção de arte muito interessante, com personagens que lembram algo dos espíritos de A Viagem de Chihiro e outros clássicos do Estúdio Ghibli. Tudo colabora para criar uma aura única de mistério e fantasia, que, antes do que entregar de cara todo o seu significado, deixa a sua mente livre para interpretar os símbolos no caminho de acordo com as suas próprias idéias e experiências. A história toda é contada em não mais do que três horas, o suficiente para o jogo ser terminado em uma única sentada; mas isso até colabora para que ele seja uma experiência tão única, e você possivelmente irá querer voltar a jogá-lo mais de uma vez, seja apenas para vivê-lo novamente, seja para explorar melhor as áreas e adquirir todos os troféus disponíveis. Acho que desde Shadow of the Colossus mesmo que eu não tinha contato com um jogo tão envolvente na sua simplicidade.

Um outro elemento no qual o jogo também é bastante único é a sua abordagem multiplayer. Ele pode ser jogado on-line, e a cada vez que você entra ele irá selecionar um outro jogador que também esteja conectado e na mesma área que você para ser o seu companheiro. Não há qualquer indicação na tela do seu nome ou local de origem, muito menos uma forma de conversar com ele; seus únicos “diálogos” são feitos através de um pequeno sinal monotônico que você pode usar para chamar a sua atenção. Há um pequeno benefício por jogar com alguém desta forma, permitindo que você recupere mais rapidamente a energia gasta da sua echarpe, mas na prática mesmo isso não é realmente necessário para terminar o jogo; mesmo assim, jogar com outra pessoa é totalmente diferente de jogar sozinho: a sensação passada é mesmo a de que vocês são companheiros de jornada, mais do que meramente ferramentas para vencer os desafios, e assim você se sente menos sozinho em meio às paisagens desérticas à sua volta.

Journey, enfim, é uma experiência realmente única, que eu recomendo para qualquer um que tenha um Playstation 3. Droga, já vi gente dizendo por aí que valeria a pena comprar um console apenas para jogá-lo! (Mas não, eu não sou tão exagerado assim; sei como um videogame é caro hoje em dia…) Você não irá encontrá-lo à venda em lojas de eletrônicos, no entanto; ele é vendido exclusivamente on-line, através da PlayStation Store, por cerca de 15 dólares. Uma bagatela, se me perguntarem, para um jogo capaz de despertar sensações tão fortes.

Uma Máquina de Escrever em 2027

Achei uma máquina de escrever perdida entre os velhos pertences da família. Deve ter pertencido ao meu avô ou bisavô, não tenho certeza. Estava revirando os entulhos atrás de algo para vender para a loja de penhores e lá estava ela, toda empoeirada, atirada no meio de fotos amassadas e livros velhos.

Devia valer um bom dinheiro, pensei, e a levei para a mesa da sala. Tirei um pouco do pó com as mãos, sentindo a sua aspereza e a temperatura fria do metal. Aos poucos se revelou um corpo enferrujado, com algumas falhas, mas ainda inteiro no que interessava. A fita estava inteira, e todas as teclas estavam lá. Apertei algumas delas, como que para testá-las. O tac tac tac que faziam a cada batida me chamou a atenção. Era um som aberto, duro e seco, como um tapa, que parecia muito mais vivo, muito mais real e físico, do que o tic tic tic diminuto dos teclados de computadores modernos.

Não tive coragem de levá-la comigo. Peguei apenas alguns livros, Hemingway, Fitzgerald e outros desses autores do século passado que ninguém mais lê. Saí do apartamento, bati a porta atrás de mim e desci correndo pelas escadas até o térreo. Estava a poucos passos de pisar na rua quando ouvi uma voz atrás de mim.

– Ei, você.

Me virei e vi a última porta antes da saída aberta, de onde uma mulher olhava na minha direção. Tinha a pele escura e cabelos negros encaracolados, e vestia um top sem mangas que deixava o umbigo de fora. Um pedacinho da sua barriga saltava para fora da calça jeans apertada, que parecia precisar de muito pouco para explodir ao redor dos quadris. Eu não conseguia parar fitá-los, desejando que realmente acontecesse.

– O aluguel está atrasado. São dois meses já, e o terceiro está acabando.

– Eu sei.

– Não esqueça.

Ela entrou e fechou a porta atrás de si. Eu fui para a rua, ainda pensando naqueles quadris. A cada passo que dava eu os via balançando na minha frente. Até que percebi que era um outdoor holográfico, desses que fazem um scan de retina quando você passa por eles e põem os seus maiores desejos para anunciar barras de cereais e refrigerantes. Publicidade 2.0, os especialistas os chamam. Balancei a cabeça e voltei para o meu caminho. Não demorei a chegar na loja de penhores.

Consegui exatos cinquenta e dois créditos pelos nove livros que levei. Não era um valor ruim, apesar de ser bem menos do que eu esperava. Estava passando o meu cartão de identificação para recebê-los quando percebi uma máquina de escrever em exposição muito parecida com a que deixei em casa, ainda que mais limpa e em melhor estado de conservação. Havia uma folha de papel amarelado pronta para ser usada.

– Interessado? São trezentos créditos. – perguntou o atendente.

– Não, obrigado.

Saí de lá pensando nos quatro meses em que trabalhei em uma loja como aquela. Eu pegava os itens mais valiosos que recebia e ia penhorá-los em outro lugar. Se quisessem vir comprá-los de volta, dizia que já haviam sido vendidos. Até que uma cliente viu o seu colar de pérolas em uma loja diferente e reclamou com o dono. Mas foram quatro dos melhores meses que já vivi.

No caminho de volta passei em uma loja de conveniências para comprar algo para comer durante a noite. Duas pizzas congeladas e um pacote de biscoitos. Total: vinte e oito créditos. Antes de seguir para o caixa passei também pela sessão de bebidas e peguei o uísque mais barato que encontrei.

A moça do caixa não devia ter mais do que vinte anos. Ainda tinha aquele olhar inocente típico da adolescência, como se fosse capaz de acreditar em qualquer coisa que eu dissesse. O cabelo estava preso atrás de nuca e ela vestia um uniforme da loja. Seus peitos mal faziam qualquer volume sob a camisa. Paguei os quarenta e seis créditos que devia e saí de lá pensando neles, em segurá-los e apertá-los. Quase podia vê-los na minha frente, a um mero esticar de braços de distância. Então percebi que era outro outdoor publicitário.

Cheguei no edifício junto com a vizinha que morava no apartamento em frente ao meu. Ela devia ter algo mais do que quarenta anos e tinha um corpo redondo e baixo, com pelo menos dois pneus saltando para fora da calça jeans. O top também era apertado, com um grande decote revelando o ponto de encontro de um par de seios volumosos. Os cabelos vermelhos, obviamente tingidos, eram cortados na altura do pescoço, e seu rosto tinha uma aparência cansada, cheio de rugas e marcas. Havia uma grande cicatriz sobre o seu olho esquerdo, que tinha uma aparência vazada, como um desses implantes de silicone de má qualidade que corrigem problemas de visão.

Ela ruborizou ao me ver, e subiu as escadas sem dizer uma palavra. Eu fui atrás dela. Seus quadris largos se moviam na minha frente, o direito, o esquerdo, o direito, o esquerdo, em um ritmo hipnótico. Nos separamos ao chegar no nosso andar, cada um seguindo em direção ao seu apartamento. Apertei a mão na fechadura para me identificar e entrei após a porta se abrir.

Dentro de casa tudo ainda estava no mesmo lugar em que havia deixado quando saí. A máquina de escrever ainda estava sobre a mesa. Deixei as compras ao lado dela e peguei um copo para me servir do uísque. Seu gosto era forte e seco, como só os uísques baratos conseguem ser. Peguei uma garrafa de água para misturá-lo e levei o conjunto todo para o sofá.

Liguei a televisão. Passei as duas horas seguintes alternando entre programas de humor e noticiários, chorando nos primeiros e rindo nos segundos. A garrafa de uísque não demorou em passar da metade, mas eu ainda não me sentia bêbado. Sequer estava minimamente tonto. Pequenos robôs em escala celular percorriam o meu corpo levados pelo sangue, eliminando qualquer vestígio de álcool que pudesse me entorpecer. Foram injetados em mim na última vez em que fui internado em um hospital público devido a um coma alcoólico.

Desisti de me embebedar e joguei o copo na parede, ouvindo-o se estilhaçar. Desliguei a televisão, levantei e decidi preparar uma das pizzas para a janta. Comi enquanto fitava a máquina de escrever. Ela parecia se encaixar com naturalidade naquele ambiente, como se houvesse um buraco com exatamente o seu formato ali, em cima da mesa. Era como se fosse algum velho amigo com quem há anos eu já dividia o apartamento.

Terminei de comer, deixei os pratos na pia e fui deitar. A minha cama era dura e fria, e o único cobertor que possuía não era muito eficiente em me aquecer. Me revirei de um lado para o outro pelo que pareceram horas, mas, ao olhar no relógio, vi que eram pouco mais do que alguns minutos.

Levantei e decidi me servir um pouco do que ainda restava da garrafa de uísque. No caminho até a cozinha, no entanto, me deparei novamente com a máquina de escrever sobre a mesa. Interrompi o trajeto e fui até ela. Me sentei na sua frente, e comecei a passar a mão sobre o seu corpo outra vez, sentindo a sua aspereza e o seu toque frio. Apertei algumas teclas.

Tac.

Tac.

Tac.

Após fazer isso por alguns minutos, voltei para a cama e dormi sem dificuldade.

Acordei no dia seguinte pouco antes do meio-dia, sem ressaca. Mais um presente das nanomáquinas percorrendo o meu corpo. As amaldiçoei com todos os palavrões que conhecia enquanto me vestia. Todo homem devia ter direito à sua ressaca. Uma mundo sem ressacas é um mundo sem arrependimentos, e eu não sei se gosto de viver em um mundo assim.

Saí de casa e fui para a rua. Não tive encontros imprevistos dessa vez. Era dia de visitar a agência de empregos e ver se conseguia um trabalho para sobreviver durante mais alguns meses. Peguei o trem elétrico que passava próximo ao edifício e cheguei lá em pouco tempo.

Marquei uma ficha no meu cartão de identificação e achei um lugar para sentar. Meu número era o 351. O marcador digital de chamadas estava no número 172. Para passar o tempo, eu reparava nas outras pessoas que estavam na agência ou que chegaram depois de mim. Haviam homens e mulheres, dos quinze aos sessenta anos, negros, brancos, índios. Uns poucos tinham implantes eletrônicos, um olho artificial aqui, uma mão ou perna mecânica ali. Todos, sem exceção, olhavam para o vazio enquanto esperavam, com aquele brilho opaco nos olhos que só os desiludidos possuem. Formávamos uma grande comunidade, uma nação de perdedores em seu ritual semanal de comunhão.

Foram longas horas até que o meu número fosse chamado. Levantei e fui até o guichê ser atendido. Não havia ninguém lá, apenas uma tela de computador com um alto-falante.

– Confirme seus dados, por favor. – uma voz metálica disse através dele.

Estavam escritos na tela meu nome, data de nascimento, tipo sanguíneo, número do seguro social, e todos os dados que parecessem relevantes sobre a minha pessoa. Apertei o botão para confirmar. A próxima tela dizia qual foi o meu último emprego e quanto tempo eu permaneci nele. Confirmei novamente. Foram mais duas telas até que o alto-falante me mandasse aguardar enquanto os dados eram processados. Após alguns minutos, enfim, veio a resposta.

– Não temos vagas neste momento adequadas ao seu perfil. Por favor, volte na próxima semana.

Uma tarde inteira perdida para ser atendido em cinco minutos e não conseguir nada. A história da minha vida.

Saí de lá e fui caminhando devagar até a parada do trem. No caminho havia uma papelaria, onde resolvi entrar após observar a vitrine por alguns minutos. O seu interior era dominado acessórios para tablets, canetas digitais, cadernetas eletrônicas. Apenas em alguns lugares havia algumas caixas e cartões para presentes, resquício de uma época em que o nome papelaria ainda fazia algum sentido. Estava me virando para sair de lá quando um dos vendedores veio em minha direção.

– Posso ajudá-lo?

– Eu estou procurando papel.

– Pa…pel?

Ele me olhou atravessado, como se eu fosse algum tipo de excêntrico, mas não se recusou a me guiar pela loja até um setor isolado em um canto longe da entrada, onde algumas pilhas de cadernos tradicionais e pacotes de papéis estavam expostos. Peguei um dos pacotes de cinquenta folhas e fui até o caixa pagar.

Depois disso fui direto para casa. Cheguei quando já estava escurecendo e comecei a subir as escadas até o meu andar. No meio do caminho encontrei a proprietária, descendo. Ela sorriu quando me viu e eu sorri de volta para ela. Quando passou por mim, me virei para trás e olhei mais uma vez os seus quadris.

Terminei de subir ainda pensando neles, e, ao chegar no meu andar, me deparei com todas as minhas coisas jogadas do lado de fora do apartamento. Após alguns segundos para me recompor, corri até o corrimão da escada e gritei:

– Sua puta! Vagabunda! Eu ainda vou meter em você! Vou meter gostoso no seu rabo, você vai ver!

– O que está acontecendo? – era vizinha da frente que abriu a porta do seu apartamento, vestindo uma camisola larga que ia do pescoço até os pés.

– Nada. Só estou sendo despejado.

Comecei a tentar juntar alguns pertences em silêncio, mas, ainda que fosse uma pilha pequena, eram coisas demais para que eu pudesse carregar sozinho. Ela então se aproximou de mim e perguntou:

– Você tem algum lugar para passar a noite?

– Eu me arranjo.

– Você pode passar a noite no meu apartamento. Amanhã você sai e tenta arranjar algum outro lugar para morar.

Aceitei a oferta, e, com a ajuda dela, levei os meus pertences todos para dentro. Comemos a outra pizza congelada, bebemos o resto do uísque e assistimos televisão por algumas horas, antes de irmos deitar. Ela foi para o seu quarto, enquanto eu me ajeitei no sofá com o meu cobertor velho.

No meio da noite acordei com ela acariciando os meus cabelos. Não pareceu se assustar quando eu abri os olhos, a puxei pelo pescoço e a beijei com força. Ela subiu com pressa no sofá, eu me virei para ficar por cima, e comecei a meter.

– Oh, Sr. Chinaski… – ela dizia a cada estocava que eu dava.

Metemos ainda outra vez e então ela se acomodou de lado para dormir entre os meus braços. Eu a abracei e tentei dormir de novo, mas não consegui. Alguns minutos depois me levantei com cuidado para não acordá-la e fui até a cozinha procurar algo para beber.

No meio do caminho encontrei a máquina de escrever em cima da mesa da sala, da mesma forma como estava no meu apartamento. No seu lado estava o pacote de folhas que eu havia comprado durante a tarde. Me aproximei devagar e sentei na sua frente, então abri o pacote e coloquei uma das folhas na máquina. Bati uma das teclas algumas vezes, apenas para testar se estava funcionando.

aaaa

Uma ideia então me ocorreu. Sobre o que eu gostaria de escrever? Antes que percebesse, meus dedos já começavam a formar uma frase.

aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa.

Não me pareceu muito boa, então a risquei e tentei pensar em outra coisa. Alguns segundos depois, comecei outra frase.

aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa
Cheguei em casa de madrugada

Cheguei em casa de madrugada, e fiz o quê? Não me parecia muito bom também. Risquei a frase mais uma vez.

Empurrei as costas contra o encosto da cadeira e olhei para o teto. Suspirei profundamente, e olhei novamente para a máquina de escrever. Então, em um lampejo súbito, voltei a escrever.

aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa
Cheguei em casa de madrugada
Achei uma máquina de escrever perdida entre os velhos pertences da família.

John Carter: Entre Dois Mundos

Antes de falar propriamente de John Carter: Entre Dois Mundos, acho que é importante destacar alguns pontos relevantes sobre ele e a obra que lhe deu origem. Para quem não sabe, o filme é baseado em um clássico da ficção científica do norte-americano Edgar Rice Burroughs, que foi recentemente reeditado no Brasil com o nome de A Princesa de Marte. Suas histórias foram publicadas originalmente em revistas pulp no começo do século passado, mais precisamente a partir de 1912; o fato do filme estar sendo lançado neste ano, portanto, não é exatamente uma coincidência, mas sim uma homenagem aos cem anos do personagem.

Em todo caso, o importante é ter em mente que a noção de ficção científica que se tinha um século atrás não era exatamente a mesma de hoje em dia, especialmente quando levamos em consideração aquela que era publicada neste tipo de revista. As divisões entre ela, a fantasia e o horror não eram assim tão nítidas quanto muitos consideram hoje, e você podia encontrar em uma história do Conan um culto de seguidores de Nyarlathotep, ou em uma pertencete aos Mitos de Cthulhu um viajante espacial. Some-se ainda os próprios avanços no conhecimento científico desde então – se hoje se sabe que as perspectivas de encontrar uma civilização humanoide perdida em marte não são exatamente muito animadoras, naquela época não era bem assim.

Isso faz muita diferença aqui, pois, ao invés de seguir o caminho fácil de tentar atualizar o personagem e torná-lo mais aceitável dentro dos paradigmas e conceitos do mundo atual, desde o início se vê que o objetivo é sim o de fazer uma homenagem à série original, até mesmo com uma pequena ponta do próprio Rice Burroughs no roteiro. Afinal, em um mundo onde as Tartarugas Ninja podem virar alienígenas, quanto custaria para fazer de John Carter um executivo falido de Wall Street, do seu método de viagem espacial algum experimento secreto da NASA, ou ter a Marte/Barssom dos romances originais substituída por Gliese 581c ou qualquer outro exoplaneta semelhante à Terra descoberto recentemente? Assim, antes de imaginá-lo como uma nova Tenente Ripley, pense nele como uma variação genérica do Conan (ou do He-Man – você também vai pensar nisso ao chegar em uma determinada cena, não se preocupe; e muito embora cronologicamente ele esteja mais para o seu avô), apenas substituindo os feiticeiros e demônios místicos por tecnologias alienígenas.

Essa tentativa de se manter fiel ao clima original de “espada de planeta” (ou sword and planet) é tanto o ponto fraco como o forte do filme. Ela realmente afasta um tanto a história do zeitgeist contemporâneo, digamos assim, por forçar um pouco demais a verossimilhança e a sua suspensão de descrença para funcionar direito; não surpreendentemente, o filme tem dado já um certo prejuízo. Por outro lado, no entanto, ele consegue ao mesmo tempo resgatar algo de nostalgia das aventuras despretensiosas de fantasia e ficção científica oitentistas, na linha de um Krull, O Último Guerreiro das Estrelas ou os filmes originais de Guerra nas Estrelas (quando a licença da série ainda permitia que o seu nome fosse traduzido para a língua de cada país), por exemplo.

Isso se reforça ainda pelo fato de que ele é sim um filme muito bem feito tecnicamente, com figurino e fotografia cuidadosos, atores bem escalados e que, se não impressionam especialmente, também não nos dão muita vergonha alheia de assistir, a parte por uma ou duas cenas isoladas, além de um trilha sonora mais clássica, que não se perde nas batidas eletrônicas genéricas como em tantos outros filmes de ação recentes. As cenas de ação, aliás, são bem dirigidas e escritas, e, Issus seja louvada, não há nada das orgias de câmeras lentas Zack-Snyderianas. Some-se ainda um humor bem executado, com um ótimo timing cômico, e você tem um filme de Sessão da Tarde divertido e envolvente como há um bom tempo não era feito.

Claro, ele é sim um filme de clichês, daqueles de jornada do herói mesmo, onde você tem uma princesa em perigo fugindo de um casamento forçado, um herói forasteiro com questionamentos internos a resolver, um grande discurso para inflamar o povo selvagem à guerra contra o império do mal, até algum resquício de mensagem moralista sobre a guerra e o meio ambiente (mas que, felizmente, consegue fugir de se tornar maçante e pedagógica em excesso). Mas ele é também um bom filme de clichês em cima disso, e digo isso com total sinceridade – nada de um Fúria de Titãs aqui, onde só por associá-lo com a minha experiência pessoal de jogador de RPG eu consegui tirar alguma coisa de minimamente positivo. Ele me lembrou muito mais o primeiro Piratas do Caribe, pela sua fantasia leve, despretensiosa e com ênfase na aventura sobre todo o resto. Só faltou mesmo o carisma de um Capitão Jack Sparrow para deixá-lo realmente em um patamar superior, muito embora seja feito um esforço até um pouco comovente para promover o capitão do filme de forma semelhante.

Acho interessante também falar sobre o avanço no uso do 3D, que finalmente começa a fazer alguma diferença. Pelo menos nas cenas aéreas, envolvendo as batalhas entre naves-libélula, você realmente consegue discernir alguma diferença de profundidade, e ajuda a criar assim todo um sense of wonder diferenciado. Não é nada que alguém que pague pela entrada normal vá sentir falta, é claro, e nem de longe é comparável ao que é feito em um A Invenção de Hugo Cabret, onde ele realmente se mescla a narrativa e adiciona toda uma nova camada ao enredo (sem trocadilhos); mas pelo menos você não se sente enganado por pagar o preço do ingresso mais caro, diferente de outros tantos filmes aí que saíram com o formato.

Na soma final, John Carter: Entre Dois Mundos é sim um filme bem bacana, a parte por ser uma aventura de jornada do herói bem clichê e sem grandes surpresas. Não é lá o filme que vai mudar a sua vida ou a história do cinema, mas, em meio a tantos Fúrias de Titãs, Imortais e Solomon Kanes que tem sido feitos recentemente, ele consegue ser até bem acima da média, na verdade.

A Situação

A Situação é o primeiro livro do norte-americano Jeff VanderMeer publicado no Brasil, pela Tarja Editorial, que, lançando-o em conjunto com Rei Rato, tem tentado trazer para cá alguns nomes importantes do movimento conhecido como new weird, que fez algum barulho no mercado editorial lá fora nos últimos dez anos. Diferente do livro de estréia de China Miéville, no entanto, este aqui é uma obra bem mais modesta, tanto em tamanho quanto em pretensões. Ao invés de um grande romance, trata-se de uma pequena novela, não muito mais do que um conto alongado, desses que você consegue ler tranqüilamente em uma sentada ou duas.

O tema central do livro é o mundo corporativo e as suas normas e burocracias, mas extrapolados ao nível do caos absoluto, enquanto um determinado funcionário é gradualmente isolado na empresa pelos seus colegas de trabalho sem motivo aparente. Pense nos personagens e histórias em quadrinhos do Dilbert, mas jogados em meio a um cenário surreal repleto de horrores biomecânicos e criaturas monstruosas. O resultado final lembra algo dos Laundry Files do Charles Stross, com os seus horrores cósmicos perambulando em meio aos corredores de um órgão público; e muito dos pesadelos clássicos de Franz Kafka, tendo me remetido durante a leitura tanto às transformações psicológicas de A Metamorfose como aos labirintos normativos de O Processo.

Não sei exatamente como classificar o livro. É sim um trabalho de fantasia, certamente, mas me parece um pouco vazio querer classificá-lo com o mesmo rótulo de um Tolkien ou George Martin, por exemplo. Ele parte muito mais da nossa própria realidade, adicionando elementos fantásticos em situações pontuais; mesmo assim, não acho também que realismo fantástico seja uma boa classificação – não é a mesma cosia que fazem um Gabriel García Marquez ou Haruki Murakami, afinal. As imagens que me vinham a cabeça durante a leitura eram muito mais as das pinturas de artistas como Salvador Dali e Max Ernst: a fantasia usada não como justificativa de todo o enredo, e nem como ferramenta dele; mas sim como subversão da realidade, formando uma espécie de lente de aumento em que os absurdos da rotina em um escritório se tornam mais claros e evidentes. Por isso, acho que talvez a melhor classificação para ele seja mesmo o de surrealista.

Uma coisa que torna a leitura um tanto maçante, em todo caso, é justamente a forma como essa lente parece se aplicar a praticamente tudo. O TVTropes tem uma denominação própria para isso: Our Dragons Are Different (ou Nossos Dragões São Diferentes); é a tentativa de fazer com que uma coisa familiar e clichê fique subitamente original simplesmente trocando algum elemento dela por outro completamente diferente. Então se dragões normalmente cospem fogo, você irá fazer os seus cuspirem relâmpagos; e se arquivos geralmente são grandes armários repletos de papéis e pastas, você os fará como, hum, um tipo de mamífero exótico em estado de decomposição. VanderMeer faz isso o tempo todo neste livro, e depois de encontrar com besouros-espiões, lesma-elevadores e baratas-revólveres, é difícil se impressionar muito.

É interessante também destacar o trabalho gráfico feito pela editora. Até para dar um pouco mais de volume para uma obra que não é assim tão grande em primeiro lugar, foram adicionadas algumas imagens na abertura de cada segmento, sempre acompanhada de versão em negativo no verso da página. Misturando desenhos das criaturas descritas no livro com colagens de fontes, elas conseguem reforçar bem o clima de estranhamento e surrealismo da história, criando um efeito bem interessante como resultado final. Só a fonte escolhida talvez pudesse ter sido menos exagerada (podem ver ela na capa aí em cima), acho, mas aqui é só o meu designer amador interno dando palpites mesmo.

Em todo caso, A Situação é sim uma leitura bem interessante, que usa a fantasia como forma de nos fazer pensar e refletir sobre o nosso próprio mundo um pouco, além dar alguns sorrisos com algumas piadas de humor negro aqui e ali. Mas bacana mesmo seria ver uma obra como Veniss Undergroud, essa sim mostrando tudo que o autor é capaz de fazer, lançada por aqui.

Carma

Anderson caminhava pela calçada e cuspiu em direção à rua. Pouco tempo depois, um homem em uma bicicleta com os pneus já gastos e carecas passou por cima do cuspe, o que o fez perder o controle e cair em meio aos carros, fazendo com que alguns deles freassem bruscamente e causassem um acidente que resultou em um grande engarrafamento.

Várias centenas de metros de carros parados atrás estava um ônibus, e entre os passageiros desse ônibus, Mariana. Por culpa do engarrafamento ela se atrasou para o serviço, e por causa desse atraso não consegui uma promoção que lhe daria um gordo aumento de salário. Isso vez com que ela fosse obrigada a tirar seus dois filhos – Mateus e Camila – de um colégio particular e matriculá-los no ano seguinte em um colégio público.

Na nova escola Mateus se envolveu com alunos mais velhos, que o iniciaram no consumo de bebidas alcoólicas, maconha e, mais tarde, cocaína e crack. Em poucos meses já não conseguia mais controlar o consumo de entorpecentes, e começou a assaltar pessoas na rua para sustentar o vício. Acabou preso, para o desespero da família, e foi executado em uma rebelião no presídio de menores.

No enterro de Mateus, Douglas, amigo de infânica do morto, e Juliana, prima distante dele, se encontraram novamente depois de anos, e antigos sentimentos adormecidos foram reacendidos nos dois. Começaram a namorar, e se casaram alguns anos depois. Tiveram dois filhos: Beatriz e André.

Os anos passaram e ambos cresceram. Aos 19 anos, André conseguiu seu primeiro emprego, e no mesmo dia saiu para comemorar com os amigos. Dirigindo bêbado enquanto voltava para casa, terminou por atropelar, na frente de seu novo local de trabalho, um senhor que caminhava pela rua. Ele morreu na âmbulância no caminho para o hospital: era o velho Anderson que voltava para casa depois de ser despedido, o que iniciou uma série de promoções que, no fim da cadeia de funcionários, permitiria a André entrar na empresa.

Epifania (4)

Sentava e lia uma revista econômica estrangeira, qualquer coisa sobre a crise do Euro e as fraudes na última eleição russa. Entre um gole e outro de água mineral sem gás, suspirava um tédio contagioso. Então, não mais que de repente, como que por mágica, se deu conta: era tudo tão óbvio! Fazia sentido agora, quando via por este ângulo. As coisas, o mundo, a vida… Tudo tinha o seu lugar, e ele agora o percebia. Como fora tão tolo até então? Estava tudo na sua cara, o tempo todo, bem embaixo do seu nariz!

Pensava já em tudo o que faria com esse conhecimento, as pessoas para quem o revelaria, os próximos níveis de iluminação que atingiria, quando as máscaras de oxigênio caíram do compartimento sobre a sua cabeça, e o avião em que viajava seguiu em queda livre até o oceano.


Sob um céu de blues...

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