Mia Couto é um dos mais celebrados autores africanos contemporâneos, daqueles que para qualquer um com um mínimo de interesse sério em literatura é até redundante fazer uma apresentação. Natural de Moçambique, é também um autor com ligações algo mais do que afetivas com o Brasil: além da língua nativa (Moçambique também foi colônia portuguesa, e portanto tem o português como idioma oficial), é mesmo membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Terra Sonâmbula foi o seu primeiro romance, depois de uma década chamando atenção com suas poesias e contos, e é também o seu primeiro livro que eu leio. Em uma Moçambique recém independente, ainda devastada pela guerra e tomada por guerrilhas, o velho Tuahir e o menino Muidinga, companheiros de viagem, se refugiam em um velho ônibus queimado. Dentro dele descobrem uma mala repleta de cadernos, que compõem o diário de um certo Kindzu, outro fugitivo como eles. Entre suas próprias aventuras atrás de um rumo a tomar, assim, os dois desvendam a história e as tragédias da sua vida, um pouco como um espelho das suas próprias.
O tom da história muitas vezes se aproxima da fábula, repleta de acontecimentos fantásticos e elementos míticos que remetem à cultura tradicional do sudeste africano. É difícil não fazer um certo paralelo com As Mil e Uma Noites, ou mesmo a história em quadrinhos Habibi, que também têm como fio condutor um par de personagens em relativo isolamento se contando histórias para passar o tempo. Aqui, no entanto, as histórias contadas têm um tema bem mais duro e próximo da nossa realidade: a guerra e o seu efeito nas pessoas e no próprio país, que em determinados momentos chega mesmo a andar sozinho durante o sono, tendo o seu descanso negado mas não o sonho de um amanhecer melhor, como a terra sonâmbula de que fala o título.
Tudo isso é reforçado ainda pela forma como Couto escreve, um português de oralidade acentuada e tempero africano, repleto de palavras inventadas, ou faliventadas, como ele mesmo diria. É uma escrita mágica como a própria história que conta, capaz de fazer as páginas passarem sem serem percebidas, e por vezes você chega a quase sentir os encantos invocados pelos personagens fazendo efeito sobre você.
Um livro duro e encantador, enfim, que incita a reflexão sem por isso deixar de maravilhar com o seu estilo e a sua história. Me deixou com vontade de conhecer melhor outros trabalhos do autor.
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