Arquivo para janeiro \24\-03:00 2014

Jogos japoneses, jogos ocidentais

Illust-modalO heroi de Animal Crossing, jogo desenvolvido pela Nintendo em 2001 e que teve 25 milhões de exemplares difundidos, mora em um povoado colorido, onde o consumismo tem um aspecto circular e infantil. Para pagar seu crédito imobiliário, ele colhe maçãs e as vende a um guaxinim comerciante, captura insetos e os oferece a um museu local; seus vizinhos lhe enviam presentes. O universo dos Sims (Electronic Arts, 2000, 170 milhões de exemplares) não é tão bucólico: em um bairro de classe média norte-americano, nas cercanias da cidade, os simulacros de indivíduos que o jogador manipula são autômatos ambiciosos que se mexem para satisfazer as exigências da existência, tais como a fome, a higiene, a vida social; eles se permitem roupas Diesel, móveis Ikea, automóveis Renault. Representantes da vida cotidiana que evidenciam relações com o mundo diametralmente opostas: enquanto a estética japonesa privilegia a estilização e o imaginário, o jogo eletrônico ocidental, hoje amplamente dominante, foi elaborado em busca do realismo.

(Martin Lefebvre, Em busca de realismo, mas virtual. No dossiê sobre videogames do LeMonde Diplomatique Brasil de Janeiro/2014. O grifo é meu.)

Sei lá o porquê, mas essa citação ficou bem forte na minha cabeça, a ponto de eu querer dividir aqui no blog. De alguma forma ela me remeteu à minha leitura de A Outra Face da Lua, a coletânea de textos sobre o Japão de Claude Lévi-Strauss; e também com o que eu vejo de tão intrinsicamente diferente na cultura de videogames de hoje em dia, dominados pela indústria ocidental, comparados com aqueles que eu jogava na minha infância e adolescência, de maneira geral originários do Japão. Quer dizer, eu cresci jogando Final Fantasy e Chrono Trigger, com seus monstros impossíveis e enredos mirabolantes, e não Mass Effect e Dragon Age, com seus aliens, dragões e elfos padronizados. Nada contra os jogos recentes, alguns deles são muito bons sob qualquer critério, mas de repente me parece mais fácil de entender a formular a diferença intrínseca que existe ainda hoje entre um Dark Souls, de um lado, e um Diablo ou Elder Scrolls, do outro. Ou mesmo, saindo do campo eletrônico, de uma visão nipoônica sobre a própria cultura que você vê em um Tenra Bansho Zero, contra a visão ocidental em Legend of the Five Rings ou Blood & Honor.

Por outro lado, é mais fácil também entender as dificuldades pela qual a Nintendo passa, bem resumida nesse texto recente chamado Nintendo Isn’t the Problem, You Are (“a Nintendo não é o problema, você é”). Veja que estamos falando dos detentores dos principais ícones culturais de uma mídia, construídos em décadas de domínio sobre ela, que não têm transformado essa posse em retorno de investimentos recentemente. Me parece um evento bem parecido com o que acontece com os mangás e animes desde os anos 2000, com a indústria e o mercado se fechando em si mesmos com dúzias de produtos auto-referenciais de público específico (mesmo que algumas vezes de grande qualidade na sua autoconsciência) para cada Shingeki no Kyojin que consegue um mínimo de sucesso verdadeiro.

Enfim, sei lá. Apenas para compartilhar uns pensamentos aleatórios.

Triste Fim de Bob

barataasForam milhões de milhões de milhões de centenas de milhões de anos de evolução até que nascesse Bob. Quem era Bob? Uma barata, é claro. Mas não qualquer barata – a barata que resultou desses milhões de milhões de milhões de centenas de milhões de anos de evolução. Ele nasceu com uma mutação no seu código genético, que o tornava superior a todos os seus semelhantes, e tal mutação seria passada adiante para todos os seus descententes, que também seriam superiores aos descendentes das outras baratas, e assim sucessivamente até que uma nova espécie superior de baratas suplantasse completamente a anterior, e seguisse evoluindo até o ponto em que eventualmente as baratas se tornassem a espécie dominante do planeta.

Bob não demorou a perceber o quão superior era às demais baratas da sua ninhada. Viu assustado seus irmãos serem abatidos um a um pelo terrível gás que era expelido para o local onde nasceram, e percebeu que bastava não ser tocado por ele para não ser asfixiado. Assim, evitava ao máximo ser ludibriado para locais fechados demais, onde seria facilmente intoxicado; buscava sempre a segurança dos locais abertos, onde poderia mais facilmente fugir dos malignos gigantes que o perseguiam com o gás assassino. Nunca houve antes dele barata mais hábil em fugir da morte: fingia se dirigir para um lado e esperava seu inimigo começar a se mover para lá, mas logo saía pelo outro lado; começava a subir em uma parede esperando o gás ser expelido, mas antes de ser atingido se soltava e caía suavemente ao chão; corria por entre os perseguidores, fazendo-os trombar uns contra os outros. Ninguém era capaz de pegá-lo.

Assim, Bob habilmente despistou todos aqueles que tentavam matá-lo, e, uma vez achando-se seguro, olhou para trás, vendo seus irmãos inertes, massacrados, mortos. Se baratas tivessem lágrimas, é certo que Bob as teria vertido naquele instante; jurou para si mesmo que vingaria a todos eles, e faria dessa a missão sagrada de todos os seus descendentes. E foi nesse instante de dor e determinação que Bob, distraído, foi atingido por um largo objeto de borracha nos pés de um dos gigantes. Morreu esmagado por um chinelo humano, antes de ter a oportunidade de passar adiante qualquer de seus genes mutantes superiores.

Piteco – Ingá

Piteco-Ingá-CapaA série Graphic MSP tem se dedicado a reinventar os personagens clássicos de Maurício de Souza através de artistas contemporâneos, que geralmente dão a eles uma visão bastante única e pessoal. Desde Astronauta – Magnetar, já tivemos lançamentos sobre a Turma da Mônica clássica e também o Chico Bento. Em Ingá é a vez de Piteco, o homem das cavernas, e o artista escolhido para isso foi o ilustrador paraibano Shiko.

E há que se dizer que a escolha não poderia ter sido melhor: a arte é realmente linda, talvez a mais bonita da série até aqui. Segundo consta na introdução do próprio Maurício de Souza, cada quadro foi pintado em aquarela pelo artista, resultando em um trabalho de cores belíssimo. A reinvenção visual dos personagens está ótima, respeitando detalhes do seu desenho clássico mas em um traço mais realista – há quem diga por aí inclusive que a nova versão da Thuga é a primeira heroína plus size sexy dos quadrinhos…

Shiko também escolheu trazer a pré-história do personagem para o Brasil, e usar como referência básica do enredo a Pedra do Ingá, que fica na Paraíba e contém desenhos e inscrições rupestres. Segundo a sua interpretação, tais desenhos fariam referência a uma seca no rio que alimenta a Tribo de Lem, forçando-os a partir em uma jornada em busca de uma nova terra para viver. Antes da partida, no entanto, a xamã Thuga é sequestrada pela tribo dos homens-tigre, obrigando Piteco a sair em busca da amada.

O que se segue é uma história de aventura com certo ar de espada & feitiçaria (ou talvez o mais correto seria tacape & feitiçaria?). Piteco encontrará pelo caminho monstros e criaturas fantásticas, inclusive reinvenções do Boitatá e Caipora que não devem desagradar nem quem normalmente torce o nariz para folclore nacional; e também deverá eventualmente decidir o que afinal sente pela xamã sequestrada. Coadjuvantes próprios do mythos do personagem, como o inventor Beleléu e a guerreira Ogra, também aparecem, é claro.

No final, Piteco – Ingá é uma graphic novel de primeira linha, muito legal mesmo. Acho que foi a que mais me empolgou da série até aqui, e recomendo muito que dêem uma olhada.

Brothers: A Tale of Two Sons

brothers-a-tale-of-two-sonsUma das coisas mais legais dessa última geração de consoles de videogames tem sido a evolução dos jogos indies, criados por estúdios independentes e distribuídos por serviços on-line como a PlayStation Network, a XBox Live e a Steam. É graças a eles que tem sido possível para empresas pequenas ter algum retorno de investimentos, sem que seja necessário separar uma fatia gorda dos seus orçamentos com complexos esquemas de distribuição. Com isso, tornou-se possível criar e publicar jogos com pouco mais do que uma boa ideia e algum talento para programação, sem que eles deixem de atingir o grande público – o melhor exemplo talvez tenha sido Journey, que, mesmo sendo obra de um desenvolvedor independente, ganhou prêmios importantes de jogo do ano, o que o pleiteou mesmo para um lançamento físico pela Sony.

Brothers: A Tale of Two Sons é outro bom exemplo de jogo independente baseado em uma idéia central e um desenvolvimento simples, mas nem por isso simplista, desta geração. A princípio, a jornada dos dois irmãos atrás de uma cura para o pai doente bebe muito da fonte já clássica de Ico: você deve guiá-los por diversos cenários, usando suas habilidades para vencer os desafios impostos pelo ambiente – fazer uma ponte móvel descer, passar por caminhos sinuosos na beira de montanhas, etc. Há um esquema de controle bastante original, apesar de gerar alguma confusão no início, em que você controla cada um dos irmãos com um analógico, com um único botão de interação para cada, e através disso se aproveita da força maior do irmão mais velho, ou do tamanho do mais novo para passar entre barras de ferro, e outras situações semelhantes. Não há qualquer tipo de HUD, como barras de energia ou contagem de vidas; como são personagens comuns, sem super força ou poderes sobrenaturais, não há exatamente muita esperança de sobrevivência caso você caia em um precipício, então nestes casos você deve recomeçar do último checkpoint. Mesmo as eventuais batalhas com chefes seguem esse mesmo princípio: ao invés de esgotar uma barra de energia, você deve usar os dois irmãos de maneira inteligente para prendê-los em jaulas, atraí-los para buracos no chão, atordoá-los, etc.

O foco da jogabilidade, mais do que o desafio, é a imersão, para fazê-lo se sentir dentro do mundo fantástico dos personagens com seus gigantes apaixonados, gatos-coruja e mulheres-aranha. O próprio cenário e os desafios propostos são usados para isso – em um determinado momento, por exemplo, você está no que restou de um campo de batalha entre gigantes; além de detalhes macabros como os rios avermelhados pelo sangue, o seu caminho deve ser aberto movendo os cadáveres e cortando pedaços dos seus membros que bloqueiam a sua passagem. Não há blocos de pedra gigantes que abram portas mágicas nem nada semelhante; cada desafio é pensado para remeter de alguma forma ao cenário e à história maior, deixando-o intrigado e imaginativo sobre o que está acontecendo.

O próprio roteiro, aliás, é profundamente tocante e emotivo. Há diálogos, claro, mas mesmo eles não são exatamente elucidativos – parecem os diálogos de The Sims, apenas conjuntos de efeitos sonoros para representar falas e conversas. Ao invés disso, são os gestos e ações que expressam realmente a personalidade dos protagonistas e coadjuvantes. (E a preocupação dos desenvolvedores com realismo está no fato de que é claro que é o irmão mais novo o mais mala dos dois). É dessa forma que a sua jornada vai se desenvolvendo, e você é levado desafio a desafio até o desfecho final de partir o coração.

Se há um ponto negativo, é o fato de o jogo ser extremamente curto. Uma tarde basta para terminá-lo, e, dado o seu foco na imersão e em fazê-lo esquecer do resto do mundo, é bem provável que aconteça dessa forma mesmo. Talvez isso até ajude a torná-lo mais intenso (ou, por outro lado, pode ser que alguns não passem o tempo necessário com os personagens para que os acontecimentos finais sejam realmente impactantes), mas é difícil não chegar no final achando que você poderia jogá-lo por bem mais tempo, e explorar melhor o seu mundo de fantasia. E num lado mais técnico, achei o som de maneira geral meio baixo; precisei aumentar bastante o volume da minha televisão para poder ouvir a trilha sonora adequadamente.

De toda forma, Brothers: A Tale of Two Sons ainda é um jogo fantástico, e uma experiência bastante única e envolvente. Recomendo muito.

Debt – The First 5,000 Years

debtBueno, por onde começar a falar de Debt – The First 5,000 Years? Comprei o livro por impulso já faz mais de um ano, mas foi só agora no fim de 2013 que comecei a ler. E cara, eu deveria ter feito isso muito antes. Escrito por David Graeber – um dos que se assumiu como “ideólogos” dos movimentos Occupy que varreram o mundo recentemente -, é um daqueles livros que, já no segundo capítulo, faz a sua cabeça explodir de tal maneira que você sairá por aí querendo anunciá-lo aos quatro ventos.

Basicamente, o livro se propõe a fazer uma revisão da história econômica da humanidade, tomando por base uma infinidade de relatos antropológicos e mesmo descobertas da ciência histórica que por algum motivo parecem ter sido deixados de lado na construção da narrativa econômica vigente. Segundo defende, o mito da “economia da troca” (vulgo, escambo), que teria sido segundo os estudiosos clássicos do tema a origem dos mercados e do dinheiro, não se sustenta quando avaliado sob a luz de tais estudos – nenhum antropólogo foi capaz de encontrar, em mais de dois séculos procurando, uma sociedade primitiva que funcionasse de tais maneiras, por mais que sociedades sem mercado ou sem dinheiro de fato tenham sido encontradas; e mesmo o deciframento de formas de escrita antigas, como a cuneiforme da Mesopotâmia ou a hieroglífica no Egito, revelam sociedades originais bem mais diversas do que a narrativa de certos economistas tenta vender.

Como o título prenuncia, o que se descobre ao estudar a fundo tais relatos é, ao contrário, que a economia humana, durante a maior parte do seu desenvolvimento, funcionou por meio de complexos sistemas de relacionamento entre os indivíduos, em que o endividamento e o crédito pessoais eram vistos como partes formadoras das próprias sociedades (e é bom lembrar aqui que debt não se traduz do inglês literalmente como débito, mas sim como dívida). Pode parecer uma inversão pequena, mas na verdade não é – ela coloca em cheque boa parte da ciência econômica atual, fundamentada na idéia da independência última dos mercados contra formas de coerção políticas, quando, na realidade, o próprio desenvolvimento dos mercados inicialmente só foi possível graças a tais métodos coercitivos. Aqui é o ponto onde os estudos de caso se mostram mais elucidativos, em especial quando oriundos da própria experiência pessoal do autor na ilha de Madagascar, e a forma como foram as autoridades coloniais européias no século XIX que, através da imposição de taxas e impostos que só poderiam ser pagos com moeda corrente, forçaram a criação de um mercado monetarizado entre tribos onde a lógica comunal ainda era a vigente.

O autor não tenta exatamente defender a originalidade destas ideias, mas se pega frequentemente questionando por que elas nunca foram levadas muito a sério no desenvolver de estudos e tratados de economia. Trabalhos de antropologia que punham em cheque a história oficial do surgimento dos mercados datam pelo menos desde estudos clássicos de Marcel Mauss, no começo do século XX, e no mesmo período existiram ainda teóricos econômicos marginais com idéias semelhantes; pelo menos um deles pode ser traçado ainda desde o século XVIII, podendo-se talvez encará-lo como concorrente da visão utópica de Adam Smith que se tornou a fundadora da teoria econômica clássica. As reflexões que faz, e as respostas que encontra através delas, o levam justamente a reforçar o papel das transformações morais e políticas que tantos tentam descartar como alheias à lógica econômica.

Aqui talvez se possa fazer uma pequena crítica ao autor, especificamente na forma como ele expõe as suas ideias. Graeber é bastante contundente ao falar “dos economistas,” muitas vezes fazendo parecer que sejam uma massa uniforme de teóricos obscurantistas que buscam se aproveitar da boa fé das pessoas, como uma espécie de arcanos ou, ahem, justiceiros mascarados contemporâneos. Embora nem sempre essa visão seja de todo injustificadas (como um punhado de citações de CEOs e teóricos renomados ao longo do livro ilustra muito bem), pode parecer também um tanto agressiva demais justamente para aqueles que poderiam se interessar pelas suas idéias, e talvez levá-las para um debate concreto com as narrativas vigentes que seria extremamente produtivo. Na sua ânsia de ser radical e romper laços, os atingidos nos estilhaços podem se sentir profundamente feridos e ofendidos na sua intelectualidade. É triste às vezes reconhecer que a academia é um grande antro de egos inflados, mais preocupados em manter o seu status do que fomentar um debate produtivo verdadeiro… Mas a dura verdade é que ela muitas vezes é assim mesmo.

Talvez haja algo de utópico também nas proposições de Graeber, e a sua visão última do “comunismo primitivo” que persiste mesmo nos dias de hoje, nas relações interpessoais à margem do sistema capitalista mundial, que o subvertem e sustentam no âmago mais profundo das sociedades. Mas, onde elas assumem esta dimensão, é em geral na desconstrução das utopias vigentes, em um exercício brilhante de erudição e reflexão a partir de bases muito mais concretas do que elas. O que ele propõe, mais do que todo o resto, e deixa isso claro já na introdução, é que se volte a fazer as Grandes Perguntas que norteiam o nosso pensamento, e por muito tempo parecem terem sido evitadas como se já estivessem definitivamente respondidas; ou, em outras palavras, uma revisão das premissas do nosso conhecimento, em especial quando, na atual conjuntura mundial, elas já não parecem ser suficientes para explicar a sociedade que temos, e muito menos a que gostaríamos de ter.

Enfim, o ponto fundamental é: Debt – The First 5,000 Years é provavelmente a leitura mais instigaste que eu fiz em anos. Leiam. Simplesmente leiam.

2013 in review

The WordPress.com stats helper monkeys prepared a 2013 annual report for this blog.

Here’s an excerpt:

The concert hall at the Sydney Opera House holds 2,700 people. This blog was viewed about 19,000 times in 2013. If it were a concert at Sydney Opera House, it would take about 7 sold-out performances for that many people to see it.

Click here to see the complete report.


Sob um céu de blues...

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