Bueno, por onde começar a falar de Debt – The First 5,000 Years? Comprei o livro por impulso já faz mais de um ano, mas foi só agora no fim de 2013 que comecei a ler. E cara, eu deveria ter feito isso muito antes. Escrito por David Graeber – um dos que se assumiu como “ideólogos” dos movimentos Occupy que varreram o mundo recentemente -, é um daqueles livros que, já no segundo capítulo, faz a sua cabeça explodir de tal maneira que você sairá por aí querendo anunciá-lo aos quatro ventos.
Basicamente, o livro se propõe a fazer uma revisão da história econômica da humanidade, tomando por base uma infinidade de relatos antropológicos e mesmo descobertas da ciência histórica que por algum motivo parecem ter sido deixados de lado na construção da narrativa econômica vigente. Segundo defende, o mito da “economia da troca” (vulgo, escambo), que teria sido segundo os estudiosos clássicos do tema a origem dos mercados e do dinheiro, não se sustenta quando avaliado sob a luz de tais estudos – nenhum antropólogo foi capaz de encontrar, em mais de dois séculos procurando, uma sociedade primitiva que funcionasse de tais maneiras, por mais que sociedades sem mercado ou sem dinheiro de fato tenham sido encontradas; e mesmo o deciframento de formas de escrita antigas, como a cuneiforme da Mesopotâmia ou a hieroglífica no Egito, revelam sociedades originais bem mais diversas do que a narrativa de certos economistas tenta vender.
Como o título prenuncia, o que se descobre ao estudar a fundo tais relatos é, ao contrário, que a economia humana, durante a maior parte do seu desenvolvimento, funcionou por meio de complexos sistemas de relacionamento entre os indivíduos, em que o endividamento e o crédito pessoais eram vistos como partes formadoras das próprias sociedades (e é bom lembrar aqui que debt não se traduz do inglês literalmente como débito, mas sim como dívida). Pode parecer uma inversão pequena, mas na verdade não é – ela coloca em cheque boa parte da ciência econômica atual, fundamentada na idéia da independência última dos mercados contra formas de coerção políticas, quando, na realidade, o próprio desenvolvimento dos mercados inicialmente só foi possível graças a tais métodos coercitivos. Aqui é o ponto onde os estudos de caso se mostram mais elucidativos, em especial quando oriundos da própria experiência pessoal do autor na ilha de Madagascar, e a forma como foram as autoridades coloniais européias no século XIX que, através da imposição de taxas e impostos que só poderiam ser pagos com moeda corrente, forçaram a criação de um mercado monetarizado entre tribos onde a lógica comunal ainda era a vigente.
O autor não tenta exatamente defender a originalidade destas ideias, mas se pega frequentemente questionando por que elas nunca foram levadas muito a sério no desenvolver de estudos e tratados de economia. Trabalhos de antropologia que punham em cheque a história oficial do surgimento dos mercados datam pelo menos desde estudos clássicos de Marcel Mauss, no começo do século XX, e no mesmo período existiram ainda teóricos econômicos marginais com idéias semelhantes; pelo menos um deles pode ser traçado ainda desde o século XVIII, podendo-se talvez encará-lo como concorrente da visão utópica de Adam Smith que se tornou a fundadora da teoria econômica clássica. As reflexões que faz, e as respostas que encontra através delas, o levam justamente a reforçar o papel das transformações morais e políticas que tantos tentam descartar como alheias à lógica econômica.
Aqui talvez se possa fazer uma pequena crítica ao autor, especificamente na forma como ele expõe as suas ideias. Graeber é bastante contundente ao falar “dos economistas,” muitas vezes fazendo parecer que sejam uma massa uniforme de teóricos obscurantistas que buscam se aproveitar da boa fé das pessoas, como uma espécie de arcanos ou, ahem, justiceiros mascarados contemporâneos. Embora nem sempre essa visão seja de todo injustificadas (como um punhado de citações de CEOs e teóricos renomados ao longo do livro ilustra muito bem), pode parecer também um tanto agressiva demais justamente para aqueles que poderiam se interessar pelas suas idéias, e talvez levá-las para um debate concreto com as narrativas vigentes que seria extremamente produtivo. Na sua ânsia de ser radical e romper laços, os atingidos nos estilhaços podem se sentir profundamente feridos e ofendidos na sua intelectualidade. É triste às vezes reconhecer que a academia é um grande antro de egos inflados, mais preocupados em manter o seu status do que fomentar um debate produtivo verdadeiro… Mas a dura verdade é que ela muitas vezes é assim mesmo.
Talvez haja algo de utópico também nas proposições de Graeber, e a sua visão última do “comunismo primitivo” que persiste mesmo nos dias de hoje, nas relações interpessoais à margem do sistema capitalista mundial, que o subvertem e sustentam no âmago mais profundo das sociedades. Mas, onde elas assumem esta dimensão, é em geral na desconstrução das utopias vigentes, em um exercício brilhante de erudição e reflexão a partir de bases muito mais concretas do que elas. O que ele propõe, mais do que todo o resto, e deixa isso claro já na introdução, é que se volte a fazer as Grandes Perguntas que norteiam o nosso pensamento, e por muito tempo parecem terem sido evitadas como se já estivessem definitivamente respondidas; ou, em outras palavras, uma revisão das premissas do nosso conhecimento, em especial quando, na atual conjuntura mundial, elas já não parecem ser suficientes para explicar a sociedade que temos, e muito menos a que gostaríamos de ter.
Enfim, o ponto fundamental é: Debt – The First 5,000 Years é provavelmente a leitura mais instigaste que eu fiz em anos. Leiam. Simplesmente leiam.
Pergunta, esse livro saiu em português? Eu quero ler isso!
Até onde eu sei, só em inglês mesmo.