Arquivo para março \30\-03:00 2015

Oreshika: Tainted Bloodlines

oreshika-tainted-bloodlinesAcho que não tem gênero de jogos eletrônicos que eu tenha jogado mais do que os RPGs japoneses com combates por turnos (jogos de luta talvez cheguem perto). A partir principalmente do primeiro Playstation (não era exatamente fã do gênero durante os 16 bits, embora tenha corrido atrás do prejuízo posteriormente com ajuda de emuladores), acho que joguei todos os principais lançamentos, e um bocado de jogos alternativos também – Persona, Suikoden, Legend of Legaia, Grandia, Xenogears, mais Final Fantasies do que consigo lembrar… Quando vejo alguns jogos modernos, como Dragon Age ou The Witcher, por mais que saiba reconhecer suas qualidades e também me divirta um bocado com eles, não consigo evitar um certo olhar saudoso pra esse passado, e ansiar por uma experiência mais próxima daquela que eles me proporcionavam. E uma das razões que acabaram me convencendo a adquirir um Playstation Vita foi justamente a possibilidade de voltar a encontrar jogos assim, já que aparentemente é nos portáteis o seu último foco de resistência, sem contar a possibilidade de reviver clássicos antigos através da Playstation Store.

Oreshika: Tainted Bloodlines é o primeiro desses jogos que realmente me fez pensar que valeu a pena ter adquirido o console. É um RPG por turnos que honra a  longa tradição que o precede, mas também adiciona um bocado de reviravoltas e novidades, fugindo das fórmulas prontas que assombram as grandes franquias do gênero. Tudo isso fechado com uma apresentação impecável, com gráficos e música lindos remetendo à arte tradicional japonesa, e o provável maior banho interativo de cultura oriental desde Okami.

O jogo conta a história de um determinado clã de samurai no Japão da era Heian, cujo nome e características gerais você pode determinar ao começar a partida. Encarregado de cuidar de cinco relíquias sagradas, ele caiu em desgraça devido a maquinações de um feiticeiro onmyoji chamado Abe no Seimei, que roubou e escondeu os artefatos. Para aplacar a ira dos deuses, o Imperador determinou que todos os membros do clã fossem mortos; os próprios deuses, no entanto, se apiedaram de um destino tão cruel, e os trouxeram de volta à vida para que pudessem limpar o seu nome e buscar vingança contra aquele que o desgraçou em primeiro lugar.

A ressurreição, no entanto, não foi sem contratempos. Antes de serem executados, Seimei lançou sobre o clã duas maldições. A primeira reduz o tempo de vida dos seus membros, que atinge seu limite por volta dos dois anos; e a segunda impede que eles se reproduzam com qualquer um exceto os próprios deuses e outros membros de clãs amaldiçoados. Mais uma vez, assim, foi necessário uma intervenção divina: os deuses se colocaram à disposição para uniões matrimoniais, garantindo que a linhagem do clã se mantivesse e dando a eles habilidades únicas, entre elas a de um amadurecimento acelerado para que os dois anos de vida de cada geração sejam aproveitados o máximo possível.

Temos aí então o mote principal do jogo: o de ser, antes de um simples RPG, um simulador de clã. O protagonista não é um único personagem, mas sim uma linhagem inteira deles, conforme aqueles com quem você começou são substituídos por seus filhos, netos, bisnetos e além. Cada geração aumenta a força da anterior, na medida em que todos vão acumulando experiência, habilidades especiais e se casando com deuses cada vez mais poderosos. Além disso, para além de explorar dungeons e vencer demônios, você também deve administrar e governar a sua província, investindo o dinheiro conquistado nas aventuras em áreas estratégicas como produção de armas e armaduras, itens de cura ou mesmo no entretenimento e devoção religiosa – o resultado final acaba lembrando bastante o RPG “de mesa” Blood & Honor, só adicionado de elementos fantásticos (o que talvez o aproxime mais de um Tenra Bansho Zero, na verdade).

O jogo em si é dividido em uma série de rodadas, cada uma com duração de um mês, em que você deve administrar os afazeres do clã, cuidar de eventuais casamentos e funerais, bem como decidir os investimentos para melhorar os serviços da província. Se parece coisa demais, não se preocupe: você conta com o auxílio de Kochin, uma menina-doninha que faz as vezes de garota-bichinho-fofinha-de-anime da vez, e, contrário a tantos outros ajudantes de games por aí, de fato dá bons conselhos e sugestões sobre o que fazer a seguir. Por fim, uma vez por mês, você pode sair para explorar uma dungeon nas suas terras ou nas de outros clãs, e reunir o dinheiro e experiência necessários para cumprir seus objetivos.

Aqui temos o componente online do jogo. Esses “outros clãs” pertencem, em sua maioria, a outros jogadores conectados, cujas terras você pode visitar para comprar itens, contratar mercenários, arranjar casamentos ou mesmo participar de torneios pelo brasão do clã. Ao começar uma partida o seu clã é colocado em um determinado ponto do mapa, com duas dungeons aleatórias próximas (e uma terceira após você atingir um determinado ponto da história); para visitar as demais, assim, você deve visitar estas outras províncias, estabelecendo toda uma rede própria de ligações e alianças.

As dungeons são talvez o ponto que pudesse ter maior variação. Existem nove modelos básicos, além de outras duas que você libera com o desenrolar da trama, embora seus mapas exatos possam ser diferentes em cada província. Você pode explorá-las enfrentando seus demônios e recolhendo seus tesouros, mas o tempo para fazê-lo é limitado; uma vez que acabe, você tem a opção de continuar nela por mais um mês ou retornar para casa. O tempo exato que você possui não é fixo: você possui quatro classificações de dificuldade, da mais baixa em que você recebe o dobro de experiência e dinheiro mas possui menos tempo, até a mais alta em que a experiência dinheiro recebidas são menores, mas há mais tempo para exploração; e é possível alternar livremente entre elas, para quando você quiser passar mais rápido por uma rodada ou ter mais tempo para recolher tesouros ou encontrar a entrada para o Festival de Todos os Demônios que avança a história. De modo geral, no entanto, como você as estará visitando com muita freqüência, é possível que acabe enjoando de algumas delas com certa rapidez.

Durante a exploração as batalhas não são aleatórias – ou seja, você vê os inimigos na tela, e pode até mesmo emboscá-los para obter uma vantagem na primeira rodada. O sistema de combates segue o modelo de turnos de forma bem clássica, em que cada personagem tem a sua vez determinada pelo seu atributo de agilidade, e então você deve escolher entre uma ação ou habilidade especial a partir de uma série de menus. No entanto, há uma boa dose de pequenos detalhes que dão maior profundidade e permitem diversas variações estratégicas. Cada lado da batalha, por exemplo, possui duas linhas de combatentes, uma dianteira e uma traseira; as suas opções de ações são determinadas pela sua posição nelas, além da sua classe – um espadachim, por exemplo, só pode atacar inimigos na linha de frente, enquanto um arqueiro ou carabineiro pode atacar inimigos em qualquer posição. Outras classes são capazes de atacar ao mesmo tempo todos os inimigos em uma determinada linha, ou possuem ataques diferentes contra inimigos na linha de frente ou de trás. As magias também podem ter efeito sobre um único inimigo, uma linha de inimigos ou todos eles, e você pode ainda reunir vários personagens para lançar uma magia em conjunto, multiplicando o seu poder.

Há muitos outros elementos diferentes no jogo, cada um com mecânicas próprias e características únicas, e de maneira geral você continuará liberando novas habilidades e lendo novos tutoriais de como usá-las já várias horas adentro da história. Há uma determinada personagem que entra para o clã após a trama avançar um pouco, com uma classe e habilidades especiais únicas (e voz da Megumi Hayashibara, o que é quase uma habilidade especial à parte – aliás, é um belo ponto para a caracterização e imersão a opção por manter o som original em japonês, localizando apenas os textos); outra classe especial com características únicas você libera para os personagens já quase no final. De maneira geral, sempre que você acha que já viu e entendeu tudo o que há para fazer, o jogo vai lá e te mostra que há ainda mais.

De todas as mecânicas apresentadas, no entanto, certamente as mais imersivas e profundas são aquelas que dizem respeito à linhagem e a passagem das gerações do clã. Como já foi comentado, o mote principal da história é que você faz parte de um clã amaldiçoado, em que os membros, apesar de amadurecerem muito mais rápido, só podem viver por cerca de dois anos; esse é o período que eles possuem para desenvolver suas habilidades e gerar e treinar descendentes que darão continuidade à sua missão. Cada nova geração deve ser mais forte que a anterior, uma vez que os próprios demônios que enfrentam também estão se fortalecendo, e o jogo oferece uma série de formas de garantir isso.

Um exemplo é a produção de armas e armaduras ancestrais. Conforme você investe dinheiro na produção de armas e armaduras na sua província, poderá convidar para viver nela artesãos especializados que podem produzir itens exclusivos para determinados personagens. Estes itens inicialmente serão fracos, mas seu poder aumenta conforme o personagem escolhido avança de nível – e, quando morrer, ele pode passá-los como herança para outro personagem da mesma classe, com o qual ele continuará a evoluir e ganhar novos poderes. Assim, bastarão algumas gerações para que se tornem extremamente poderosos. As técnicas secretas de cada classe, que um personagem pode começar a desenvolver após ganhar alguns níveis, também seguem uma mecânica parecida, com a diferença de que, além da limitação da classe, elas também devem ser passadas diretamente de um pai para um filho ou serão perdidas.

No geral, tudo no jogo favorece que você crie certas tradições para o seu clã, criando itens e determinando braços familiares exclusivos para cada classe. Por vezes ele é quase um estudo social sobre o tema, e o resultado é incrivelmente imersivo e divertido. Até na aparência dos personagens há toda uma série de pequenos detalhes, com certas características físicas que são passadas para as gerações seguintes – casar-se com um deus com orelhas de raposa, por exemplo, pode fazer com que seus filhos ou netos desenvolvam uma característica parecida; ou então, às vezes, uma característica como cor dos olhos ou estilo de cabelo que parecia ter desaparecido reaparece duas ou três gerações depois apenas para surpreendê-lo. Some a isso ainda a possibilidade de usar a câmera do Vita para criar um personagem baseado na sua própria aparência, ou ainda a de criar um código QR para determinados personagens que você queira compartilhar com amigos e conhecidos; e mesmo as dungeons são repletas de “locais famosos” onde você pode parar e tirar uma foto de família para compartilhar nas redes sociais, quase como se fosse uma viagem de férias.

Com isso, mesmo que sejam tantos e criados pelo próprio jogador, cada personagem acaba adquirindo uma personalidade bastante única. Isso é refletido no próprio jogo – há uma classificação de personalidades de acordo com os elementos que influenciam as suas sugestões de ações em combate e a sua lealdade ao clã quando ficam muito tempo sem participar da ação. Um personagem de fogo, por exemplo, é mais agressivo e ativo, mas também volátil; enquanto um personagem com personalidade de terra é mais rígido e defensivo, mas também mais leal. Com o tempo você aprende a se importar com cada um individualmente, e realmente sente quando a sua morte se aproxima. Há um funeral tocante em que os seus feitos são lembrados mês a mês, e um pequeno conjunto de palavras finais repletas de emoção e sentimento. E mesmo depois de morto ele ainda pode se fazer presente, seja concedendo um bônus eventual através das armas ancestrais que deixou como herança, seja até, em alguns casos, tornando-se uma nova divindade que pode ser escolhida para casamentos no futuro.

Tudo se completa com a apresentação linda, tanto nos gráficos misturando anime com arte tradicional japonesa, até na própria música também de inspiração tradicional, que colabora muito para criar o clima e dar o tom da história. Para quem gosta de cultura e história japonesas, praticamente cada elemento do jogo possui algum atrativo próprio, colaborando com a caracterização de uma era Heian (que não costuma ser a mais conhecida e celebrada no ocidente) colorida e vibrante, repleta de magia e fantasia, e em que até os demônios têm festivais próprios animados e calorosos.

Enfim, gostei muito de Oreshika: Tainted Bloodlines. É uma experiência imersiva e envolvente como há tempos eu não tinha, daquelas que te faz ficar acordado por vários fins de semana apenas para fazer o seu clã chegar no estágio seguinte. Jogo obrigatório para quem possui um Playstation Vita, gosta de RPGs tradicionais por turnos, e/ou simplesmente se interessa pela cultura e história japonesas de maneira geral.

CounterSpy

Counterspy-store-artworkCom o tamanho que a indústria de videogames adquiriu, com lançamentos cujos orçamentos facilmente rivalizam com os de filmes, não é exatamente surpresa que a maioria dos jogos hoje em dia busque aquele tipo de experiência imersiva, que toma de assalto as horas e os dias dos jogadores em seus mundos abertos gigantes repletos de buscas paralelas e missões secundárias. Tudo muito bom, claro, é algo que tem seu valor, mas é difícil não sentir saudades às vezes daqueles tempos mais simples, de jogos casuais que você podia ligar no console e jogar por uma tarde inteira sem se preocupar muito em ganhar experiência, administrar recursos ou flertar com os personagens do grupo – falo daquele nível intermediário entre um Dragon Age e um Candy Crush, nem tanto um vórtex que suga a sua vida pessoal, nem tanto aquela desculpa simplória e safada pra sugar o seu dinheiro com compras in-game. Felizmente, o tamanho da indústria abriu espaço também para muitos estúdios independentes que buscam satisfazer esse tipo de demanda.

CounterSpy lembra muito esses jogos do passado, seja pela premissa casual e objetiva, seja pelo próprio estilo de ação com visão lateral. Ele parece, na verdade, com uma mistura de Metal Gear Solid com franquias de ação clássicas como Contra e Metal Slug, em um cenário que lembra os quadrinhos Spy vs. Spy. O mote é a espionagem: você assume o papel de um espião de uma agência independente, e deve invadir bases militares atrás dos planos de um projeto ultra-secreto. As fases são criadas processualmente – ou seja, são construídas aleatoriamente a cada jogo -, de forma que você nunca encontrará duas vezes o mesmo mapa; e escondem diversas ondas de inimigos e outros segredos, que você pode derrotar furtivamente, fazendo uso de esconderijos e pistolas com silenciador, ou, se preferir, mandando o subterfúgio pro alto e atirando em tudo e todos indiscriminadamente – e embora o jogo certamente favoreça que você siga o primeiro caminho, a verdade é que ele é muito bem executado, e não decepciona, qualquer que seja o estilo adotado.

A ambientação, é claro, é a Guerra Fria, como em qualquer filme clássico de espionagem. O enredo é um belo pastiche da disputa militar e tecnológica do período, parodiando, entre outras coisas, a corrida armamentista e a corrida espacial; resumindo, você deve impedir que uma das superpotências consiga realizar o plano megalomaníaco de lançar um míssil nuclear… Na Lua! Mas há uma sacada muito inteligente dos desenvolvedores para evitar tomar lados no conflito ideológico: você é na verdade um agente independente, que deve escolher a cada fase se deseja invadir uma base da Nação Imperialista ou da República Socialista. Isso acaba dando ao jogo ares de uma mini-crítica política e histórica, e a mensagem que fica é que no fundo os dois lados não eram tão diferentes assim, ao ponto de mesmo os seus planos secretos serem tão rigorosamente iguais que suas partes são intercambiáveis. Pra completar, o carregamento das fases é preenchido com alguns fatos curiosos sobre o período, que pelo menos relevam um pouco o fato de serem um tanto demorados.

O resultado no final é uma experiência muito divertida e única. É claro que é um jogo casual, do tipo que você pode ligar e jogar para passar o tempo sem precisar de muito envolvimento ou imersão; por isso, talvez combine mais com a portabilidade do PlayStation Vita, apesar de estar disponível para o PS3 e PS4 também (e, inclusive, estar disponível gratuitamente este mês para os assinantes da PlayStation Plus). Mas há uma boa dose de itens e segredos a desbloquear, como projetos de armas secretas e fórmulas químicas que lhe concedem benefícios especiais, além de um quadro de pontuação global, cujos membros mais próximos da sua colocação inclusive fazem aparições ocasionais no seu jogo na forma de espiões rivais a serem superados. Assim, você também não o sentirá (muito) como uma perda de tempo (bom, não mais do que qualquer outro videogame, pelo menos).

A Tristeza da História

Paulo-Freire-protestoEssa semana parece que todo mundo quer falar de política. Tanto se falou, comentou, questionou, impugnou, que não acho realmente que eu tenha algo a acrescentar, e nem vou tentar. Meu comentário é sobre um tema bem mais pessoal, que toca só tangencialmente tudo o que tem acontecido ultimamente no país.

Para quem não sabe, sou formado em História, e atuo como professor em uma escola municipal. Há treze anos que me embrenho em aprender o ofício com Hobsbawn, Marc Bloch, Ciro Flamarion Cardoso, tantos outros por aí. Há treze anos que estudo a trajetória da humanidade ao longo do tempo, desde lá a pré-História até o que quer que tenha sido notícia ontem. Claro, não tenho como saber toda a História, e há assuntos entre tantos do qual sei mais ou menos a respeito. Mas tenho um diploma de especialização justamente sobre a História do Brasil contemporâneo, então alguma coisa sobre o nosso próprio país eu tenho que saber. Ou acho que tenho.

Mesmo assim, isso nunca é o suficiente quando se entra em uma discussão justamente sobre a História do país. De repente um achismo, ou vivência pessoal, ou qualquer que seja a opinião daquele colunista lá do jornal totalmente isento e sem agenda política nenhuma, ai de quem duvidar da sua imparcialidade jornalística, vale muito mais do que qualquer opinião que eu possa ter a partir daquilo que estudei, pois, obviamente, independente de qualquer dado ou embasamento histórico, se eu discordo dele eu só posso estar me deixando levar pela minha “ideologia pessoal.”

Longe de mim querer dar um carteiraço, é claro, dizer que o meu diploma me torna a autoridade suprema do assunto ou qualquer coisa assim. Mas, sabe, não seria ruim receber um pouco de crédito por aquilo que eu passei os últimos treze anos estudando.

É tão hipócrita esse clichê argumentativo de acusar a ideologia como fonte de todos os males intelectuais. Primeiro por assumir que se pode ser livre de ideologia. Segundo por achar que a própria ideologia é um ente estranho, alienígena, alheio a tudo e a todos, e que ela também não é construída socialmente e historicamente a partir de experiências, vivências e reflexões.

Eu sei de onde vem a minha ideologia. Fui criado em um berço de direita, longe de ser esplêndido, é bem verdade, mas que hoje sei reconhecer ter tido uma quantidade razoável de privilégios. Até entrar na faculdade, sei que certamente tinha um pensamento mais inclinado para o que se costuma classificar como direita política. A faculdade me levou mais ao centro, por me ensinar auto-crítica e a tentar olhar as coisas pelos olhos dos outros, a de fato respeitar, analisar e entender suas posições. (Sou grato às aulas de antropologia por isso. Sou da opinião de que ensinar antropologia nas escolas tornaria o mundo um lugar muito mais estimulante intelectualmente. Ninguém pode ser um ser humano completo sem ter tido pelo menos um semestre de introdução à antropologia).

O que me fez sair do armário e me levou realmente à esquerda do espectro ideológico foi a especialização. Mais especificamente, estudar o que aconteceu exatamente no país em 1964. É difícil manter a fé na imprensa, na sociedade civil, na própria classe média, quando se vê os pormenores daquele período, a discrepância entre o que existia de fato e o que era relatado nos jornais, o tipo de paranóia e histeria que eles incitavam na população. E é realmente um pouco assustador ver a quantidade de paralelos possíveis entre o que acontecia então e os dias de hoje. (Mas não, não vou acreditar que o desfecho vá ser necessariamente o mesmo – não acredito que a História sempre se repita, ou, pelo menos, não necessariamente; os momentos são outros, os atores também, as experiências se acumulam, e, até as coisas de fato acontecerem, sempre podemos ter o benefício da dúvida).

Talvez seja justamente por saber reconhecer a origem da minha ideologia que eu consiga ver a contradição que é achar ser possível não ter ideologia, que você pode simplesmente analisar quaisquer que sejam os fatos friamente, sem recorrer a experiências anteriores e idéias pré-concebidas, e então formar a sua opinião isenta sobre eles. Isso não existe. Ideologia não é juízo de valor, é simplesmente o seu modo de pensar. Não é ideologia só quando é esquerda. A direita também tem ideologias. O centro também. Até rejeitar as ideologias é uma ideologia, e vai influenciar o seu pensamento e a sua avaliação do mundo da mesma forma, nem que seja apenas por fazê-lo se esforçar em não seguir as outras ideologias e ficar sempre em cima do muro (uma armadilha teórica em que já caí diversas vezes em discussões, pra ser sincero).

Como você pode apontar um dedo acusador para o professor de História, acusando-o de ser ideológico, e então falar de repente na gloriosa Revolução de 1964? Apenas por chamá-la de revolução você já está sendo ideológico. Toda revolução política é um golpe em algum nível, e a escolha do termo é apenas um retrato da sua ideologia.

Ou ainda, tirando um exemplo direto da última manifestação: uma faixa que exigia o fim da “doutrinação marxista,” com o abandono de Paulo Freire nas escolas. Freire, para quem não sabe, é um pedagogo reconhecido internacionalmente, respeitado em todo o mundo. Possivelmente seja o intelectual brasileiro mais lido fora do Brasil. Nos Estados Unidos e na Europa há universidades que dedicam andares inteiros das suas bibliotecas apenas à sua obra. A própria ONU e a UNICEF, ao verem a foto da faixa, correram para defendê-lo, compartilhando citações em suas contas de twitter e facebook. Mas ele também é um pensador assumidamente de esquerda, e, o pior dos crimes, ligado diretamente ao PT, tendo sido secretário municipal de educação do governo da Luiza Erundina em São Paulo. Analisando friamente, é um pensador renomado que serve aos educadores dos Estados Unidos e da Europa. Mas aparentemente não serve para os do Brasil. Como não há ideologia aí?

Poderia dar mais exemplos. Poderia falar de um movimento que se diz apartidário, mas que critica e ataca um único partido, e tem muitos de seus membros vestindo camisas de apoio ao último candidato de oposição a ele. Um movimento anti-corrupção que isenta um partido como o PP – o que teve mais nomes citados para investigação no atual escândalo de corrupção dos jornais – de bandeiras e xingamentos. Onde estão as camisas mandando Luís Carlos Heinze – que não é um qualquer irrelevante, foi o deputado mais votado do Rio Grande do Sul nas últimas eleições – tomar no seu orifício anal?

Mas o ponto não é esse. O ponto é: ideológicos sempre são os outros. Eu sou isento. Eu sou imparcial. Por que só os historiadores, só os professores de História e outras ciências humanas, têm esse ônus?

Minha suposição é que os cientistas humanos são os únicos que são realmente humildes quanto a isso. A idéia de que a História deve “contar os fatos como eles realmente aconteceram,” como já vi gente falando por aí, é ridiculamente ultrapassada – qualquer estudante de Teoria da História I sabe associar essa citação a Leopold von Ranke, historiador alemão do século XIX, e ele próprio nem era tão isento assim, sendo ligado ao conservadorismo prussiano da época. Quando nos afastamos desse preceito nos dois séculos seguintes, não estávamos querendo manipular as massas ignorantes com a nossa malvada ideologia marxista-leninista-trotkista-satânica-ateia; apenas aprendemos a assumir que talvez não seja tão fácil assim sequer conhecer os fatos como eles realmente aconteceram, e o que podemos fazer, se tanto, é tirar algumas conclusões a partir dos indícios e vestígios que temos.

Esse tipo de honestidade, no entanto, não costuma ser bem visto por quem quer certezas absolutas. Um jornalista que comece a sua manchete bombástica com um “eu acho que…” dificilmente seria levado a sério. Um economista, então, seria execrado – há textos ótimos por aí sobre como certos economistas fazem para manter o prestígio mesmo quando todas as suas tentativas de previsões se mostram erradas muito mais freqüentemente do que certas, e eu mesmo já resenhei um livro ótimo que questiona muitos dos pressupostos sobre os quais a ciência econômica contemporânea foi estabelecida.

Então quando derrubam a obrigatoriedade do diploma para o jornalismo, o mundo vira de ponta cabeça; será o apocalipse da informação, as pessoas não saberão mais em quem acreditar. Mas quando um jornalista sem qualquer formação acadêmica, sem nenhum conhecimento teórico ou metodológico, escreve um livro de História, todos passam a tratá-lo como autoridade. Pelo menos ele é imparcial, já que é jornalista; não é como os historiadores que passaram vinte anos estudando e fazendo especializações e mestrados e doutorados, eles são todos cheios de ideologia.

Me pergunto como seria se historiadores formados recebessem o mesmo tipo de autoridade pública que outras classes de intelectuais recebem. Se estudar História de verdade foi o que me fez virar à esquerda ideologicamente, como seria com outras pessoas? É claro, conheço muitos historiadores respeitados com pensamentos de direita ou de outros espectros intermediários da ideologia, então isso não é nenhuma garantia. Mas quando tantos intelectuais da área têm idéias tão bem alinhadas, é difícil não se pegar imaginando se esses “fatos como eles realmente aconteceram” são realmente tão contraditórios com o pensamento que eles pregam.

No fim, acaba que a própria História se torna diminuída como disciplina. Outro dia estava vendo uma entrevista com um técnico de futebol em um canal esportivo, e um dos jornalistas perguntava, “excluindo-se o aspecto histórico, pode-se dizer hoje que o clube X é um time grande?” Como se uma classificação tão subjetiva pudesse prescindir de História. Como se fosse a História que poluísse de ideologia a análise fria e objetiva que se pode fazer sem ela do tamanho de um clube. E se em um tema tão periférico como o futebol isso já acontece, que dirá dos “grandes temas.”

De repente todos os viúvos da ditadura começam a fazer muito mais sentido.

Zeitgeist

No ponto, olhava para o nada, pensando na vida. De repente o vejo, logo a frente, já longe de onde estou; corro, faço sinal, chamo, grito em desespero… Mas é tarde.

Era o zeitgeist que passava.


Sob um céu de blues...

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