Para quem gosta de escrever seus rascunhos vez por outra, é um exercício interessante ver como os escritores que admira começaram suas carreiras, como eram seus primeiros livros e como eles diferem das suas obras mais famosas. Penso sempre no caso do Italo Calvino, que ficou conhecido por seus livros cheios de fábula e fantasia, mas que começou com um livro essencialmente realista, A trilha dos ninhos de aranha. Para além do lado da curiosidade, dá um pouco mais de esperança também ver como estes escritores tiveram começos muitas vezes hesitantes e descuidados, e como eles evoluíram e desenvolveram seus estilos características.
No caso de Haruki Murakami, que já há algum tempo é o meu xodó literário, esta estreia corresponde a dois livros em específico: Hear the Wind Sing e Pinball 1973. Sem edição em português, mesmo a única edição em inglês deles é bastante rara, sendo na verdade parte de uma coleção para ensinar a língua para os nativos japoneses – o próprio autor parece considerar os dois livros de baixa qualidade, e não se anima em vê-los lançados em outros países (apesar de que há rumores de que eles devem receber uma edição norte-americana logo). Consegui acesso a eles graças apenas às maravilhas da tecnologia moderna e dos leitores de livros digitais.
Embora sejam dois livros com enredos e acontecimentos próprios, ambos possuem os mesmos protagonistas – o narrador sem nome e seu amigo, referido apenas pelo apelido de Rato -, e soam um pouco como obras-irmãs, por serem relativamente curtas (em torno de 120 páginas cada) além de compartilharem de um estilo e temática semelhantes. No primeiro, os dois personagens possuem 21 anos e são recém egressos do mundo universitário; a narrativa consiste basicamente de episódios em que eles retornam à sua cidade natal, visitam o bar de J., um imigrante chinês com quem desenvolvem uma forte amizade, e discorrem sobre temas como o ofício da escrita e o movimento estudantil enquanto bebem, conhecem mulheres e ouvem músicas ocidentais. Um episódio especial que acaba recebendo um pouco mais de atenção diz respeito a uma determinada moça que o narrador leva bêbada para casa uma noite, e os acontecimentos trágicos que a envolvem.
Já no segundo livro temos um pequeno avanço temporal para o ano de 1973, quando o narrador e seu amigo possuem 25 anos. Os dois estão separados e não chegam a se encontrar durante a narrativa, mas ela alterna constantemente entre eles, um pouco como um duo de jazz improvisando um dueto. O narrador agora trabalha em uma agência de tradução e divide o apartamento com duas irmãs gêmeas, enquanto Rato se vê às voltas com um caso amoroso que não sabe bem como resolver. No meio disso, discursos sobre a solidão e a busca por uma máquina de pinball especial.
São livros simples e pequenos, bem diferentes de obras ambiciosas como The Wind-Up Bird Chronicle e 1Q84, por exemplo; se há algum livro mais recente do autor que eles lembrem, provavelmente seja Após o Anoitecer. Mas é interessante notar como certas características que se tornariam marcantes já se revelam, como as referências à cultura ocidental (seja na música ou na literatura, com a citação a um certo autor de ficção científica Derek Heartfield – provavelmente um pseudônimo para Kurt Vonnegut), bem como os personagens únicos como o par de gêmeas que o narrador não consegue distinguir ou o próprio Rato. Ainda que o cenário das histórias seja essencialmente realista, já vemos também um certo surrealismo latente, no absurdo de cenas como o enterro de um painel telefônico ou o diálogo afetivo e sentimental entre o narrador e a referida máquina de pinball que constitui o clímax do segundo livro.
O que chama muito a atenção, no entanto, é a aparente falta de rumo dos personagens e do enredo. Os livros se fazem basicamente com uma sequência de episódios, sem muita conexão direta entre si exceto o fato de acontecerem com os mesmos personagens; não há propriamente uma busca a ser realizada ou um objetivo último a se cumprir. É um pouco como um diário casual, uma literatura cotidiana, e pode-se ver bem forte o estilo hesitante de um autor estreante, ainda sem uma voz muito bem definida com que escrever. Por outro lado, esta mesma falta de rumo acaba se revelando uma força, da mesma forma como ela é em autores como Bukowski ou Tao Lin – para alguém que se encontra em uma encruzilhada existencial muito semelhante à dos personagens, é fácil criar uma ligação com eles, e se ver dentro das situações e dilemas que eles encontram. (Aliás, é interessante comparar essa falta de rumo com outro romance do autor, South of the Border, West of the Sun, cujo protagonista constamente faz referência à forma como desperdiçou toda a década dos seus vinte anos).
Isso é muito punjente quando vamos analisar o terceiro livro da trilogia, Caçando Carneiros (este com edição em português), que o próprio Murakami considera o seu primeiro romance “de fato.” Os protagonistas agora estão há poucos meses de completarem trinta anos; ao analisá-los em conjunto, portanto, é possível ver uma certa jornada de amadurecimento, enquanto a falta de rumo que sentiam após saírem da universidade vai aos poucos desaparecendo, e eles se veem capazes de aceitar alguma objetividade em suas vidas. Essa objetividade é personificada na figura de um carneiro com uma marca de estrela, que os aproxima novamente depois de anos e dá a eles algo a que buscar ao longo da narrativa, e é difícil não imaginar que o destino último de Rato represente um pouco uma recusa de aceitar a entrada nesta nova fase, algo que o narrador sem nome parece fazer com menor dificuldade.
Aqui também já podemos ver um romance murakamiano mais típico, repleto de acontecimentos surreais e absurdos, bem como os fetiches peculiares que se tornariam constantes nos seus personagens (leia-se, orelhas incrivelmente bonitas). O estilo é muito mais maduro e bem acabado, com uma voz narrativa mais clara e consciente de si.
Apesar destes três livros fecharem a “trilogia do Rato” propriamente dita, há ainda um quarto volume que retoma muito dos temas recorrentes a ela. Em Dance Dance Dance (também com edição em português) novamente encontramos um narrador sem nome, que podemos concluir que seja na verdade o mesmo dos livros anteriores, e mesmo Rato chega a ser brevemente citado, assim como o Hotel do Golfinho de Caçando Carneiros, que volta a ter um papel importante a cumprir. É interessante pensar nele como um epílogo da trilogia: podemos ver assim como o narrador de fato amadureceu e envelheceu ao longo dos anos, e torna muito significativo, por exemplo, o fato de ser o único livro em que ele termina a história acompanhado, sem ser abandonado pelas mulheres que conhece ao longo do caminho (o que não quer dizer que não seja um final angustiante à sua própria maneira, é claro).
Enfim, é bem claro para mim que muito da leitura que faço dos livros tem a ver com o momento que vivo atualmente, como já falei em outra resenha este ano. Não sei até que ponto posso dizer que estes pensamentos condizem realmente com a intenção do autor, ou se outro leitor em outra situação faria a mesma leitura que eu, ou veria nos livros as mesmas virtudes. Penso como tem sido difícil para mim manter um certo ritmo de leitura ultimamente; nada que eu pegava para ler me envolvia, e fazia uns bons meses que eu não terminava um livro. Mas então de repente me vejo em um personagem, e isso talvez me dê alguma força para ir um pouco mais adiante. O que me falta, talvez, seja encontrar o meu próprio carneiro com marca de estrela.
Eu acabo de fechar a “trilogia de quatro livros” e acho que preciso de um descanso do Murakami antes de voltar novamente à ele (e eu já estava engatilhado para o próximo, mas… não, não por enquanto). Mas acho curiosos alguns detalhes.
Primeiro, de certa forma ele tem um abandono no livro sim — a relação entre ele e a Yuki é tratada como um namoro em quase tudo, com direito até a uma traição e reconciliação no meio (eles só não sabiam disso e nem seria bom que se dessem conta) — e para os dois isso é terapêutico.
Mas isso não é o real e precisava acabar daquele jeito (repare que ele disse ter se sentido como se fosse uma desilusão amorosa — acho que nenhum dos dois percebia a dinâmica entre eles), tanto que ao voltar para casa, só aí ele se lembraria de novo da Yumiyoshi (que estava sendo “deixada em segundo plano”). E se agarraria nela porque… bem, porque é o real, o “do lado de cá”.