A literatura é também uma oportunidade de viajar, e conhecer através da leitura lugares que talvez você não tenha a chance de conhecer fisicamente. Dentro dessa proposta, eu geralmente gosto de procurar livros de locais diferentes, e fugir da literatura ocidentalizada, quase totalmente luso- ou anglófona que normalmente domina os lançamentos por aqui. Foi um pouco por isso que me interessei por Beauty Is a Wound, do autor indonésio Eka Kurniawan, somado ainda ao interesse por um dos países mais populosos do mundo mas que não costuma estar em evidência nos noticiários, trabalhos acadêmicos (com a notável exceção do Benedict Anderson, autor que muito admiro) e rodas de conversa de maneira geral.
De cara é possível notar ecos bem fortes no livro do realismo mágico latino-americano, sobretudo García Marquez e os seus Cem Anos de Solidão. Partindo de uma frase de abertura daquelas a serem estudadas em cursos acadêmicos futuros – Em uma tarde de um fim de semana de março, Dewi Ayu levantou do seu túmulo após estar morta por vinte e um anos. -, o autor nos apresenta Halimunda, a sua Macondo, cidade fictícia que servirá de cenário para a história da prostituta mestiça Dewi Ayu e suas quatro filhas, três delas de uma beleza capaz de levar os homens literalmente à loucura, e a quarta de uma feiúra equivalente. O pano de fundo é a própria história da Indonésia durante o século XX, quando o país saiu de uma colônia holandesa para a ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial, a guerra de independência, e os conflitos políticos violentos que marcaram as suas primeiras décadas como república. Halimunda ecoa e reflete todos estes eventos, servindo como um observatório da forma como eles afetaram a vida no país.
Há algumas coisas que não ajudam muito no livro. A personagem Dewi Ayu, em especial, incomoda na sua perfeição, naqueles termos que definem o tropo da Mary Sue. Sua força de personalidade praticamente desde a infância chega a soar um pouco caricata, enquanto ela encara com um misto de distanciamento e tédio todas as provações por que tem que passar, desde o abandono pelos pais, a morte dos avós e a prostituição durante a guerra. De maneira geral, para um livro que coloca logo cinco mulheres como protagonistas, ele é bastante controverso na sua representação delas. Praticamente todas são definidas pela sua aparência – ou são daquela beleza estonteante de causar loucura, ou são proporcionalmente feias -, e a recorrência ao estupro como saída narrativa, bem como a própria resignação das personagens a ele, chega a parecer gratuito mais de uma vez. No fim, não são muitos personagens com quem você realmente simaptiza, entre os mais proeminentes estando o camarada Kliwon, jovem comunista que por isso acaba sendo levado a um fim trágico, e o valentão Maman Gendeng, ex-revolucionário, vagabundo e mestre das artes marciais.
Isso pode fazer parecer que se trata de um livro ruim, mas não é bem assim. Ele realmente te desafia mais de uma vez a abandoná-lo, mas, em última instância, ainda é uma leitura bastante prazerosa. Kurniawan escreve muito bem, e possui uma ironia fina ao tratar de assuntos como política ou o sobrenatural que encanta com facilidade. Em um determinado momento, a mãe do camarada Kliwon, ao vê-lo cabisbaixo e depressivo, pergunta, preocupada: você se tornou um comunista? Apenas um comunista seria tão triste. Em outro, Kliwon encontra o fantasma de um antigo companheiro, e pergunta como ele está; ao qual a aparição logo responde, não muito bem, camarada. Estou morto.
A narrativa também sabe como prender, indo e vindo no tempo com frequência, embora nos capítulos finais o uso muito constante desse recurso num espaço muito curto pareça causar alguma confusão no próprio autor. Praticamente cada começo de capítulo te prende como um bom começo de romance, e você se verá seguindo a narração até o final do trecho, apenas para ver-se preso novamente no capítulo seguinte. E de maneira geral o livro se encontra no seu auge quando faz referência à trajetória do país durante o século, levando a algumas reflexões interessantes sobre a relação do povo indonésio com a sua história recente.
Enfim, está longe de ser um livro perfeito, mas, em última instância, é uma leitura que valeu a pena, e que senti que realmente me adicionou algo de novo.
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