Arquivo para junho \21\-03:00 2019

Dona Zélia

zéliaEntão hoje se foi minha bisavó, a bisa Zélia. 102 anos e ainda esbanjava saúde e lucidez até algumas semanas atrás, quando complicações no sistema digestivo a levaram a ser hospitalizada. A última vez que tinha ido visitá-la foi no ano passado, acho, quando quis entrevistá-la sobre a sua vida e dedicação à educação pública, para um projeto que nunca rendeu muitos frutos. Pensei algumas vezes em voltar fazer mais entrevistas, pra registrar e guardar outras dimensões da sua trajetória, mas infelizmente não terei mais essa chance.

O texto abaixo vem das minhas anotações sobre esta única entrevista. Serve como uma pequeo obituário e uma última homenagem à essa pessoa fantástica que ela foi.

Zélia Antunes da Costa Nunes nasceu no Alegrete, Rio Grande do Sul, em 1917. Perdeu a mãe antes de completar dois anos, sendo criada na infância pelos avós na fazenda da família, na área rural da cidade. Aos dezesseis anos casou-se com José Bonifácio da Costa Nunes, que era quase quinze anos mais velho. Algum tempo depois, mudou-se para Uruguaiana, principal centro urbano da região.

Vinda de uma família tradicional, desde cedo fora ensinada que não era papel da mulher trabalhar – o sustento da casa deveria vir do marido, mesmo que os negócios familiares já não fossem tão bem-sucedidos e os tempos fossem de vacas magras. Ainda assim, vendia doces escondida, sem o conhecimento dos homens da casa, e com o dinheiro comprava material escolar para os filhos. Mesmo tendo terminado a Escola Normal e recebido o diploma de professora, não tinha a expectativa de pô-lo em uso.

Isso mudou aos trinta anos, quando, por influência da irmã, e contra a vontade do marido, Zélia começou a lecionar na escola pública em Uruguaiana. Seu sucesso como professora chamou a atenção, e logo já estava na Delegacia Regional de Educação, responsável pela coordenação das escolas estaduais de nove municípios. Em votação interna, foi escolhida por unanimidade a Delegada de Educação da região. Conta-se que nesta época, em uma querela política que a levou a Porto Alegre para dar satisfações e a ameaçar entregar o cargo, o próprio Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul conhecido pelas suas políticas para a educação, teria dito:

– Se eu tivesse mais Zélias, deixava a educação no Estado do jeito que eu quero!

Foi ainda Secretária Municipal de Educação e Assistência Social em Uruguaiana, termo durante o qual fundou o programa de alfabetização de adultos e implantou o sistema de assistência social na cidade. No final da década de 1960, no entanto, teve que mudar-se para Porto Alegre devido à doença do marido. Mas não deixou de trabalhar: fez parte da equipe que inaugurou a Febem na capital gaúcha, e posteriormente assumiu um cargo no gabinete do Secretário Estadual de Educação, que ocupou até a aposentadoria.

Durante toda a vida, e ainda na velhice, Zélia sempre impressionou a todos por sua saúde e lucidez, que nem a morte de três dos cinco filhos abalou. Diz-se que era tudo graças às palavras cruzadas que fazia, religiosamente, todo dia. Jamais aceitou que alguém passasse por ela sem saber ler, escrever ou fazer contas: se necessário chegava a dar aulas particulares para suas empregadas domésticas, completando a sua alfabetização. Em 2013, durante a tensão das jornadas de Junho e a repressão policial, chegou a sair às ruas para acompanhar a movimentação próxima à sua casa, no bairro Cidade Baixa.

Em 2017 completou cem anos de vida. Usava Facebook e Whats App, e discutia política, cultura e novela com mais entendimento que muitos perfis de redes sociais. Tinha uma foto do Getúlio Vargas na estante, e diz-se que só não colocava uma do Brizola ao lado por proibição do filho com quem dividia a casa. Deixa uma família numerosa, muito saudosa da sua presença, mas, acima de tudo, orgulhosa da pessoa que ela foi.


Sob um céu de blues...

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