Archive for the 'Crônicas' Category

O Caminhar

Caminhar é bom. Caminhar é fácil. Um pé depois do outro, e de novo, e de novo, e, com alguma sorte, se chega a algum lugar. Nem que seja só metaforicamente.

Dizem que o primeiro passo é o mais difícil. Não discordo: é o Passo da Coragem, assim, com maiúsculas mesmo. O segundo e o terceiro, e às vezes mais alguns depois, também são difíceis; são os Passos da Confiança. Depois a coisa vai naturalmente, um pé depois do outro, e de novo, e de novo, até chegar perto do fim. Mas o último passo, esse também é complicado: é o Passo do Arrependimento, com hesitação acumulada de todos os anteriores. Eventualmente, no entanto, se passa por ele também, e o caminhar termina.

E que tristeza, então! Saudades do movimento, do senso de objetivo; o caminhar, mesmo que em círculos, nos dava um sentido, e uma direção. Mas então acaba, e tudo volta à inércia do corpo parado. Que bom seria se caminhar pudesse ser o próprio objetivo! Estar sempre em movimento, em ponto morto, sempre em direção a algum lugar que é lugar nenhum…

Mas não: sempre há um ponto final, culminante, onde se encerram os passos acumulados com tanta vontade e determinação, e onde a força motriz do caminhar finalmente acaba e cede ao atrito e à resistência do ar.

A física é um saco.

Seis da Manhã

Não existe horário mais ilustrativo da condição humana do que as seis da manhã. É tarde demais para continuar a noite, mas também cedo demais para começar o dia; fica precisamente nesse vácuo cotidiano, aquele período entre os dias, nem mais ontem, nem ainda hoje. É aquele momento onírico, quase mágico, em que toda a humanidade compartilha a mesma condição de existência, a mesma sonolência e inércia que os move tediosamente até a hora seguinte.

Pois ninguém que está acordado e ativo às seis da manhã deseja estar. É o ponto de encontro dos boêmios e dos trabalhadores, seja em casa ou na rua; o fim das noitadas épicas, o início das jornadas diárias para ganhar o pão. Todos reunidos na mesma vontade: a ânsia de estar em outro lugar, viajando em mundos de imaginação e fantasia criados pelo sono, longe da dura realidade cotidiana. E é isso que os une, que os transforma nessa comunidade livre de preconceito e discriminação. Todos são irmãos às seis da manhã, e trocam seus olhares silenciosos de reconhecimento à desgraça que compartilham.

Mas, àqueles que perdem suas seis da manhã nas horas de sono e sonhos que os demais gostariam de ter, sinto pena de vocês! Podem se imaginar satisfeitos e abençoados, mas no fim, felizes que acreditem estar, perdem a experiência desse algo maior, dessa epifania. Não me surpreenderia em descobrir que os maiores avanços da humanidade tivessem saído de pensamentos perdidos nesse horário, enquanto se espera o ônibus para a escola passar; e realmente duvido que qualquer tipo de mal verdadeiro e intencional possa ser praticado antes das sete.

Seis da manhã é, enfim, um horário mágico, único na grade de horas que constróem o dia. Outros horários podem ser mais felizes, mais trágicos, mais produtivos; mas nenhum deles chega sequer perto de compartilhar do mesmo simbolismo e poesia que as seis da manhã possui.

Fila Vida

Estar vivo é estar esperando. Desde que se viva, se espera – uma hora, uma data, uma pessoa, um objeto. Esperamos na fila do banco, e esperamos nos intervalos da TV. Esperamos o filme começar, e, uma vez que comece, não poucas vezes esperamos pacientemente que termine. Esperamos aquele verso da música de que gostamos, ou aquele riff magnético de guitarra, ou aquela linha dançante de baixo. Esperamos, deitados na cama e olhando pro teto, sem saber o quê: apenas esperamos, verbo intransitivo.

Esperamos nove meses até nascermos, e então, uma vez lançados ao mundo, continuamos a esperar: esperamos o leite da mãe, fraldas limpas, o sono – ou, pelo menos, o esperam nossos pais. Ganhamos consciência de nós mesmos, e continuamos a esperar: esperamos a hora do recreio, o fim da aula, a hora do almoço, a hora de dormir. Esperamos o fim de semana, e, quando ele chega, não é o bastante; então continuamos esperando, mas desta vez as férias.

Esperamos o aniversário, a páscoa, o natal, o ano novo. Esperamos o resultado do vestibular, e, uma vez na faculdade, esperamos o fim dela. Esperamos um emprego, e poder sair dele para um melhor. Conhecemos alguém de quem gostamos, e esperamos dolorosamente até podermos estar juntos dela. Esperamos casamentos, formaturas, nascimentos, a final do campeonato – seja para alegria ou para a tristeza.

Esperamos o sossego, o alívio e o ócio. Esperamos a partida, e, depois dela, a solidão. E esperamos até o fim, até a espera final depois da qual nada mais há o que esperar – e, portanto, o que viver. E talvez, alguém certamente há de pensar, toda a vida se resuma mesmo a essa espera derradeira, estendida desde o início e diluída no caminho em incontáveis esperas menores.

Viver é esperar, afinal.


Sob um céu de blues...

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