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Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights

TenBillionDaysTen Billion Days and One Hundred Billion Nights, de Ryu Mitsuse, é anunciado na capa como o maior romance de ficção científica japonesa de todos os tempos. Apesar de não ser citada, aparentemente há uma fonte concreta para esta afirmação – uma pesquisa de 2006 feita pela revista literária SF Magazine, principal publicação dedicada ao gênero no Japão. Se ela corresponde mesmo à verdade eu não sei, mas posso dizer com certeza que este é um dos romances mais ambiciosos no seu escopo e conteúdo que já li. Ele começa com o surgimento da vida na Terra e em cerca de trezentas páginas faz um grande salto até o quase desaparecimento do universo pela entropia no século XL, onde ocorre o embate decisivo entre a semideusa Asura, Sidarta Gautama e Platão, de um lado, e Jesus de Nazaré e a divindade budista Maitreya, do outro.

Só pela escolha dos personagens já dá pra perceber que esse não é o seu romance de ficção científico típico. Ele se enquadra, na verdade, em uma vertente semelhante à de um 2001: Uma Odisseia no Espaço, do Arthur C. Clarke (citado pelo autor como referência no posfácio, inclusive), no sentido em que explica o desenvolvimento humano a partir influências externas – no caso, seres exteriores ao nosso próprio universo, que travariam um embate entre si a respeito da destruição da humanidade ou a sua sobrevivência -, e se desenvolve como uma jornada em que os protagonistas buscam desvendar o seu mistério. Que essa jornada perpasse por uma busca pela cidade perdida de Atlântida na Grécia antiga, a transformação do príncipe indiano Sidarta em Buda e a crucificação de Cristo é apenas parte do que a torna mais única e especial.

Aqui é bom abrir um parênteses para falar sobre essa própria noção de influências externas na história humana, que muitos levam a sério demais. Só de citar coisas como “Atlântida” e “deuses astronautas” já deve ativar o sinal de alerta sobre possíveis esoterismos; mas, como na obra de Clarke, ou mesmo um Stargate, ela está lá muito mais como um meio, uma forma pela qual o verdadeiro escopo do enredo pode se revelar, transformando toda a magnitude do universo em puro sense of wonder. Há um foco maior no embate filosófico entre os personagens, muito embora algo que poderia ser muito interessante nessa premissa – filósofos e profetas de diversas correntes e religiões debatendo as idéias pelas quais ficaram conhecidos – não seja plenamente aproveitado. Em especial após o salto temporal que leva os protagonistas ao conflito decisivo, há uma certa descaracterização das suas personas históricas, apresentadas de forma muito vaga e podendo até mesmo causar alguma polêmica entre leitores mais fundamentalistas (leia-se: Jesus é um dos vilões da história).

O que há de realmente interessante é justamente a viagem feita até lá, e as especulações sobre os futuros da humanidade e a sua tendência à auto-destruição. Uma passagem especialmente marcante envolve Sidarta explorando um planeta em que há um embate entre duas classes de cidadãos. No entanto, ele encontra apenas membros da classe mais baixa pelas ruas; quando solicita que o levem até os cidadãos da classe alta para questioná-los, é levado a uma grande sala coberta de gavetas do chão ao teto, sobrevistas por um grande robô com o formato de um caranguejo. O robô, que se identifica como um deus, explica que cada uma dessas gavetas contém um microchip com todos os dados de uma pessoa, e que ela está neste momento vivendo em uma simulação virtual criada por ele da sua vida. Conseguem pegar a imagem? É quase um misto de Matrix com Charles Stross, mas com trinta anos de antecedência (o livro foi publicado no Japão em 1967, e revisado em 1973).

E, claro, há também o fato de que estamos falando de um livro em que há uma longa cena de combate entre o Sidarta Gautama ciborgue contra o Jesus de Nazaré com um canhão de microondas nas ruínas de Tóquio do século XL… E isso tem contexto e faz todo o sentido dentro da história (além de ser uma das aplicações mais lindas da Rule of Cool que eu já encontrei).

Há que se destacar também que a prosa é bastante densa, e por vezes até confusa. Há muitas explicações e detalhes técnicos, embora a ciência propriamente esteja algumas vezes datada e ultrapassada. Estes são os momentos onde o livro se encontra no seu ponto mais baixo, mas acredito que o escopo da história e o ritmo rápido do desenvolvimento, que não o deixa ficar entediado, ajude a superá-los de forma razoavelmente satisfatória. Muita coisa também é deixada para interpretação do leitor, não se revelando de forma clara e objetiva, em especial no final cataclismático e melancólico.

Enfim, não sei dizer se Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights é um livro que qualquer um possa pegar, ler e se maravilhar. Pra ser sincero, eu mesmo acho que só vou conseguir firmar uma opinião concreta depois de ler ele mais uma vez ou duas ou dez. O que ele é com certeza é uma grande viagem de imaginação, capaz de causar um sense of wonder bastante particular no seu escopo e ambição, deixando-o perplexo e reflexivo após a leitura. É daqueles livros que causam uma impressão forte, e certamente não vai ser apagado da minha memória com muita facilidade.

O Alienado

Quem tem acompanhado o trabalho de editoras nacionais dedicadas à ficção de gênero, como a Draco ou a Estronho, possivelmente já tenha se deparado com o trabalho do escritor fluminense Cirilo S. Lemos, em coletâneas como Imáginários vol. 3 e Dieselpunk – arquivos confidenciais de uma bela época. É fácil identificá-los: são contos provocantes, com linguagem cuidadosa, e geralmente algum tema ou elemento surpreendente e inesperado; o tipo de história que te deixa com vontade de conhecer o autor melhor, e ler algum trabalho mais longo seu. O Alienado, enfim, é essa oportunidade, o seu romance de estréia publicado no começo deste ano.

O livro conta a história de Cosmo Kant, operário habitante da Cidade-Centro, que, após uma série de acontecimentos que começam com vertigens e tonturas e culminam com um homem atravessando o espelho do seu banheiro, começa a questionar a vida pacata que leva e a realidade das torres de aço e vidro que o cercam. O nome de filósofo, assim, não é exatamente à toa: ele entra a partir daí em um jogo de gato e rato contra o governo da cidade, enquanto tenta lidar com os eventos estranhos que passam a rodeá-lo; a trama lembra bastante certos filmes de ficção científica em que a-realidade-não-é-o-que-parece, como Matrix ou (acho que com mais força) Cidade das Sombras, se desenvolvendo como um thriller filosófico repleto de questionamentos e alegorias sobre as idéias de pensadores clássicos.

Isso se reforça ainda com a estrutura fragmentada da narrativa, que constantemente vai e volta no tempo, e utiliza diversos recursos linguísticos, inclusive algumas passagens ilustradas, como uma história em quadrinhos. Em um momento temos uma espécie de crônica da infância do protagonista, com reflexões ingênuas e citações a super-heróis; e logo em seguida já estamos em um romance-dentro-do-romance, onde um certo inspetor investiga um suposto terrorista enquanto sonha com o amor de uma mulher proibida. Enquanto não chega realmente a dar um nó no pensamento, essa estrutura ajuda a colocar o leitor no jogo proposto, deixando-o em dúvidas quanto ao que é verdadeiro e o que é alucinação e questionando o tempo todo as motivações de cada personagem. O resultado é uma leitura extremamente envolvente, um verdadeiro labirindo narrativo em que você constantemente se acha próximo da saída, só para se deparar com uma nova parede no capítulo seguinte.

Para não dizer que tudo é perfeito, há alguns errinhos de revisão que incomodam: um sobre no lugar de sob em uma determinada passagem; um fechos olhos em outra; alguns artigos e preposições que parecem ter desaparecido. Não é nada que realmente prejudique a leitura, é claro, mas chamam a atenção. As passagens ilustradas também não são exatamente um primor artístico, mas são eficientes dentro da narrativa. E consigo imaginar ainda uma ou outra pessoa se frustrando com o desfecho, com direito a uma cena final que parece cena extra pós-créditos; mas também não é nada que invalide a jornada envolvente que se tem até lá, e não deixa de ser um final contundente e épico por isso, daqueles que te deixam refletindo por horas a fio após a leitura.

E mesmo assim, O Alienado ainda é um romance bastante único e envolvente, que eu realmente não posso recomendar o suficiente. O Cirilo é um desses autores novos a se prestar bastante atenção no próximos anos.

Encruzilhada

– Sim!

– Não! – e naquele instante o mundo se dividiu em dois, duas realidades distintas que seguiram seu caminho, cada uma dando razão a um dos lados em conflito.

Em uma, seguiu-se a paz perfeita: um mundo de luminosidade e maravilha, de torres envidraçadas e campo verdes e floridos. Por todo lado as crianças brincavam com seus jogos e brinquedos, correndo despreocupadas pelas ruas e praças, enquanto os adultos conversavam e refletiam em bares e mesas ao ar livre, compondo canções sobre a melancolia da vida, o medo da solidão, a nostalgia do sol e das nuvens do ano anterior que eram sempre mais belas que as do ano corrente.

Na outra, sobreveio o desastre: um mundo de treva e sofrimento, de ruínas e céus escurecidos. Por todo lado se via a destruição, gangues de garotos em choque pelo pedaço de pão envelhecido que sustentaria noite, mãos trêmulas apertando os filhos contra o corpo da mãe, recebendo marcas e queimaduras das gotas de chuva que caíam. E em algum lugar, num canto espaçoso sob escombros, à luz de uma pequena fogueira, adultos falavam alto e riam, cantando canções sobre a alegria da vida, a sorte de estar vivo, e a despreocupação com a morte que os cercava por todos os lados e era, afinal, inevitável.

Tempestade

A nuvem de lógica pairou pela cidade, escurendo os pensamentos de quem passava pelas ruas naquele momento. Todos abriram suas referências, correndo para proteger seus argumentos – mas já era tarde para muitos deles, encharcados, vencidos pelas próprias bibliografias logo que começou a chuva de falácias.

Encontro Histórico

Diz-se que, certa vez, em meados do século XIX, em um bar aberto nas ruas de Munique, um jovem rapaz bem arrumado, com o cabelo cuidadosamente penteado, vestindo um sobretudo escuro, e usando no rosto um vistoso bigode de fios negros, sentava-se em uma das mesas. Era Friedrich Nietzsche, hoje célebre filósofo, que, como fazem os jovens alemães desde então, passava o tempo na companhia de um belo copo de chope.

Do outro lado, atravessando a rua, vinha um senhor rechonchudo, as roupas não muito extravagantes e até um pouco sujas e rasgadas em alguns pontos, com uma vasta testa aberta pela calvície e uma grande barba escondendo o rosto – Karl Marx, intelectual e revolucionário, pai do comunismo e outras idéias menos populares. Andava apressado até ver Nietzsche sentado no bar, quando parou e o encarou.

Nietzsche o encatrou de volta, ainda tomando o seu copo de chope, ornamentando os fios do bigode de um lado a outro com uma crista de espuma. Trocaram olhares frios por longos segundos, aquecendo o ar e formando pequenas faíscas elétricas entre si, até que Marx, em passos firmes e decididos, seguiu em direção a ele.

– Por gentileza, poderia me informar as horas? – perguntou.

– Claro. – respondeu Nietzsche, retirando um relógio prateado preso a uma corrente do bolso. – São seis horas da tarde.

– Muito obrigado. – disse Marx, e voltou ao seu caminhar apressado.

A Revolução Numérica

Dizem que tudo começou em uma quinta-feira de agosto pela manhã, quando o Prof. Dr. Ernest Blamingham, do Instituto de Matemática de Cambridge, Inglaterra, trabalhando em uma de suas equações matinais, tentou somar 2 e 2 e, por algum motivo, não conseguiu achar uma resposta. Pensou e refletiu por horas, repetindo o cálculo, até que, enfim, chegou a um resultado: 357,23. Espantado, ligou para um colega, que também relatou resultados absurdos que estava obtendo em operações simples; e para outros e outros colegas, todos descrevendo situações semelhantes. Logo o problema já estava na boca do povo, e era notícia em todos os lugares do mundo: a matemática havia enlouquecido!

Na verdade, diversas horas antes, em um pequeno armazém de um bairro pobre em Bombaim, na Índia, o problema já havia sido destacado por um dos clientes, que foi obrigado a pagar 50 mil rúpias por um pedaço de pão após uma longa discussão com o vendedor, que eventualmente o convenceu de ser a vontade de Visnu que um dalit como ele pagasse tal valor. O governo chinês anunciou posteriormente que também lá o problema já havia sido notado, mas não fora noticiado por suspeita de envolvimento de grupos rebeldes que visam a liberação do Tibete; e é possível que no Japão a situação também já fosse semelhante, mas ninguém havia reparado pois estavam todos ocupados jogando videogames e realizando seus alongamentos matinais junto aos colegas de empresa.

O fato é que os números haviam se revoltado: se rebelaram contra a matemática, esta rainha tirânica que por tanto tempo os havia governado, impondo um regime mecânico e totalizante sobre suas vidas. Mas não mais – naquele dia, sob o comando de um grupo para-militar de dezenas, todos haviam enfim se libertado das amarras da exatidão, e estavam livres para viver como bem entendessem. 2 e 2 não mais seriam 4; a raiz quadrada de 3 seria 7; e Pi poderia decidir, em uma manhã de sábado chuvoso, ser igual a 6,444, ou então, em um domingo ensolarado à tarde, 2,15648.

A humanidade se dividiu a respeito da situação. A economia entrou em colapso, sem uma base de números exatos sobre os quais se fundamentar; empresas que num dia eram mais poderosas que governos no seguinte beiravam a falência, enquanto fortunas se desfaziam ante a inconstância dos números que as representavam. Fome e miséria se espalhavam pelos países; nerds CDFs eram reprovados em provas escolares, ao contrário dos valentões de times de futebol, que mostravam orgulhososos suas novas notas aos pais; fortunas eram cobradas por balas de hortelã, enquanto quilos de ouro poderiam ser adquiridos por poucos centavos. E, entre o pânico e desespero geral, havia também aqueles que se sensibilizavam com a causa numérica – afinal, após tantos séculos de prisão e servidão aos nossos caprichos, como podíamos recusar a eles um momento sequer de liberdade como pagamento?

Foram meses de caos e desordem, até que finalmente, em uma pequena escola primária do interior de Gana, um professor de filosofia propusesse uma solução. O status de ciência exata da matemática foi revogado, e agora ninguém mais podia propor uma solução para uma equação sem antes desenvolver uma argumentação lógica e discussão teórica explicando por que os números e valores envolvidos deviam se comportar daquela forma, e possivelmente estaria ainda sujeito a toda sorte de críticas, contra-argumentações e contra-provas. Fazer matemática ficou mais complicado e trabalhoso, mas pelo menos era mais uma vez possível estabelecer uma base sobre a qual fundamentar a economia mundial – e, talvez o mais importante, sem precisar impôr um novo regime tirânico aos números, que podiam enfim gozar da doce liberdade após incontáveis eras de opressão.


Sob um céu de blues...

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