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Ms. Marvel & Gavião Arqueiro

Recentemente tem sido lançadas por aqui, em encadernados de capa dura bastante caprichados, duas das séries mais bacanas produzidas pela Marvel em muitos anos. Como os volumes de ambas estão saindo praticamente ao mesmo tempo, acho que podemos falar delas em conjunto, ao invés de gastar um post inteiro apenas para cada uma.

ms-marvelEm primeiro lugar temos a nova Ms. Marvel. Kamala Khan é uma adolescente comum de Jersey City, que, após fugir de casa para ir a uma festa com os colegas de escola, se vê inalando uma névoa misteriosa que atingiu a cidade e lhe concedeu superpoderes metamórficos. Fã dos Vingadores, se inspira em uma de suas heroínas preferidas para escolher uma alcunha e proteger a cidade de perigos e vilões.

Kamala pertence àquele nicho muito particular dos super-herois, os herois adolescentes. Em certo sentido, ela faz aquilo que personagens como o Homem-Aranha, por toda a sua história prévia, já deixaram de fazer há algum tempo: cumpre o papel do herói que deve salvar a cidade, enfrentar vilões, e terminar tudo antes de se atrasar para a escola. Seu universo, no entanto, é atualizado em relação ao cabeça de teia, e por isso muito mais contemporâneo, com direito a celulares e internet onipresentes. Entre uma aventura e outra, espere vê-la lidando com dilemas muito mundanos, do conflito da sua rebeldia adolescente com a família tradicional até o relacionamento com colegas e amigos na escola.

Acima de tudo, Kamala esbanja carisma. É uma personagem com quem é muito fácil se identificar, pelo menos para quem passou pela experiência de ser um fã de quadrinhos adolescente. Nerd, chega mesmo a tietar seus ídolos quando os encontra em meio às histórias – o seu encontro com o Wolverine no segundo volume é simplesmente sensacional. O mesmo vale para os coadjuvantes das histórias, indo desde a família e amigos próximos, passando pelo mascote Dentinho, e até o próprio vilão Inventor; é fácil criar histórias envolventes e cativantes quando se tem um elenco de personagens tão carismático e imaginativo, e isso fica muito evidente quando se lê estes volumes.

Note que tentei evitar até aqui falar aquela palavrinha mágica, que por alguma razão além da minha compreensão virou meio que tabu e muito associada a essa última reinvenção do universo Marvel. Mas vou dizer logo então pra me livrar desse peso: representatividade.

Ms. Marvel é, sim, uma série que busca a representatividade. De alguma forma apenas ter uma protagonista mulher se tornou hoje algo quase subversivo; e a série ainda vai além, representando uma população (os muçulmanos americanos) que não costuma aparecer em destaque com muita frequência nos quadrinhos mainstream. E não pense que ela tenta fugir ou se esconder desse subtexto: ele é sim colocado em primeiro plano, na própria Kamala, a forma como a cultura da família traz conflitos e dilemas à personagem, e mesmo a trama desses primeiros arcos de histórias, que envolve adolescentes aliciados para um culto que os convence a se sacrificar por um suposto bem maior (defina alegoria). A autora, G. Willow Wilson, ela própria uma muçulmana americana, traz muito da sua experiência pessoal para a série, dando-a mais significado e verossimilhança.

Se eu não mencionei esse aspecto até aqui, é porque não queria reduzir uma série tão fantástica apenas a ele. Ao mesmo tempo, no entanto, ele não pode realmente ser separado dela – Ms. Marvel não é uma série fantástica “apesar da representatividade;” ter esse elemento faz parte do que a torna tão legal. Torna os conflitos e dilemas da personagem mais reais, deixa o seu universo mais contemporâneo e significativo, e de uma maneira geral a reveste de personalidade e atitude. O fato de ser uma série tão bem escrita, e ter personagens tão carismáticos, apenas potencializa isso. Mas se ainda assim você não conseguir gostar, apenas porque a protagonista é mulher ou muçulmana… Olha, sinto muito dizer, mas não é a representatividade que é o problema aqui.

gav-arqueiroA segunda série recebendo encadernados nacionais não chega a tratar de temas tão polêmicos. Vendo em um primeiro momento, aliás, chega a parecer o exato oposto: uma série sobre um protagonista homem, branco, cis-hétero. Mas isso não a torna menos bacana também – na verdade, é um mérito e tanto conseguir pegar um dos personagens normalmente tidos como mais sem graça da editora, e reinventá-lo como um dos mais legais e carismáticos.

Em Gavião Arqueiro, vemos a vida de Clint Barton quando não está se aventurando com os Vingadores. Aqui o fato de ele ser o “cara normal” do super-grupo – pelo menos tão normal quanto alguém capaz de enfrentar uma horda de mafiosos armados usando apenas arco e flecha pode ser – se torna o mote condutor da história: o vemos no dia-a-dia, em atividades cotidianas, lidando com problemas da vizinhança, e, claro, enfrentando a eventual gangue de mafiosos.

Há uma pegada meio noir contemporâneo nos roteiros, dos antagonistas oriundos do mundo do crime até a presença constante de femme fatales (algumas das quais entre suas companheiras de equipe). A caracterização do herói mesmo bebe muito dessa fonte: vemos Clint como um personagem mal compreendido, emocionalmente destruído, que busca de alguma forma fazer o que parece certo por meios nem sempre assim tão corretos. Como qualquer detetive durão de Raymond Chandler, espere vê-lo apanhando bastante de capangas e oponentes antes de conseguir resolver os problemas em que acaba se metendo.

É muito fácil se identificar com a relutância de Clint, que não é bem um super gênio, soldado experimental, nem portador de poderes radioativos; e os autores se aproveitam muito disso nas histórias. Longe das ameaças cósmicas de destruição do planeta, seus problemas são de fato muito mais mundanos, envolvendo relacionamentos com mulheres, a preparação para festas natalinas, até a forma como ajuda seus vizinhos a lidar com uma enchente na cidade.

O ponto em que a série mais se destaca, no entanto, mais do que os próprios roteiros, é a narrativa arrojada desenvolvida pelos autores. O enquadramento dos quadrinhos são muito dinâmicos, como em um filme de ação tarantinesco, buscando ângulos inesperados para mostrar o que está acontecendo. Em algumas histórias você quase consegue ouvir a trilha sonora de rock independente. E frequentemente há espaço para experimentalismos narrativos, que exploram as características dos quadrinhos que não podem ser replicadas em outras mídias – como idas e vindas no tempo entre as páginas, ou uma história inteira contada do ponto de vista de Sortudo, o cachorro de Clint, com sacadas visuais geniais para dar conta da sua percepção guiada pelo faro.

Tanto Ms. Marvel como Gavião Arqueiro, enfim, representam o melhor que a Marvel produziu nos quadrinhos em muito tempo. São séries fantásticas, que simplesmente não podem ser ignoradas por quem gosta do gênero.

As Dez Torres de Sangue

deztorresAs Dez Torres de Sangue, de Carlos Orsi, conta a história do aventureiro Suleiman Ibn Batil e da fidalga Dona Teresa, enquanto ambos desvendam os segredos da cidade misteriosa de Antares no deserto do Saara e tentam pôr fim aos atos sombrios que lá são realizados. Ambientado na era dos descobrimentos, o livro busca criar para si um ambiente semi-histórico, bebendo na mitologia cabalística e do ocultismo árabe para se desenvolver como uma aventura de espada e feitiçaria que não envergonharia os clássicos de Howard e Leiber.

O foco, como em toda boa história do gênero, está muito mais na ação e na aventura, com uma certa dose de horror, do que propriamente no desenvolvimento dos personagens e profundidade do enredo. Mas isso não é um defeito, é claro: para quem busca justamente isso, é um prato cheio. A trama se desenvolve praticamente como uma exploração de masmorra, e você consegue imaginá-la sem dificuldades como uma aventura de RPG. No caminho, monstros grotescos, artefatos mágicos e uma boa dose de coragem frente ao desconhecido.

A narrativa é fluida, embora, para quem tiver um olhar mais crítico, haja uma passagem ou outra que poderia ser revisada; nada que realmente incomode. Há alguns desvios mais problemáticos na construção do cenário histórico, no entanto. O que mais me incomodou foi uma citação a uma adaga que teria sido forjada no Afeganistão, país que só passou a existir como tal no século XX. Outros pontos podem requerer um pouco mais de conhecimento histórico e apego a detalhes para serem percebidos (leia-se: chatice mesmo), mas em geral são pontos que poderiam ter sido evitados sem dificuldade com um pouco mais de cuidado.

Outro ponto relevante a se destacar é que é um livro bastante curto, pouco mais do que um conto longo, que você lê em uma ou duas sentadas tranquilamente. Mesmo com o lindo trabalho gráfico, como é padrão na editora, isso pode afastar aqueles que gostem de ter o máximo de leitura pelos seus reais investidos. Mas não acho que aqueles que forem menos pães-duros vão se decepcionar – por mais que seja uma leitura curta, ainda é uma boa leitura, que, mesmo com alguns problemas pontuais, entretém pela sua duração.

Enfim, é um bom livro, que eu recomendo para os que gostam de histórias de aventura e feitiçaria.

Habibi

Tenho um pouco de pena de quem ainda vê as histórias em quadrinhos como “coisa de criança,” pura e exclusivamente. Isso não vem de uma visão elitista que querer defender que só adultos possam apreciá-las adequadamente, é claro. Elas certamente são muito atrativas para elas, pelas suas imagens coloridas mescladas à leitura, o que as torna ferramentas muito úteis na alfabetização no desenvolvimento da leitura; mas não há nada intrínseco à mídia que impeça que uma obra realmente adulta e madura seja feita através dos seus códigos e linguagem. É só ver o que fizeram nomes como Will Eisner, Robert Crumb e Art Spiegelman nos últimos cinquenta anos, ora…

Habibi, do norte-americano Craig Thompson, é outro excelente exemplo de HQ que não faria feio em qualquer prêmio literário. Ela tem tudo o que se espera de uma grande obra em prosa: é ousada e ambiciosa na exploração da linguagem, tanto a visual como a escrita; trata de temas maduros e intrinsecamente humanos como o amor (em todos os seus sentidos), a sexualidade, a religião; é apoiada por uma pesquisa profunda sobre a cultura árabe; e constrói de forma única e envolvente todo um universo de personagens e as relações entre eles e o mundo à sua volta. Mais do que tudo isso, ela faz ainda uma das mais bonitas homenagens à própria arte de contar histórias.

Os personagens principais são Dodola e Zam, duas crianças escravas que fogem dos seus dos seus captores antes de serem vendidos. Vagando pelo deserto, encontram um barco semi-enterrado na areia, onde fazem o seu lar, crescem e amadurecem nos anos seguintes. Para passar o tempo entre as buscas por comida e água, Dodola conta a Zam as histórias que conhece, contos retirados do Corão, transformando inadvertidamente a sua própria história em uma versão moderna de As Mil e Um Noites.

Claro que coisas acontecem e ambos são obrigados eventualmente a abandonar este Éden, partindo para enfrentar o mundo em jornadas separadas até a sua reunião arrebatadora. Mesmo distantes, no entanto, um está sempre com o outro, e, principalmente, à procura do outro. As histórias que contam então passam a ser um ponto norteador, um guia que os ajuda a enfrentar as dificuldades que encontram, e que os lembra constantemente daquele que os espera no fim das suas provações, e por quem nenhum deles pode desistir e ficar para trás.  Tudo isso em um cenário atemporal, em que um suntuoso palácio de prazeres pode estar ao lado de um lixão repleto de sucata e sujeira.

É uma história fantástica e cativante, complementada ainda pela arte maravilhosa. Will Eisner já dizia que a linguagem dos quadrinhos, ou arte sequencial, como ele a chamava, é o que se encontra na junção do texto e da imagem: nenhum deles é negligenciável; mesmo que você faça uma história sem palavras e diálogos, a simples disposição das imagens em uma determinada sequência já dá um novo significado para as suas paisagens e personagens, transformando-as, efetivamente, em um texto. Poucas vezes eu vi uma obra que explore esta idéia de forma tão profunda: palavras e imagens se mesclam, bordas belíssimas são usadas para destacar as histórias dentro da história, o próprio formato dos quadros e páginas é cheio de significados, colocando a ação dentro de símbolos místicos e religiosos. Em um determinado momento, por exemplo, Dodola está na chuva, e as gotas de água na verdade formam palavras em árabe – o autor, aliás, aprendeu a língua apenas para produzir a obra; em notas explicativas no final, sabemos que estas palavras formam na verdade uma canção sobre a chuva de um poeta iraquiano. A narrativa toda é cheia de jogos semelhantes, que dão novos significados a imagens que parecem simples, e novas camadas de profundidade à leitura.

Enfim, não posso recomendar Habibi o suficiente. É a melhor leitura que eu fiz este ano, seja entre quadrinhos ou literatura em prosa, de longe. Não me surpreenderia se o Craig Thompson ainda fosse o primeiro autor de quadrinhos a ser consagrado com um Nobel de literatura ou outro prêmio semelhante.

Uma História de Deus

21312747_4É sempre polêmico falar de religião e religiosidade, ainda mais em tempos de avanços científicos e questionamentos éticos e morais que parecem colocá-los sempre em embate com a ciência e o espírito modernos – é muito fácil cair em algum tipo de extremismo, seja o fundamentalismo religioso, que nega qualquer tipo de teoria ou prova científica, ou então um certo tipo de fundamentalismo ateu, que não só nega a religião como ainda tenta desconsiderá-la e desmerecê-la por completo, ignorando que a sua função nunca foi a de apenas explicar o mundo. Por outro lado, é difícil achar algum tipo de meio-termo, não necessariamente de conteúdo, mas principalmente de abordagem; não falo de conciliar os dois lados do embate, mas simplesmente de entendê-los e respeitá-los simultaneamente. Pra mim, o caso mais emblemático que consegue esse feito é o de Joseph Campbell, que estudou a história das mitologias e da religião de um ponto de vista assumidamente ateu, mas nem por isso desprovido de espiritualidade; alguns mais religiosos que lêem sua obra chegam mesmo a dizer que ela foi capaz de reforçar e desenvolver sua fé ao invés de negá-la, como relatou Bill Moyers na famosa entrevista que deu origem ao livro e à série O Poder do Mito.

Karen Armostrong é outra estudiosa que segue pelo mesmo caminho, em grande medida influenciada pelo trabalho de Campbell. Essa abordagem é bem visível em Uma História de Deus, trabalho de pesquisa histórica em que ela analisa o desenvolvimento da idéia e do conceito de Deus nas três grandes religiões monoteístas, a partir de um estudo crítico e detalhado não só da Bíblia e do Corão, mas também das idéias e trabalhos dos grandes pensadores e teólogos judeus, cristãos e muçulmanos de diversas épocas. Desde o Deus-Céu dos povos primitivos até a anunciada morte de Deus no século XIX e ainda hoje, ela evidencia e avalia as diversas modificações e metamorfoses por que o conceito e a visão de Deus passou, constantemente se reinventando e adaptando a necessidades históricas bem mais mundanas do que alguns esperariam; como ela própria diz freqüentemente, uma idéia religiosa, para ter sucesso, precisa, antes de mais nada, funcionar para seus devotos em um determinado momento. E ainda que a sua própria visão da religiosidade fique bastante clara já na introdução da obra, em que relata as razões e o desencanto que a levaram a abandonar o convento onde estudava para se tornar freira, ela em momento algum chega a desprezar a visão religiosa – ao contrário, entendendo e tentando deixar claro que não se trata tanto de um capricho, mas sim de uma necessidade básica do homem, respeita esse culto ao espírito presente nas religiões corretamente concebidas, ainda que não deixe de criticá-las quando lhe parecem não cumprir adequadamente estas necessidades.

Enfim, a obra de Armstrong (e não só este livro), como a de Campbell, é fundamental para qualquer um que queira entender a lógica e o funcionamento do pensamento religioso, sem necessariamente desmerecê-lo. No fim, o grande questionamento que fica não é tanto se há um papel para a religião e a religiosidade no mundo moderno, mas sim que formas ela pode assumir para cumprir o seu papel social e, principalmente, psicológico no homem moderno, sem entrar em conflito com um pensamento científico que, por mais lógico, racional e irrefutável que pareça a muita gente, não consegue satisfazer plenamente a estas necessidades.


Sob um céu de blues...

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