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The Last Blade 2

last bladeEntão havia uma empresa de jogos chamada SNK. Lá nos idos da década de 1990, na era de ouro dos arcades e fliperamas, pode-se dizer que era uma empresa grande. Entre um punhado de séries clássicas de outros gêneros (em especial os tiroteios caóticos de Metal Slug), era conhecida mesmo pelas máquinas de jogos de luta: The King of Fighters, Fatal Fury, Samurai Shodown; junto com a Capcom (com Street Fighter) e Midway (Mortal Kombat), formava talvez a grande trindade de empresas que criavam os jogos mais conhecidos do gênero. Recentemente, no entanto, a empresa tem definhado, passando pela mão de vários donos e empresas diferentes, enquanto suas séries outrora clássicas são esquecidas pelos jogadores mais novos.

The Last Blade nunca foi exatamente a série mais conhecida da empresa, mas, por uma série de qualidades únicas, pode ser considerado um clássico cult, com um séquito de fãs bastante ardorosos, inclusive este que vos escreve. E é claro que, assim que foi anunciado que The Last Blade 2 estaria recebendo uma conversão para consoles de última geração, corri rapidamente para comprá-lo nas lojas online.

Um ponto em que a SNK sempre deu um banho criativo nas concorrentes é no roteiro e personagens, que frequentemente fogem de estereótipos e clichês nas suas motivações – você sabe, “quero ser o mais forte!” – para se inspirar com alguma profundidade na mitologia e história japonesas. The Last Blade não é exceção: a história se passa durante o bakumatsu, o período final do xogunato Tokugawa antes do início da era Meiji, marcado por uma sangrenta guerra civil; e muitos personagens são mesmo inspirados em figuras históricas, como os líderes do Shinsengumi, uma unidade policial que serviu o xogum nos últimos anos do período, ou o heroi folclórico chinês Wong Fei Hung. Leitores de Rurouni Kenshin / Samurai X provavelmente se sentirão em casa: há uma inspiração confessa da série, cujo autor também era um fã assumido de Samurai Shodown, a série anterior de jogos de lutas com espadas da empresa.

Temos, assim, um conto complexo que envolve vingança, busca pessoal e poderes ancestrais (inclusive uma transformação em super saiyaj… Digo, despertando o poder ancestral do Seiryu, o dragão azul do oriente), que poderia estar sem muita dificuldade em um filme ou anime de fantasia cult. É claro, a narrativa de um jogo de luta para fliperamas da época não podia ser muito envolvente, com diálogos propriamente restritos apenas à introdução das últimas batalhas e a cena final de cada personagem; mas o jogo possui outras formas de imergi-lo, como nos cenários extremamente evocativos. O meu preferido provavelmente seja o de um cemitério abandonado, com grama alta balançando ao vento junto a ruínas de um mausoléu de madeira; você se sente em um verdadeiro chanbara (ou filme de samurai) para os cinemas, realizando um duelo de espadas sob o luar. Outros cenários envolvem campos de batalha abandonados, feiras populares na cidade e casas em chamas, e são também bem mais vivos e evocativos do que o padrão de arenas e lutas de rua que fizeram o gênero.

Eu também não poderia tecer elogios suficientes à trilha sonora. Saindo de influências de pop e rock que são comuns em jogos de luta, há algo aqui de música tradicional japonesa, embora adaptada para os sons eletrônicos de uma máquina de fliperama. As melodias são marcantes, e, enquanto não deixam de instá-lo ao combate, tem um ar muito mais melancólico do que, digamos, o tema do Guile ou Ryu de Street Fighter. O resultado é uma trilha bastante imersiva, que não faria feio em uma produção cinematográfica, e constantemente me pego cantarolando trechos e com vontade de ouvi-la em playlists do YouTube.

Tudo isso se completa, é claro, com uma jogabilidade muito bem executada e bastante complexa, como era comum nos jogos da SNK. No entanto, quase vinte anos depois do original, é difícil não achá-la um pouco datada – os controles não respondem tão bem, e os personagens se movem um pouco devagar comparado a jogos mais recentes. Mas ela ainda funciona bem nos seus próprios termos, com duas opções de estilo para cada personagem – uma focada na força de ataques especiais e outra na velocidade, permitindo combinações únicas de golpes; uma terceira opção, secreta, permite combinar os melhores pontos de ambas -, e um foco nas viradas heroicas nos últimos instantes, graças à liberação de ataques especiais extremamente poderosos apenas quando o personagem já perdeu quase toda a sua barra de energia.

A conversão para os novos consoles ficou eficiente, mas longe de ser a melhor possível. O jogo foi convertido diretamente do arcade, e não das versões para consoles; isso significa que possui basicamente a parte de lutas mesmo, sem os extras que haviam no Dreamcast e NeoGeo. Mas foi incluída uma galeria de artes destraváveis, bem como dos troféus adquiridos no jogo (que na verdade são bem poucos, basicamente um ao terminar o modo de história de cada personagem, e mais alguns extras), que devem dar algum senso de objetivo para os jogadores solitários. Também é interessante que há a opção de cross-buy para o PS4 e o PSVita – ou seja, você compra o jogo apenas uma vez, e o recebe para ambos os consoles -, e você até mesmo divide os saves entre eles, continuando em um o jogo que começou no outro; ele chega mesmo a ficar melhor no Vita, pois a tela menor diminui a pixelização dos gráficos em baixa resolução (apesar de que os botões pequenos dificultam os combos). A grande adição, no entanto, é certamente o modo de jogo online, completo com ranking de vitórias e pontuação do modo história.

A emulação, por outro lado, possui um bocado de problemas, como quedas de framerate frequentes quando há um excesso de animações especiais na tela. Além disso, simplesmente não fui capaz de conseguir ainda uma conexão decente de jogo, sempre tendo que me virar com lags safados nos combates online. Mas não sei até que ponto isso foi apenas falta de sorte mesmo. E não se engane muito com as opções de idiomas das legendas (inclusive português): a tradução dos diálogos é bizarra, provavelmente feita com softwares automáticos.

A verdade é que no fim das contas The Last Blade 2 acaba valendo mais pela curiosidade e/ou nostalgia. Fãs do jogo original, entre os quais eu me incluo, certamente devem gostar, mas deve ser necessário mesmo algum saudosismo e gosto pela estética retrô pixelada para isso. A jogabilidade bem desenvolvida e os personagens carismáticos são um atrativo adicional, mas não é o lançamento que vai fazer você abandonar o seu Street Fighter V, no fim das contas. O que sobra mesmo é aquela ponta de esperança, uma vez que a SNK, agora propriedade de uma companhia chinesa, parece estar buscando reencontrar o espaço de mercado há algum tempo perdido. Um novo The King of Fighters deve ser lançado ainda esse ano (embora deva admitir que os vídeos que vi não me deixaram muito animados); quem sabe esse relançamento não seja também uma experiência para ver a possibilidade de aceitação do retorno de outras franquias?

Bem, sempre podemos sonhar.

Oreshika: Tainted Bloodlines

oreshika-tainted-bloodlinesAcho que não tem gênero de jogos eletrônicos que eu tenha jogado mais do que os RPGs japoneses com combates por turnos (jogos de luta talvez cheguem perto). A partir principalmente do primeiro Playstation (não era exatamente fã do gênero durante os 16 bits, embora tenha corrido atrás do prejuízo posteriormente com ajuda de emuladores), acho que joguei todos os principais lançamentos, e um bocado de jogos alternativos também – Persona, Suikoden, Legend of Legaia, Grandia, Xenogears, mais Final Fantasies do que consigo lembrar… Quando vejo alguns jogos modernos, como Dragon Age ou The Witcher, por mais que saiba reconhecer suas qualidades e também me divirta um bocado com eles, não consigo evitar um certo olhar saudoso pra esse passado, e ansiar por uma experiência mais próxima daquela que eles me proporcionavam. E uma das razões que acabaram me convencendo a adquirir um Playstation Vita foi justamente a possibilidade de voltar a encontrar jogos assim, já que aparentemente é nos portáteis o seu último foco de resistência, sem contar a possibilidade de reviver clássicos antigos através da Playstation Store.

Oreshika: Tainted Bloodlines é o primeiro desses jogos que realmente me fez pensar que valeu a pena ter adquirido o console. É um RPG por turnos que honra a  longa tradição que o precede, mas também adiciona um bocado de reviravoltas e novidades, fugindo das fórmulas prontas que assombram as grandes franquias do gênero. Tudo isso fechado com uma apresentação impecável, com gráficos e música lindos remetendo à arte tradicional japonesa, e o provável maior banho interativo de cultura oriental desde Okami.

O jogo conta a história de um determinado clã de samurai no Japão da era Heian, cujo nome e características gerais você pode determinar ao começar a partida. Encarregado de cuidar de cinco relíquias sagradas, ele caiu em desgraça devido a maquinações de um feiticeiro onmyoji chamado Abe no Seimei, que roubou e escondeu os artefatos. Para aplacar a ira dos deuses, o Imperador determinou que todos os membros do clã fossem mortos; os próprios deuses, no entanto, se apiedaram de um destino tão cruel, e os trouxeram de volta à vida para que pudessem limpar o seu nome e buscar vingança contra aquele que o desgraçou em primeiro lugar.

A ressurreição, no entanto, não foi sem contratempos. Antes de serem executados, Seimei lançou sobre o clã duas maldições. A primeira reduz o tempo de vida dos seus membros, que atinge seu limite por volta dos dois anos; e a segunda impede que eles se reproduzam com qualquer um exceto os próprios deuses e outros membros de clãs amaldiçoados. Mais uma vez, assim, foi necessário uma intervenção divina: os deuses se colocaram à disposição para uniões matrimoniais, garantindo que a linhagem do clã se mantivesse e dando a eles habilidades únicas, entre elas a de um amadurecimento acelerado para que os dois anos de vida de cada geração sejam aproveitados o máximo possível.

Temos aí então o mote principal do jogo: o de ser, antes de um simples RPG, um simulador de clã. O protagonista não é um único personagem, mas sim uma linhagem inteira deles, conforme aqueles com quem você começou são substituídos por seus filhos, netos, bisnetos e além. Cada geração aumenta a força da anterior, na medida em que todos vão acumulando experiência, habilidades especiais e se casando com deuses cada vez mais poderosos. Além disso, para além de explorar dungeons e vencer demônios, você também deve administrar e governar a sua província, investindo o dinheiro conquistado nas aventuras em áreas estratégicas como produção de armas e armaduras, itens de cura ou mesmo no entretenimento e devoção religiosa – o resultado final acaba lembrando bastante o RPG “de mesa” Blood & Honor, só adicionado de elementos fantásticos (o que talvez o aproxime mais de um Tenra Bansho Zero, na verdade).

O jogo em si é dividido em uma série de rodadas, cada uma com duração de um mês, em que você deve administrar os afazeres do clã, cuidar de eventuais casamentos e funerais, bem como decidir os investimentos para melhorar os serviços da província. Se parece coisa demais, não se preocupe: você conta com o auxílio de Kochin, uma menina-doninha que faz as vezes de garota-bichinho-fofinha-de-anime da vez, e, contrário a tantos outros ajudantes de games por aí, de fato dá bons conselhos e sugestões sobre o que fazer a seguir. Por fim, uma vez por mês, você pode sair para explorar uma dungeon nas suas terras ou nas de outros clãs, e reunir o dinheiro e experiência necessários para cumprir seus objetivos.

Aqui temos o componente online do jogo. Esses “outros clãs” pertencem, em sua maioria, a outros jogadores conectados, cujas terras você pode visitar para comprar itens, contratar mercenários, arranjar casamentos ou mesmo participar de torneios pelo brasão do clã. Ao começar uma partida o seu clã é colocado em um determinado ponto do mapa, com duas dungeons aleatórias próximas (e uma terceira após você atingir um determinado ponto da história); para visitar as demais, assim, você deve visitar estas outras províncias, estabelecendo toda uma rede própria de ligações e alianças.

As dungeons são talvez o ponto que pudesse ter maior variação. Existem nove modelos básicos, além de outras duas que você libera com o desenrolar da trama, embora seus mapas exatos possam ser diferentes em cada província. Você pode explorá-las enfrentando seus demônios e recolhendo seus tesouros, mas o tempo para fazê-lo é limitado; uma vez que acabe, você tem a opção de continuar nela por mais um mês ou retornar para casa. O tempo exato que você possui não é fixo: você possui quatro classificações de dificuldade, da mais baixa em que você recebe o dobro de experiência e dinheiro mas possui menos tempo, até a mais alta em que a experiência dinheiro recebidas são menores, mas há mais tempo para exploração; e é possível alternar livremente entre elas, para quando você quiser passar mais rápido por uma rodada ou ter mais tempo para recolher tesouros ou encontrar a entrada para o Festival de Todos os Demônios que avança a história. De modo geral, no entanto, como você as estará visitando com muita freqüência, é possível que acabe enjoando de algumas delas com certa rapidez.

Durante a exploração as batalhas não são aleatórias – ou seja, você vê os inimigos na tela, e pode até mesmo emboscá-los para obter uma vantagem na primeira rodada. O sistema de combates segue o modelo de turnos de forma bem clássica, em que cada personagem tem a sua vez determinada pelo seu atributo de agilidade, e então você deve escolher entre uma ação ou habilidade especial a partir de uma série de menus. No entanto, há uma boa dose de pequenos detalhes que dão maior profundidade e permitem diversas variações estratégicas. Cada lado da batalha, por exemplo, possui duas linhas de combatentes, uma dianteira e uma traseira; as suas opções de ações são determinadas pela sua posição nelas, além da sua classe – um espadachim, por exemplo, só pode atacar inimigos na linha de frente, enquanto um arqueiro ou carabineiro pode atacar inimigos em qualquer posição. Outras classes são capazes de atacar ao mesmo tempo todos os inimigos em uma determinada linha, ou possuem ataques diferentes contra inimigos na linha de frente ou de trás. As magias também podem ter efeito sobre um único inimigo, uma linha de inimigos ou todos eles, e você pode ainda reunir vários personagens para lançar uma magia em conjunto, multiplicando o seu poder.

Há muitos outros elementos diferentes no jogo, cada um com mecânicas próprias e características únicas, e de maneira geral você continuará liberando novas habilidades e lendo novos tutoriais de como usá-las já várias horas adentro da história. Há uma determinada personagem que entra para o clã após a trama avançar um pouco, com uma classe e habilidades especiais únicas (e voz da Megumi Hayashibara, o que é quase uma habilidade especial à parte – aliás, é um belo ponto para a caracterização e imersão a opção por manter o som original em japonês, localizando apenas os textos); outra classe especial com características únicas você libera para os personagens já quase no final. De maneira geral, sempre que você acha que já viu e entendeu tudo o que há para fazer, o jogo vai lá e te mostra que há ainda mais.

De todas as mecânicas apresentadas, no entanto, certamente as mais imersivas e profundas são aquelas que dizem respeito à linhagem e a passagem das gerações do clã. Como já foi comentado, o mote principal da história é que você faz parte de um clã amaldiçoado, em que os membros, apesar de amadurecerem muito mais rápido, só podem viver por cerca de dois anos; esse é o período que eles possuem para desenvolver suas habilidades e gerar e treinar descendentes que darão continuidade à sua missão. Cada nova geração deve ser mais forte que a anterior, uma vez que os próprios demônios que enfrentam também estão se fortalecendo, e o jogo oferece uma série de formas de garantir isso.

Um exemplo é a produção de armas e armaduras ancestrais. Conforme você investe dinheiro na produção de armas e armaduras na sua província, poderá convidar para viver nela artesãos especializados que podem produzir itens exclusivos para determinados personagens. Estes itens inicialmente serão fracos, mas seu poder aumenta conforme o personagem escolhido avança de nível – e, quando morrer, ele pode passá-los como herança para outro personagem da mesma classe, com o qual ele continuará a evoluir e ganhar novos poderes. Assim, bastarão algumas gerações para que se tornem extremamente poderosos. As técnicas secretas de cada classe, que um personagem pode começar a desenvolver após ganhar alguns níveis, também seguem uma mecânica parecida, com a diferença de que, além da limitação da classe, elas também devem ser passadas diretamente de um pai para um filho ou serão perdidas.

No geral, tudo no jogo favorece que você crie certas tradições para o seu clã, criando itens e determinando braços familiares exclusivos para cada classe. Por vezes ele é quase um estudo social sobre o tema, e o resultado é incrivelmente imersivo e divertido. Até na aparência dos personagens há toda uma série de pequenos detalhes, com certas características físicas que são passadas para as gerações seguintes – casar-se com um deus com orelhas de raposa, por exemplo, pode fazer com que seus filhos ou netos desenvolvam uma característica parecida; ou então, às vezes, uma característica como cor dos olhos ou estilo de cabelo que parecia ter desaparecido reaparece duas ou três gerações depois apenas para surpreendê-lo. Some a isso ainda a possibilidade de usar a câmera do Vita para criar um personagem baseado na sua própria aparência, ou ainda a de criar um código QR para determinados personagens que você queira compartilhar com amigos e conhecidos; e mesmo as dungeons são repletas de “locais famosos” onde você pode parar e tirar uma foto de família para compartilhar nas redes sociais, quase como se fosse uma viagem de férias.

Com isso, mesmo que sejam tantos e criados pelo próprio jogador, cada personagem acaba adquirindo uma personalidade bastante única. Isso é refletido no próprio jogo – há uma classificação de personalidades de acordo com os elementos que influenciam as suas sugestões de ações em combate e a sua lealdade ao clã quando ficam muito tempo sem participar da ação. Um personagem de fogo, por exemplo, é mais agressivo e ativo, mas também volátil; enquanto um personagem com personalidade de terra é mais rígido e defensivo, mas também mais leal. Com o tempo você aprende a se importar com cada um individualmente, e realmente sente quando a sua morte se aproxima. Há um funeral tocante em que os seus feitos são lembrados mês a mês, e um pequeno conjunto de palavras finais repletas de emoção e sentimento. E mesmo depois de morto ele ainda pode se fazer presente, seja concedendo um bônus eventual através das armas ancestrais que deixou como herança, seja até, em alguns casos, tornando-se uma nova divindade que pode ser escolhida para casamentos no futuro.

Tudo se completa com a apresentação linda, tanto nos gráficos misturando anime com arte tradicional japonesa, até na própria música também de inspiração tradicional, que colabora muito para criar o clima e dar o tom da história. Para quem gosta de cultura e história japonesas, praticamente cada elemento do jogo possui algum atrativo próprio, colaborando com a caracterização de uma era Heian (que não costuma ser a mais conhecida e celebrada no ocidente) colorida e vibrante, repleta de magia e fantasia, e em que até os demônios têm festivais próprios animados e calorosos.

Enfim, gostei muito de Oreshika: Tainted Bloodlines. É uma experiência imersiva e envolvente como há tempos eu não tinha, daquelas que te faz ficar acordado por vários fins de semana apenas para fazer o seu clã chegar no estágio seguinte. Jogo obrigatório para quem possui um Playstation Vita, gosta de RPGs tradicionais por turnos, e/ou simplesmente se interessa pela cultura e história japonesas de maneira geral.

Jazz After Midnight

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Desde quando sou capaz de me lembrar, sempre fui apaixonado pelo Japão e a cultura japonesa. Amo sushi e saquê. Escrevo haicais eventualmente. Adoro assistir vídeos e competições de artes marciais, e até aprendi as regras básicas do beisebol. O Japão domina mesmo resto dos meus gostos pessoais, desde a música da Carmen Maki e Yoko Kano até os livros do Yasunori Kawabata e Haruki Murakami, e mesmo, vá lá, do Kazuo Ishiguro, ainda que ele seja mais inglês do que japonês. Talvez a principal exceção nesse quesito seja o jazz, que aprendi a apreciar e a amar depois adulto, mas mesmo ele provavelmente se deva muito mais à curiosidade despertada após vê-lo descrito com tanta paixão nas histórias de Murakami-sama. Acho que foram os anos assistindo desenhos animados e lendo histórias em quadrinhos, ou talvez as horas perdidas nos videogames vindos de lá, não sei. Não sou descendente de imigrantes nem tive amigos que fossem na minha infância e adolescência. Como não achar que há algo do Jaspion e dos Cavaleiros do Zodíaco aí no meio?

Por isso, desde que me tornei independente e com uma fonte de renda que me permitisse alguns luxos, transformei em um ritual pessoal viajar até o país pelo menos uma vez por ano ou a cada dois anos. Começou, é claro, como simples turismo: após algum tempo economizando, juntei dinheiro para passar cerca de uma semana em Tóquio durante um período de férias. Conheci os principais pontos da cidade – a Torre de Tóquio, o Palácio Imperial, o Templo Meiji, além, é claro, de Akibahara -, mas não me senti satisfeito. Dois anos depois estava de volta, e desde então, sempre que possível, ou quando o stress por aqui ficava insuportável, eu comprava uma passagem aérea e ia passar alguns dias do outro lado do planeta.

É claro, uma cidade só tem tanto de novidades a oferecer a um visitante tão frequente. Mesmo um país, na verdade, ainda mais um de dimensões tão reduzidas. Mas não me interessava conhecer outros lugares; nunca fui um entusiasta do turismo pelo turismo, de gastar horas sem fim em aeroportos apenas para conhecer culturas exóticas e locais exuberantes. Só o Japão me interessava. Era algo no ar, ou nas pessoas, ou talvez no chão mesmo, que me despertava a vontade de voltar e voltar e voltar ainda outra vez.

Não foi o fato de ter conhecido todos os principais pontos turísticos do país, assim, que me fez parar de visitá-lo. Bem pelo contrário, na verdade: conhecê-lo tão bem reforçava a minha vontade de voltar, de revê-lo e senti-lo novamente. Se não haviam mais lugares a visitar, ainda havia a simples vida das ruas, a energia que emanava dos transeuntes e dos prédios e dos ideogramas luminosos nas placas de lojas e restaurantes.

Gostava de sair dos hotéis onde me hospedava sem um rumo definido e apenas vagar aleatoriamente pelas redondezas. Não me preocupava sequer em marcar o caminho que fazia, apenas dobrando aleatoriamente em ruas, dando voltas e voltas ao redor dos quarteirões. Outras vezes perseguia pessoas aleatórias, apenas para ver onde elas me levavam. Quando decidia retornar, bastava chamar um táxi e dar o endereço e pontos de referência – o idioma, depois de tanto tempo, certamente já não era mais problema. Aos poucos comecei também a aumentar o perímetro destas minhas andanças, me afastando cada vez mais do meu ponto de origem.

O resultado desta brincadeira foi que todo um Japão diferente começou a se revelar para mim. Ruas estreitas, prédios sujos, lojinhas de esquina; ao que parece, mesmo um país de primeiro mundo possui o seu lado pobre e sombrio, que não é exposto em guias de viagens. Se havia um pouco de medo em andar por lugares assim, também havia uma emoção particular em desbravá-los e descobrir um país que se ocultava aos demais visitantes.

Certa vez, comecei a perseguir uma moça que andava pelo centro de Tóquio. Ela se destacava com facilidade na multidão por ser mais alta que as mulheres ao redor, vestindo algo como uma versão moderna de um quimono da época dos xogunatos; por mais que não destoasse das vestimentas modernas que a rodeavam, evocava também uma certa aura de magia e mistério, como um brilho místico que emanava das suas estampas de flores e dragões. Seus cabelos eram longos e escuros como a noite, e terminavam próximos aos quadris modelados pelo vestido, balançando como um pêndulo de hipnotismo.

Ela passou por mim e eu fui fisgado por esse balanço, puxado como um peixe em um anzol através de ruas e avenidas. Mais do que na sua atração sobre mim, havia algo de mágico no seu próprio caminhar: os sinais estavam sempre verdes, ou, quando não estavam, eram as ruas que estavam vazias, e as pessoas desviavam do seu caminho antes que ela precisasse fazê-lo. Nada parecia capaz de interrompê-la. Eu, por outro lado, não tinha tanta sorte: esbarrava em transeuntes, e quase fui atropelado ao menos três vezes. Mesmo assim, não conseguia perdê-la de vista. Se era forçado a desviar o olhar por algum motivo, ela sempre estava lá quando retornava-o na sua direção.

Quando dei por mim estava em uma parte desconhecida da cidade, em uma rua da qual nunca ouvira falar, em um bairro que não me parecia de qualquer forma familiar. O local era mal-iluminado – sequer havia percebido que já era noite -, e parecia haver poeira por todos os cantos. Na minha frente estava um par de portas deslizantes tradicionais de bambu e papel de arroz, sob um grande letreiro luminoso com os ideogramas 河童バー. Kappa Bar. Sem parecer ter outra opção, entrei.

O lado de dentro era melhor iluminado e preenchido por diversas mesas redondas ocupadas pelos clientes, com eventuais vasos de plantas para completar a decoração. Eu era o único gaijin, aparentemente. Em um palco pequeno na outra extremidade um quarteto de saxofone, contrabaixo, piano e bateria tocava standards de jazz; Take the A Train estava terminando quando eu entrei, e logo já começavam St. James Infirmary.

Com alguma relutância, escolhi uma mesa vazia e me sentei. Pedi um drinque com saquê e uma porção de tempura a um garçom tão pequeno que parecia ser mesmo uma criança. Em seguida, comecei a olhar ao meu redor em busca de sinais da mulher que me trouxe até aqui. Não a encontrei em nenhuma mesa.

Decidi relaxar e apenas aproveitar o ambiente. A banda era bastante boa, assim como a comida. Quando reconheci as primeiras notas de Round Midnight, chequei meu relógio: além de bons, eram também pontuais. Acompanhei a execução da música, uma das minhas favoritas, balançando a cabeça e batendo os pés no chão no ritmo dos acordes. Chamei o garçom e pedi outra bebida. Por um instante achei estar sendo observado, mas, ao virar o rosto, tudo o que vi foi a parede de bambu e papel que estava ao lado da minha mesa.

A música seguinte foi Sophisticated Lady. Não havia como esquecê-la: além de tocada com uma maestria incomum, como se o próprio Duke Ellington tivesse descido dos céus para regê-la, bastou os primeiros acordes ressoarem pelo salão para que uma salva de palmas se espalhasse por todas as mesas. Uma mulher caminhava por entre elas em direção ao palco, então subiu e posicionou-se à frente da banda. Sim, era ela: a mesma que havia me hipnotizado na rua e trazido até o bar. Pude reparar com mais atenção as suas feições agora que a via de frente, a pele pálida como arroz, os traços delicados como se pincelados com nanquim. Seu rosto arredondado era modelado com um queixo fino, dando por vezes, se olhado por um ângulo específico, uma impressão de profundidade, como se eu estivesse olhando para o focinho de uma raposa.

Ela acompanhou em silêncio o fim da música, apenas balançando o corpo suavemente no seu ritmo, e então aproximou os lábios do microfone à sua frente, tocando-o com delicadeza. Quando a voz saiu, tinha a potência de uma onda quebrando na costa, uma força da natureza que invadia o mundo dos mortais.

Once I lived the life of a millionaire…

Foi um choque: a sua aparência frágil em nada sugeria o vigor bruto que eu sentia ao ouvi-la. A força da sua voz me fazia até mesmo ignorar a sua beleza; eu fechava os olhos e me imaginava ouvindo a própria Bessie Smith ressucitada. Pela segunda vez me sentia hipnotizado, agora pela audição.

O set vocal foi pequeno, com apenas três músicas. Ao fim delas, acompanhada pelos olhares de todos os presentes, ela desceu do palco e voltou a caminhar pelo salão. Senti um calafrio percorrer a minha espinha: ela mantinha os olhos fixos nos meus, vindo devagar em direção à minha mesa.

Sentou-se ao meu lado sem pedir permissão, e sem que precisasse pedir um garçom colocou um drinque à sua frente. A banda voltara a tocar, alguma faixa do Kind of Blue do Miles Davis. Um turbilhão de coisas passava pela minha mente: lembrava da perseguição no centro, os seus quadris balançando, a entrada no bar, os olhos dos outros clientes virando-se na minha direção. Senti meu rosto enrubescer, sem saber o que ela diria a respeito. Quando falou alguma coisa, no entanto, parecia estar alheia a tudo isso.

– Gostou da apresentação?

Demorei alguns segundos para responder, o que não pareceu surpreendê-la. Balbuciei que sim com alguma dificuldade. Ela então tomou um gole da sua bebida e seguiu falando sobre a qualidade dos músicos, a acústica do salão, a execução de standards famosos. Eu balançava a cabeça eventualmente, e de vez em quando dava alguma resposta monossilábica apenas para continuar a conversa.

Não sei exatamente quando percebi que havia alguma coisa… Diferente naquele bar. Em algum momento, entre um comentário sobre a vida pessoal de Charlie Parker e um sobre os improvisos dissonantes do Thelonious Monk, eu me virei rapidamente para o palco e percebi que não haviam músicos sobre ele. Mas a música continuava a ser tocada – os instrumentos simplesmente o faziam sozinhos! O saxofone flutuava enquanto cantava as suas notas, e o contrabaixo vibrava as suas cordas sem que ninguém as tocasse. As teclas do piano se moviam sozinhas, da mesma forma que os pratos e tambores da bateria.

Olhei para o meu copo, me perguntando o quanto já havia bebido, mas a verdade é que não me sentia embriagado. Aos poucos, comecei a perceber os tipos que ocupavam as mesas ao meu redor: logo ao meu lado uma moça com duas bocas, uma delas no lado de trás da cabeça, no meio dos seus cabelos, devorava um combinado de sushi e sashimi; um grande pescoço se contorcia por trás dos clientes, terminando em uma cabeça que roubava batatas fritas de uma mesa vários metros distantes de onde estava o corpo da sua dona; um menino de um olho só molhava os lábios com um língua enorme, enquanto olhava com um sorriso assustador para um prato de torta de chocolate na sua frente.

Olhei para os vasos que decoravam o ambiente, e percebi que as plantas tinham frutos que pareciam cabeças humanas. Os quadrados de papel nas paredes de bambu tinham olhos que observavam tudo o que acontecia no salão. Em algum momento eu me desculpei com a minha acompanhante e disse que precisava ir ao banheiro; chegando lá, no entanto, dei de cara com um menino assustador de pele vermelha e apenas um dedo em cada pé. Dei meia-volta e resolvi voltar para minha mesa, mas no caminho acabei pisando sem querer em uma das caudas de um gato que se apoiava sobre duas patas em frente ao balcão do bar. Ele soltou um grito e eu tentei me desculpar, mas antes que percebesse já estava recebendo uma chuva de tapas das suas patas dianteiras.

Quando retornei encontrei a cantora conversando com o garçom, que só então reparei ter pele esverdeada e escamosa, com uma espécie de casco sobre as costas e um rosto alongado e reptiliano. Ela me disse que a conta estava paga e um táxi nos esperava do lado de fora. Consenti, e não questionei quando ela entrou comigo no carro e me acompanhou até o hotel.

Logo que entramos no meu quarto ela me jogou sobre a cama e começou a se despir. Não sei se era a minha imaginação ainda em choque pregando peças, mas na sua silhueta na escuridão eu podia jurar ver um par de caudas sendo soltas quando ela se desfez das peças inferiores. Só sei que ela veio por cima de mim e começou a morder o meu ombro suavemente com seus dentes afiados. Pouco depois eu me virei e fiquei sobre ela, deixando-a me abraçar e arranhar com unhas que pareciam garras. Seus gemidos soavam de alguma forma como uivos para o luar.

Acordei na manhã seguinte me sentindo cansado e fraco. Não havia qualquer sinal dela pelo quarto, exceto por uma profusão de pelos finos sobre a cama. Ao checar no espelho, ainda podia ver as marcas de onde ela me arranhara e mordera na noite anterior.

Gastei o resto da viagem procurando aquele bar. Tentei refazer meus passos, lembrar de pontos de referência, até perguntar para nativos se o conheciam, mas nenhum jamais ouvira falar dele. Outras vezes apenas caminhava sem rumo pelo centro de Tóquio, esperando que a mesma mágica que me fez encontrá-la daquela vez acontecesse novamente.

Voltei para casa. Retomei minha rotina. Isso foi há… Dois anos? Três? Por algum motivo, no entanto, não tive coragem de retornar ao Japão desde então. Mais de uma vez busquei uma passagem na internet, mas sempre no último instante algo me fazia fechar o navegador sem completar a compra. Era como se tivesse perdido algo naquele dia – algo que, mais do que me fazer falta e motivasse a minha busca, na verdade me enchia de medo de ser recuperado.

Samurai X

Samurai-XO Japão tem uma filosofia curiosa de adaptações cinematográficas. No ocidente (ou, mais especificamente, Estados Unidos), um anúncio desses é um desespero para os fãs, sempre temerosos de quais mudanças o seu precioso material original sofrerá pelas exigências do estúdio, do público-alvo, e daí por diante; lá, ao contrário, me parece que esse tipo de temor é quase inexistente, ou no mínimo infundado. O objetivo parece ser muito mais o de fazer uma orgia de cosplayers, mantendo toda a identidade visual original quase que nos mínimos detalhes, e a maior parte da história, personagens e tramas também.

A adaptação da série de mangá e anime Samurai X segue muito bem essa tendência, caprichando na caracterização, figurino e no roteiro para que tudo o que for possível se mantenha fiel ao clássico de Nobuhiro Watsuki. Conhecemos nele a história de Kenshin Himura, um espadachim andarilho, sobrevivente das guerras da Restauração Meiji no Japão, mas que após o seu fim prometeu nunca mais matar um ser humano. Anos depois, quando um assassino começa a usar o seu antigo nome para cometer crimes, ele precisa confrontar novamente os fantasmas que deixou para trás.

Há desvios da trama original, claro, mas são na maioria das vezes inevitáveis – alguns pequenos ajustes na história, misturando alguns dos arcos iniciais, simplificando a introdução do Yahiko, colocando o vilão Jin-E no comando do grupo Oniwabanshuu, ao invés do anti-heroi Aoshi (que deve aparecer apenas na sequência), e coisas assim, eram necessários para dar coesão ao formato de um filme com seu par de horas de duração. De maneira geral, no entanto, são coisas pequenas, e que se encaixam bem com a trama geral.

O resultado é que o filme é muito mais uma festa para os fãs do que um blockbuster hollywoodiano. A série original sempre foi muito elogiada pelo pano de fundo histórico aprofundado, o que talvez tivesse algum apelo para fãs de um cinema mais tradicional, mas isso é perdido na estilização dos combates e personagens. E se eu acho isso ruim? Nem de longe! O que se perde, talvez, em realismo e verossimilhança, se ganha em combates impecavelmente dirigidos, que remetem aos quadrinhos e ao desenho animado sem perderem em emoção na sua versão de carne e osso. O único ponto negativo mesmo dessa estilização está na interpretação excessivamente caricata e afetada de alguns vilões, como o empresário Kanryu Takeda, mas é algo fácil de ignorar no fim das contas.

A edição nacional em DVD e blu-ray também tem alguns mimos muito legais para os fãs de longa data. A capa, por exemplo, possui dois lados – é vendida nas lojas com o título ocidental, mas possui no lado de dentro o nome original, Rurouni Kenshin (“Kenshin, o Andarilho,” lembrando que o personagem não é um samurai verdadeiro), bastando invertê-la se você preferir assim. E uma das opções de áudio é uma dublagem especial em português feita com os mesmos dubladores que fizeram a série quando ela foi exibida por aqui pela primeira vez. No entanto, há um problema sério no som também e na sincronização das legendas, deixando os consumidores até o momento na espera de um recall.

Em todo caso, é um filme muito legal sim, para os fãs da série original ou que gostem de filmes de ação e artes marciais. Apenas não esperem algum tipo de drama histórico do Akira Kurosawa, o que nem sequer é a proposta da produção.

The Grass-Cutting Sword

cover-myths-of-origin1Já falei da relação da autora Catherynne M. Valente com o Japão em outro momento, e não vou me repetir. Para além dela, no entanto, Valente também é conhecida por cunhar o nome do subgênero literário mythpunk – você sabe, essa mania de adicionar o sufixo punk após qualquer palavra e chamar de subgênero (aguardem o meu revolucionário universo punkpunk pra qualquer dia desses). Embora originalmente tenha sido um termo meio irônico, ela própria parece tê-lo abraçado eventualmente, e muitos dos seus trabalhos de fato usam os preceitos que ela indicou, misturando mitos e fábulas tradicionais de diversas culturas com reinvenções temáticas e estruturas narrativas pós-modernas.

A novela The Grass-Cutting Sword está exatamente na intersecção destes dois elementos. Trata-se de uma reinvenção dos mitos formadores do Japão antigo, contando a história do deus Susano-O-no-Mikoto, a sua expulsão do paraíso pela sua irmã Amaterasu-Oho-Kami, e o seu embate com a serpente de oito cabeças Yamata-no-Orochi, do corpo da qual tirou a espada cortadora de gama do título (Kusanagi-no-Tsurugi, em japonês), até hoje uma das relíquias imperiais da família real japonesa. O mito original é contado nos livros Kojiki e Nihongi, os mais antigos da literatura japonesa; Valente, no entanto, os recriou com técnicas literárias modernas, preenchendo algumas lacunas mas sendo de maneira geral bastante fiel aos originais.

A história de fato começa com a chegada de Susano-O à terra, mas não demora em fazer um recuo no tempo para recontar o próprio mito de criação do mundo japonês, com o nascimento dos deuses Izanagi- e Izanami-no-Mikoto. Juntos eles deram à luz a todas as ilhas japonesas, além de um sem número de deuses e criaturas míticas, sendo os últimos a própria Amaterasu, deusa do sol, Susano-O, deus das tempestades, e o menos importante Tsukuyomi-no-Mikoto, deus da lua. Os mitos japoneses mais conhecidos – a morte de Izanami e a viagem de Izanagi ao mundo dos mortos para buscá-la; o encontro entre Amaterasu e Susano-O nas planícies do paraíso; a eventual desavença entre eles, levando à expulsão do segundo e a reclusão da primeira em uma caverna, trazendo a escuridão à Terra – são todos contados em detalhes na prosa poética e envolvente de Valente.

Ao mesmo tempo, no entanto, e aqui entra a principal criação literária da autora, temos em capítulos intercalados a história da própria Yamata-no-Orochi, a serpente de oito cabeças cuja origem nunca conhecemos realmente nos mitos, e as sete filhas que ela devora antes que Susano-O entre em cena para salvar a oitava. Valente descreve o livro como escrito em um “surto de raiva feminista,” ao entender o papel relegado à mulher nos mitos orientais; e isso é bastante visível nestes capítulos: cada uma das sete filhas possui muita personalidade e força, e justamente por isso são segregadas e culpadas, e por fim sempre terminam por escolher a serpente ante à própria família. Como em uma versão peculiar de A Bela e A Fera, é apenas o monstro que parece reconhecê-las, entendê-las e respeitar a sua individualidade, frente a uma família que esperam pouco mais do que moças servis que cuidem do seu marido nem-bonito-nem-feio e façam sopas de olhos de peixe saborosas.

Toda a história é contada com habilidade pela autora, poetisa de formação e que faz uso de imagens bastante vívidas na sua prosa, explorando com muita criatividade os absurdos da própria lógica mitológica – cenas como o deus Izanagi raspando a sujeira dos pés e criando uma dúzia de novas divindades no processo meio que falam por si só, acredito. Quando entram em cena as donzelas devoradas, no entanto, e os capítulos tornam-se na verdade grandes diálogos entre elas e a serpente, a narrativa fica também muito mais intensa, envolvendo e comovendo o leitor.

A edição mais recente da novela está reunida com outros dos primeiros trabalhos de Valente em uma coletânea chamada Myths of Origin. Acredito, no entanto, que seja o melhor trabalho dos quatro que fazem parte dela; os demais são ainda muito crus, tendo a influência muito forte do seu lado poetisa, com enredos e tramas por demais enigmáticos e vazios de sentido. Mas aqui já temos um bom exemplo do que ela seria capaz posteriormente como autora, e certamente é uma leitura interessante para os que gostam de mitologia oriental e histórias fantásticas em geral.

The Melancholy of Mechagirl

mechagirlQuando se pensa em um(a) ocidental escrevendo sobre o Japão, em especial sob a ótica da fantasia e da ficção científica, é difícil não pensar no otaku gordo cheirando a salgadinhos de isopor destilando conhecimentos enciclopédicos sobre samurais, ninjas e videogames (alguém tipo assim como eu, digamos?). Mas a verdade é que a ode à cultura pop é apenas uma das muitas formas pelas quais um país pode entrar na vida de alguém, ou alguém na cultura de um país. Para Catherynne M. Valente, o Japão realmente representa muito mais do que olhos grandes e cabelos coloridos; é um pedaço inteiro da sua vida que está lá, desde quando, casada ainda jovem com um oficial da marinha norte-americana, foi obrigada a se mudar para uma base militar local. Se ele aparece com tanta frequência nas suas histórias, é porque há algo lá que a marcou profundamente, e que instiga os seus demônios internos sempre que é lembrado.

The Melancholy of Mechagirl é um pequeno apanhado de histórias e alguns poemas da autora que remetem de alguma forma à terra do sol nascente. O título é emprestado do poema que abre o livro, um devaneio sobre garotas que são obrigadas a receberem conexões intrusivas em seus corpos para pilotarem robôs gigantes, mas a verdade é que serve bem demais para descrever a própria impressão que se tem sobre a relação da autora com o país. Os dois primeiros contos propriamente ditos – Ink, Water, Milk e Fifteen Panels Depicting the Sadness of The Baku and The Jotai – são praticamente irmãos gêmeos nesta temática, retratando com ares autobiográficos o cotidiano de uma jovem estrangeira em uma terra estranha, lidando com a ausência do marido e a dificuldade de adaptação. Ao mesmo tempo, objetos e símbolos que ganham vida – um tema muito comum na mitologia e fantasia de origem oriental, e por isso mesmo recorrente nas histórias do livro – criam uma metanarrativa própria, observando ou às vezes interagindo e até criando, por meio da ficção dentro da ficção, a primeira.

É importante destacar que a maioria das histórias do livro não é original, tendo aparecido antes em outras coletâneas ou em outros formatos. One Breath, One Stroke, por exemplo, eu já havia lido em The Future Is Japanese, também publicado pela editora Haikasoru; mas é uma história tão única e tocante, que conta de forma tão bem executada e poética o amor impossível entre um pincel de caligrafia e uma mulher-caracol, que valeu a pena ser relida e fruída como se fosse a primeira vez. Outras histórias, no entanto, como a do videogame fictício Killswitch, perdem algo fora do seu contexto original, e parecem mesmo fugir do tema central da coletânea (de reunir histórias da autora que remetam ao Japão), tendo pouco que a relacionem com a cultura oriental além de um ou outro nome de personagem secundário.

Mas até aí, é algo esperado, talvez – é difícil construir uma obra consistente com histórias retiradas de fontes tão diversas, e pelo menos quando está nos seus pontos altos o livro realmente vale a pena. Outras histórias que me marcaram foram Thirteen Ways of Looking at Space/Time, em que a narração de mitos de criação de culturas diversas se confundem com o nascimento de uma escritora de ficção científica; e a pequena porém notável Ghosts of Gunkanjima, sobre uma ilha na costa japonesa marcada por uma história de crueldade durante a Segunda Guerra Mundial. E, claro, há a novela que fecha o livro, Silently and Very Fast, nomeada a diversos prêmios importantes lá fora, um pequeno épico que conta a história de várias gerações de uma família ligada algo mais do que intimamente com o surgimento das primeiras inteligências artificiais.

No geral, The Melancholy of Mechagirl é uma coletânea bastante singular. Valente tem um estilo único de escrever, e, mesmo quando o livro se encontra nas suas curvas mais baixas, você terá sempre uma prosa envolvente e poética, com frases sonoras e que parecem feitas para serem recitadas, mais do que apenas lidas. Desvendar a relação da autora com o Japão e a solidão que ele representa para ela é ainda um subtexto à parte, e que te leva a parar e refletir sobre os seus próprios demônios internos.


Sob um céu de blues...

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