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Persona 5, millennials e práxis

Tem um vídeo que eu gosto bastante, em que a G. Willow Wilson, criadora e roteirista da maravilhosa HQ da Ms. Marvel, faz uma palestra no TED Talks sobre a “geração perdida” dos jovens atuais – os “millennials”. O vídeo segue abaixo, com legendas, e recomendo muito que seja visto.

A tese que ela propõe vale muito a pena ser ressaltada: a de que, antes do que uma geração perdida, o que encontramos na juventude atual é uma grande quantidade de pessoas pró-ativas, conscientes dos problemas que herdaram das gerações que os antecederam, que querem realmente fazer as coisas de forma diferente e não estão dispostos a cometer os mesmos erros apenas porque sim. Se há essa constante frequente de manchetes apocalípticas sobre eles – que, segundo dizem, são responsáveis por desde as cobranças “mimimi” sobre o humor politicamente incorreto, até o fim inevitável e iminente do ocidente capitalista -, talvez seja muito mais pela perplexidade de uma geração ultrapassada que não compreende ou aceita essa mudança de pensamento.

p5Há uma outra história recente que eu gosto muito, e que me colocou pra pensar bastante a respeito desse tipo de questão. Falo do RPG eletrônico Persona 5, da Atlus, que trata de temas e ideias muito parecidos com os expostos no vídeo: também nele, talvez de forma ainda mais evidente, temos um grupo de jovens em idade escolar que se descobre possuidores de poderes sobrenaturais, e decidem usá-los para provocar uma mudança na sociedade.

Eu sinto que eu poderia fazer um texto inteiro falando de cada aspecto do jogo, que foi o último a realmente me capturar e envolver por completo enquanto jogava. A direção de arte é fenomenal. A trilha sonora de acid jazz é maravilhosa. Toda a construção de cenário é fantástica, com uma história de assaltos mirabolantes sobrenaturais repleta de referências a ladrões e tricksters da história, mitologia e literatura. É um jogo que te prende e absorve por meses, e recomendo muito a qualquer um que goste de videogames que o experimente.

Mas há também mais nele do que apenas um joguinho eletrônico. Da mesma forma que a Ms. Marvel da Wilson, o jogo é uma tese sobre a juventude – e muito sobre essa juventude, em especial. Descontentes com a sociedade podre que herdaram, vítimas de toda sorte de abusos (alguns até bastante pesados e sérios, para quem acha que só por ser um videogame ele deve ser bobinho), o que move os personagens adolescentes é um desejo de ser e fazer diferente, e trazer uma mudança positiva para os que vierem depois. Se quisermos soar intelectuais e cabeçudos, poderíamos dizer mesmo que é um jogo sobre práxis revolucionária.

Vejo muito desse desejo de agência nessa geração. Poderia ser clichê aqui e citar as jornadas de junho de 2013 ou as inúmeras ocupações de escolas desde então, por exemplo. De certa forma, mesmo esse recrudescimento reacionário que vivemos pode ser um pouco reflexo disso, puxado por movimentos de rua que, à parte por serem contraditórios e muitas vezes francamente desonestos, se apresentam e são representados por faces jovens; às vezes me pego imaginando se parte da nossa desvantagem e dificuldade em superá-los não venha também de termos passado mais de uma década com alguma forma de esquerda relativamente progressista no poder, o que dificulta que ela seja vista como a opção de mudança.

Nesse contexto todo, entendo Persona 5 um pouco como um chamado à ação. Não é sobre denunciar males e expor a podridão da sociedade – é sobre ir às ruas e fazer algo a respeito. Eu acho fascinante como, mesmo que lide com temas pesados e sérios como abuso sexual, cobiça empresarial e conchavos políticos, entre outros, ele consiga deixar uma nota extremamente positiva e otimista no final. Talvez a sociedade em que vivemos seja mesmo injusta e apodrecida, mas ainda podemos tentar ser diferentes e transformá-la em algo melhor.

Há um conflito geracional aqui. Eu venho de uma geração muito marcada, na sua experiência nerd / otaku / gamer, por uma série chamada Neon Genesis Evagelion. Shinji Ikari, o protagonista adolescente de então, era exatamente o oposto do que os Phantom Thieves de Persona: confrontado com um mundo apodrecido, ele se fechava em si mesmo, se recusava repetidamente a entrar no robô, e caía no fatalismo e passividade, esperando que alguém o forçasse a agir. Numa hipérbole, posso dizer que o que aprendi com ele foi que, ao ver o mundo desmoronando, só me restava chorar e xingar meu pai.

Talvez por razões como essa, vejo a minha própria geração como um pouco perdida no que tange à possibilidade de transformar concretamente a sociedade. Mas, como professor, em contato constante com esse desejo de mudança e de fazer melhor, ainda tenho alguma esperança para as gerações futuras. As possibilidades sempre estão abertas para eles, e acho que gostaria de ver uma geração marcada por obras como Persona 5 (se não o videogame, a série em animação exibida atualmente no Japão) e Ms. Marvel; uma geração que cresça aprendendo que não precisa se curvar a um mundo adoecido, e que pode agir de alguma forma para melhorá-lo.

Saber cantarolar essa música é só um bônus.

Monstress – Despertar

monstress_despertarMonstress chama a atenção logo na capa. A imagem da protagonista em um majestoso unicórnio branco, dentro de uma construção misteriosa e com tentáculos negros pelo chão, é bastante evocativa por si só, realçado pelo traço belíssimo da artista Marjorie Liu. Há mesmo um alto relevo na capa dura, que revela uma série de símbolos místicos se olhada contra a luz, e as capas das edições avulsas são também sempre muito bonitas e evocativas. Elas chamam a atenção, e despertam a curiosidade sobre o que há dentro dos volumes.

Nas primeiras páginas então você já é jogado em um mundo vibrante de estilo art déco, repleto de detalhes em cada vestimenta, cada arma fantástica, cada construção. A arte sozinha preenche o mundo de vida e personalidade, antes que você sequer comece a se dar conta do que está acontecendo; quando após algumas páginas as interações entre personagens e situações apresentadas começam a fazer sentido, você já está dentro dele há muito tempo.

Esta é a história de Maika Halfwolf, uma arcânica em busca de vingança, que carrega dentro de si um poder misterioso que pode trazer a ruína para todo o mundo onde vive. Isso a faz perseguida pelas duas facções em conflito – tanto o império teocrático humano como a corte de seres fantásticos e seus descendentes arcânicos -, que, antes de representarem moralidades absolutas, acabam revelando muitos tons de cinza na forma como a tratam e nas ambições que possuem para ela. É uma história sobre guerra e sobreviventes, mas também sobre escravidão, preconceito e a dificuldade em conter – ou aceitar – nossos demônios interiores (estes, aliás, bem literais).

Buscando uma referência popular, a contracapa classifica o cenário da série como steampunk. Eu diria, no entanto, que está além disso – é mais próximo de uma tecnofantasy, um cenário de fantasia que explora aquele território nebuloso em que a magia e a tecnologia se misturam, como um jogo da série Final Fantasy (com a qual é frequentemente comparado em resenhas, inclusive). Há armas de fogo de design exóticos, compostos químicos misteriosos com poderes milagrosos, e também seres fantásticos como gatos falantes, animais humanoides e guerreiros-assassinos de técnicas mirabolantes. As autoras (além da artista Marjorie Liu, a roteirista Sana Takeda) misturam uma grande gama de influências, com influências bem claras dos tropos de fantasia dos mangás e outros quadrinhos orientais.

E há os deuses antigos – outra influência de origem bem óbvia. Seres ancestrais mortos séculos antes da história começar, vagam sem vida pela terra, causando desconforto e adoração. Cada página em que um deles aparece é um espetáculo à parte, dominando a paisagem com aquela sensação de assombro e maravilhamento.

Enfim, é uma obra espetacular, que não vejo sendo muito comentada – à parte por ter ganho o Hugo de melhor história em quadrinhos de 2017, um dos principais prêmios da literatura de terror, fantasia e ficção científica. Deixo muito a recomendação aqui, quebrando esse jejum de resenhas.

Pantera Negra, de Ta-Nehisi Coates

Um dia depois de eu me tornar rei, S’yan ofereceu-me um conselho.

– O poder não reside no que um rei faz, mas no que seus súditos creem que ele possa fazer.

Foi profundo, pois significava que a majestade dos reis está na sua aura de mistério, não em sua força. Cada ato de força apequena o rei, pois reduz sua aura de mistério. Pode expor os poderes do rei e, portanto, seus limites. Pode tornar o rei humano. Quebrável.

Por isso, parte de minha força eu escondi do mundo, permitindo que as lendas e o mito preenchessem a lacuna. Pois o que as pessoas conhecem não é o verdadeiro poder dos reis.

Hoje, meu tio S’yan está morto. Assassinado por outro rei. Eu o amava, mas gostaria que ele tivesse me falado não só do poder dos reis, mas da força do povo. Gostaria que tivesse me alertado que a população também tem segredos. Também guarda mistérios.

Também possui um poder próprio.

(Pantera Negra, do Ta-Nehisi Coates, sensacional).

Ms. Marvel & Gavião Arqueiro

Recentemente tem sido lançadas por aqui, em encadernados de capa dura bastante caprichados, duas das séries mais bacanas produzidas pela Marvel em muitos anos. Como os volumes de ambas estão saindo praticamente ao mesmo tempo, acho que podemos falar delas em conjunto, ao invés de gastar um post inteiro apenas para cada uma.

ms-marvelEm primeiro lugar temos a nova Ms. Marvel. Kamala Khan é uma adolescente comum de Jersey City, que, após fugir de casa para ir a uma festa com os colegas de escola, se vê inalando uma névoa misteriosa que atingiu a cidade e lhe concedeu superpoderes metamórficos. Fã dos Vingadores, se inspira em uma de suas heroínas preferidas para escolher uma alcunha e proteger a cidade de perigos e vilões.

Kamala pertence àquele nicho muito particular dos super-herois, os herois adolescentes. Em certo sentido, ela faz aquilo que personagens como o Homem-Aranha, por toda a sua história prévia, já deixaram de fazer há algum tempo: cumpre o papel do herói que deve salvar a cidade, enfrentar vilões, e terminar tudo antes de se atrasar para a escola. Seu universo, no entanto, é atualizado em relação ao cabeça de teia, e por isso muito mais contemporâneo, com direito a celulares e internet onipresentes. Entre uma aventura e outra, espere vê-la lidando com dilemas muito mundanos, do conflito da sua rebeldia adolescente com a família tradicional até o relacionamento com colegas e amigos na escola.

Acima de tudo, Kamala esbanja carisma. É uma personagem com quem é muito fácil se identificar, pelo menos para quem passou pela experiência de ser um fã de quadrinhos adolescente. Nerd, chega mesmo a tietar seus ídolos quando os encontra em meio às histórias – o seu encontro com o Wolverine no segundo volume é simplesmente sensacional. O mesmo vale para os coadjuvantes das histórias, indo desde a família e amigos próximos, passando pelo mascote Dentinho, e até o próprio vilão Inventor; é fácil criar histórias envolventes e cativantes quando se tem um elenco de personagens tão carismático e imaginativo, e isso fica muito evidente quando se lê estes volumes.

Note que tentei evitar até aqui falar aquela palavrinha mágica, que por alguma razão além da minha compreensão virou meio que tabu e muito associada a essa última reinvenção do universo Marvel. Mas vou dizer logo então pra me livrar desse peso: representatividade.

Ms. Marvel é, sim, uma série que busca a representatividade. De alguma forma apenas ter uma protagonista mulher se tornou hoje algo quase subversivo; e a série ainda vai além, representando uma população (os muçulmanos americanos) que não costuma aparecer em destaque com muita frequência nos quadrinhos mainstream. E não pense que ela tenta fugir ou se esconder desse subtexto: ele é sim colocado em primeiro plano, na própria Kamala, a forma como a cultura da família traz conflitos e dilemas à personagem, e mesmo a trama desses primeiros arcos de histórias, que envolve adolescentes aliciados para um culto que os convence a se sacrificar por um suposto bem maior (defina alegoria). A autora, G. Willow Wilson, ela própria uma muçulmana americana, traz muito da sua experiência pessoal para a série, dando-a mais significado e verossimilhança.

Se eu não mencionei esse aspecto até aqui, é porque não queria reduzir uma série tão fantástica apenas a ele. Ao mesmo tempo, no entanto, ele não pode realmente ser separado dela – Ms. Marvel não é uma série fantástica “apesar da representatividade;” ter esse elemento faz parte do que a torna tão legal. Torna os conflitos e dilemas da personagem mais reais, deixa o seu universo mais contemporâneo e significativo, e de uma maneira geral a reveste de personalidade e atitude. O fato de ser uma série tão bem escrita, e ter personagens tão carismáticos, apenas potencializa isso. Mas se ainda assim você não conseguir gostar, apenas porque a protagonista é mulher ou muçulmana… Olha, sinto muito dizer, mas não é a representatividade que é o problema aqui.

gav-arqueiroA segunda série recebendo encadernados nacionais não chega a tratar de temas tão polêmicos. Vendo em um primeiro momento, aliás, chega a parecer o exato oposto: uma série sobre um protagonista homem, branco, cis-hétero. Mas isso não a torna menos bacana também – na verdade, é um mérito e tanto conseguir pegar um dos personagens normalmente tidos como mais sem graça da editora, e reinventá-lo como um dos mais legais e carismáticos.

Em Gavião Arqueiro, vemos a vida de Clint Barton quando não está se aventurando com os Vingadores. Aqui o fato de ele ser o “cara normal” do super-grupo – pelo menos tão normal quanto alguém capaz de enfrentar uma horda de mafiosos armados usando apenas arco e flecha pode ser – se torna o mote condutor da história: o vemos no dia-a-dia, em atividades cotidianas, lidando com problemas da vizinhança, e, claro, enfrentando a eventual gangue de mafiosos.

Há uma pegada meio noir contemporâneo nos roteiros, dos antagonistas oriundos do mundo do crime até a presença constante de femme fatales (algumas das quais entre suas companheiras de equipe). A caracterização do herói mesmo bebe muito dessa fonte: vemos Clint como um personagem mal compreendido, emocionalmente destruído, que busca de alguma forma fazer o que parece certo por meios nem sempre assim tão corretos. Como qualquer detetive durão de Raymond Chandler, espere vê-lo apanhando bastante de capangas e oponentes antes de conseguir resolver os problemas em que acaba se metendo.

É muito fácil se identificar com a relutância de Clint, que não é bem um super gênio, soldado experimental, nem portador de poderes radioativos; e os autores se aproveitam muito disso nas histórias. Longe das ameaças cósmicas de destruição do planeta, seus problemas são de fato muito mais mundanos, envolvendo relacionamentos com mulheres, a preparação para festas natalinas, até a forma como ajuda seus vizinhos a lidar com uma enchente na cidade.

O ponto em que a série mais se destaca, no entanto, mais do que os próprios roteiros, é a narrativa arrojada desenvolvida pelos autores. O enquadramento dos quadrinhos são muito dinâmicos, como em um filme de ação tarantinesco, buscando ângulos inesperados para mostrar o que está acontecendo. Em algumas histórias você quase consegue ouvir a trilha sonora de rock independente. E frequentemente há espaço para experimentalismos narrativos, que exploram as características dos quadrinhos que não podem ser replicadas em outras mídias – como idas e vindas no tempo entre as páginas, ou uma história inteira contada do ponto de vista de Sortudo, o cachorro de Clint, com sacadas visuais geniais para dar conta da sua percepção guiada pelo faro.

Tanto Ms. Marvel como Gavião Arqueiro, enfim, representam o melhor que a Marvel produziu nos quadrinhos em muito tempo. São séries fantásticas, que simplesmente não podem ser ignoradas por quem gosta do gênero.

Astro City

astro_city_herois_locaisEm um tempo onde cada temporada de cinema é dominada por adaptações de super heróis, pode ser difícil por certas coisas em perspectiva, e lembrar que, num passado não tão distante, ser um leitor destas histórias depois dos doze anos não era exatamente algo bem visto socialmente. Lembro bem dos meus quinze anos, rezando para o Vigia para que minhas coleções de gibis e bonecos dos X-Men não fossem descobertos, e meu já difícil relacionamento com colegas de escola só piorasse.

De alguma forma, no entanto, as coisas mudaram, e hoje os tais nerds tem o poder da cultura pop ao seu lado. Gostar de super-heróis aos quinze ou vinte ou trinta anos nem sempre é motivo de vergonha; na verdade, é bem possível que seja um aspecto bem importante do seu convívio social. Até pela minha profissão de historiador, não consigo não ter uma certa visão processual sobre esse fato, e não achar que os tempos atuais são, de certa forma, bastante estranhos (mas nunca vou achar que são piores por isso, é bom deixar claro).

Num contexto assim uma série como Astro City consegue atingir um zeitgeist bem particular, e é muito propício que esteja sendo relançada por aqui em encadernados regulares, obedecendo à ordem de publicação original. Já falei dela antes, quando outras editoras tentaram fazê-la emplacar; mas acho que poucas vezes estivemos em um momento tão potencialmente receptivo a ela.

A série foi criada por Kurt Busiek, Alex Ross e Brent Anderson, e revisita muitos dos temas que os dois primeiros já haviam explorado com personagens clássicos em suas obras-primas mais conhecidas, Marvels e Reino do Amanhã. Em certo sentido, é uma inversão de valores do cinema de super-heróis recente: ao invés de tentar imaginar como seriam super-heróis no mundo real, seguindo essa fórmula tão manjada que tem nos dado resultados tão duvidosos, Astro City busca imaginar como seria o mundo real se super-heróis existissem nele. Ou, talvez dito de forma melhor, como seriam as pessoas do mundo real em um universo assim. Mais do que o aspecto político ou social, é o aspecto cultural e humano que os autores buscam, o que já fez com que fosse chamada de “o romance de costumes do mundo dos super-heróis.”

Astro City deve ter sido a primeira série a seguir aquela fórmula de reimaginar os super-heróis mais icônicos em versões genéricas – você sabe, criar o Super-Homem, a Mulher Maravilha, o Capitão América locais, com outros nomes e uniformes -, e usá-las para contar as histórias que não poderiam com os originais, por tudo o que representam não apenas culturalmente, mas mercadologicamente mesmo. Isso não significa que todos os heróis presentes tenham um equivalente nas grandes editoras – há muitos conceitos originais, desde os mais esdrúxulos, como o Caixa-de-Surpresas e El Hombre, até os mais curiosos e fascinantes, como Léo Lelé -, mas, quando você lê uma história do Samaritano sobre como a atribulada vida de guardião maior da justiça o deixa com pouco tempo para aproveitar o simples prazer de voar, bem, você sabe de quem os autores estão falando.

Talvez seja justamente essa exploração do lado humano de um mundo onde ser apenas “humano” está longe de ser a regra que separe Astro City da maioria das outras reinvenções tomadas de nostalgia e saudosismo. Para um gênero (e uma mídia) muitas vezes relegadas a uma classificação de entretenimento menor, há muito ali de Literatura com L maiúsculo, de exploração de sentimentos e dramas e mesmo questionamentos sociais, éticos e morais. Então uma história da Primeira Família (uma versão local do Quarteto Fantástico) pode questionar o papel da infância, e as consequências de uma educação enclausurada e superprotegida. Outra, o longo arco que compõe o quarto volume encadernado, referencia a literatura noir com uma trama melancólica sobre redenção e desencanto (embora com um ato final que pareça jogar tudo pro alto em um blockbuster de ação, mas ei, não dá pra fugir sempre da sua referência base).

No fim das contas, Astro City é simplesmente uma série fantástica, que merece todo o hype que recebe da crítica especializada, e certamente muito mais popularidade e burburinho do que tem de fato. Talvez não seja para todo mundo – pode ser preciso mesmo uma história prévia com super-heróis para entender o que ela propõe, e entrar no jogo de referências -, mas, com a evidência do seu gênero atualmente, certamente há de encontrar o seu espaço. Para quem não conhece, recomendo muito que se aproveite o relançamento dos encadernados pela Panini.

A Balada de Halo Jones

BaladaHaloJonesAntes da Liga Extraordinária, de Watchmen, de V de Vingança e todas aquelas séries pela qual Alan Moore é mais conhecido, havia Halo Jones. A Balada de Halo Jones é uma das obras-primas cult do mago dos quadrinhos britânicos, uma das histórias que o lançou ao estrelato originalmente na Inglaterra, inspirando de peças de teatro até bandas de rock, antes da consagração definitiva que viria no mercado norte-americano.

A história se passa no século 50 – um futuro tão absurdamente distante que é difícil até de ser concebido amplamente. Tudo o que conhecemos da Terra dessa época é o Aro, uma grande colônia sobre o oceano que abriga desempregados e outros excluídos sociais, sustentados por uma ajuda financeira concedida pelo governo. É um ambiente perigoso, onde uma simples visita ao mercado envolve tensão e planejamento quase a nível militar; e é onde vive Halo Jones, a personagem principal, que leva uma vida entediada e sufocante até que, após uma série de acontecimentos chocantes no seu círculo de amigos, decide fugir para longe – apenas para longe.

Um dos grandes méritos da história, principalmente nas duas primeiras partes, é pegar esse cenário futurista e caótico, com suas modas exóticas e gírias esquisitas, e tratá-lo como um ambiente absolutamente normal, habitado por pessoas normais. Halo é exatamente o tipo de garota comum que você encontraria num bar ou shopping center; possui amigos comuns, interesses comuns, paixões comuns por astros de bandas de rock. A identificação com ela e com seus dilemas, assim, é bastante profunda, e faz com que a história toda seja bastante envolvente. E se a própria Halo já não é cativante o bastante, o tempo todo encontramos novos personagens interessantes, de Rodice, a melhor amiga que fica para trás nesse desespero da protagonista por fugir para longe, até à não-entidade sem nome na qual ninguém consegue prestar atenção, responsável por alguns dos momentos mais emocionalmente intensos e dramáticos do roteiro.

A narrativa é muito influenciada pelo formato original da história, em capítulos semanais de cerca de cinco páginas cada publicadas na revista de quadrinhos de ficção científica 2000 A.D. Ela acaba lembrando bastante uma telenovela, em que o enredo é contado em passagens curtas, sempre com um cliffhanger na última cena para fisgar o leitor para o próximo episódio. Para os fãs do autor, é bastante interessante ver como ele se adapta a esta limitação, e começa a desenvolver as técnicas arrojadas de narrativa pela qual ficaria famoso no futuro.

Talvez por focar tanto nessas questões mais cotidianas, no entanto, as duas primeiras partes também são um pouco mais vagarosas, construindo sem muita pressa, em paralelo ao plano principal, elementos e situações que só serão profundamente explorados mais adiante; talvez seja um pouco difícil mesmo apreciá-las se não se estiver disposto a entrar no clima e se deixar levar pela ambientação, como eu geralmente estou. Mas então chegamos no Livro Três, e o enredo dá uma virada total no clima e na temática, quando Halo se alista para a guerra na nebulosa da Tarântula. Mais do que apenas pelo ambiente neurótico e caótico com que é representada a zona de conflito – que encontra a metáfora perfeita nos efeitos da gravidade gigante de um dos planetas sobre o tempo, fazendo meses passarem em poucos minutos -, é toda a identificação com a personagem construída nas partes anteriores que torna marcante a transformação e degradação pela qual ela passa nesse ambiente. O efeito dramático, além da óbvia analogia com a situação dos veteranos da Guerra do Vietnã, é bastante eficiente, chocando e provocando reflexões a respeito por dias depois da leitura.

Na soma final, eu pessoalmente considero A Balada de Halo Jones uma obra-prima; talvez seja mesmo a minha história preferida de Alan Moore (talvez empatado com Promethea). Ela consegue mesmo estar à frente do seu tempo em muitos aspectos – em tempos em que a representatividade dos sexos em diferentes mídias é tão discutida, é bastante contundente encontrar uma história de ficção científica em quadrinhos de três décadas atrás que tem uma mulher não-sexualizada como protagonista. O único ponto que talvez não tenha envelhecido tão bem é a arte de Ian Gibson, que não é exatamente feia, mas também parece um tanto datada comparada ao trabalho de artistas mais modernos. Mas é muito bom ver ela ganhando finalmente uma edição digna nas mãos da Mythos, com capa dura, papel especial e galeria de capas no final (apesar dela estar incompleta, apenas com as capas da 2000 A.D., sem incluir capas das edições encadernadas), visto que a edição anterior, da (felizmente) finada Pandora Books, era bastante mal produzida. Apenas senti falta das introduções do autor para cada ato da história.

Mesmo assim, recomendo muito.


Sob um céu de blues...

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