Existe aquele conceito filosófico, o übermensch, “super-homem”, conhecido principalmente como foi formulado por Friedrich Nietzsche. A ideia de que um ser humano, na sua individualidade, é capaz de superar os valores da sociedade e tornar-se superior a ela, transcendendo-a para elevar, a partir das suas conquistas individuais, toda a humanidade.
Isso é uma simplificação grosseira, é claro, que não abrange a complexidade que o próprio Nietsche possui no seu pensamento. Se parece algo complicado, que pode vir a justificar fascismos e autoritarismos, é porque foi assim mesmo que a ideia foi interpretada (mal interpretada segundo pessoas mais inteligentes que eu) diversas vezes desde que foi proposta, fazendo do pensador alemão uma figura bastante controversa. Mas também é uma ideia que está na origem daquele produto máximo da nossa cultura pop contemporânea, o super-herói, desde o próprio Super-Homem que não esconde a referência nem no nome, até o que é pra muitos o seu exemplar ficcional mais bem acabado, o Marvelman / Miracleman dos quadrinhos britânicos na fase roteirizada pelo Alan Moore.
Bem, em oposição a esse conceito, eu gostaria de propor um outro pseudo-conceito, que vou chamar de überparty. A tradução literal aqui é meio enganadora, pois quando falamos em “super-grupo” a imagem que nos vêm à mente é justamente grupos de super-heróis, como os Vingadores e Liga da Justiça, que na verdade são muito mais amontoados de übermensch do que grupos coesos em si mesmos. Mas a imagem que quero resgatar é muito mais a da “party” de um jogo de RPG, em especial aqueles da tradição japonesa.
Penso em Final Fantasy, Crono Trigger, Persona, Xenogears, todos esses jogos japoneses que marcaram pelo menos duas gerações de consoles de videogames. Não são histórias sobre indivíduos que transcendem a sociedade e a superam com seus dotes individuais, mas, antes disso, sobre grupos de indivíduos que se complementam, as limitações de um compensadas pelas qualidades de outro, e assim, pela força da amizade e coesão dos ideais, atingem o mesmo tipo de transcendência que o übermensch do Nietzsche – às vezes quase literalmente, dentro daquele tropo máximo do gênero em que as histórias sempre terminam de alguma forma (em alguns casos mais literalmente do que em outros) com o grupo derrotando Deus.
Às vezes penso que foram essas as histórias que mais marcaram a minha formação como pessoa. Até quando a minha referência eram os super-heróis norte-americanos, aqueles que eu lia realmente e sempre foram os meus preferidos eram um super-grupo que mais se aproximava desse tipo de ideal – os X-Men. Com todos os seus subtextos políticos, acho que o que me pegava realmente nas suas histórias era como ele não funcionava como o seu super-grupo típico, o amontoado de übermensch referido acima, indivíduos extraordiordinários que venciam pela força da sua extraordinariedade; pela sua própria formação, ele parecia muito mais com uma comunidade coesa, indivíduos que não viam espaço na sociedade e eram obrigados a se unirem como forma de sobrevivência, em que as diferenças entre eles eram parte da sua força e do que os mantinha unidos.
Eu lembro muito de uma citação da Naoko Takeuchi, criadora da Sailor Moon, sobre como ela criou a série como forma de sublimar a solidão que ela própria sentia, formando na ficção o grupo de amigas que ela gostaria de ter na vida real. Bem, eu sempre fui uma pessoa muito solitária, na infância, na adolescência, ainda hoje luto contra essa tendência. Tenho dificuldade em fazer e mais dificuldade ainda em manter amigos; acho que tenho um único que carrego comigo desde a adolescência até hoje, e mesmo ele por vezes parece distante, na medida em que ficamos semanas ou meses sem nos falar.
Quando penso em retrospecto, acho que essas histórias de fato supriram um pouco a minha necessidade de conexão. Talvez se tivesse afundado no universo individualista de um mundo de super-heróis, tivesse me tornado um desses nerds amargurados que jogam no resto do mundo a frustração de não conseguirem serem iguais aos personagens que têm como modelo. Mas os meus heróis nunca venceram sozinhos; se não tivessem outras pessoas com eles, que os levantam e sacodem e emprestam a força e os poderes, teriam sucumbido.
Eu penso muito no quanto eu levei disso pra minha vida posterior. A minha desconfiança de hierarquias e de tudo que não é feito a partir de consenso e coesão de ideias; talvez aí esteja a origem da minha simpatia pelo anarquismo. A minha dificuldade em lidar com autoridade e figuras de liderança, e mesmo (talvez principalmente) em ser essa figura de liderança. A minha dificuldade em me colocar primeiro do que o grupo, e a frustração quando percebo que ninguém em um determinado ambiente está disposto a fazer o mesmo por mim. Mesmo o meu gosto por jogos cooperativos, como o RPG, no lugar de esportes de esportes de competição.
Pro bem e pro mal, eu vejo isso até na minha prática como professor. Lidar com alunos adolescentes é sempre complicado, porque eles não tem ainda essa capacidade de auto-crítica, de olhar para si mesmo e reavaliar aquilo que fazem e pensam. A culpa é sempre do outro, e a figura do professor, revestida de uma aura de autoridade, é uma daaquelas a quem eles podem se opor na busca de entenderem a si mesmo. É sempre frustrante pra mim quando preciso ser essa figura de autoridade, e abusar de uma posição hierárquica com a qual eu nem concordo em primeiro lugar para que consiga pelo menos fingir que há uma aula acontecendo.
Essa pedagogia da autoridade, do opressor… Não é uma pedagogia com a qual eu concorde. Mas por vezes parece ser a pedagogia que esperam de mim. E essa tensão entre o professor que eu queria ser, e o professor que esperam que eu seja, é muito angustiante. Eu nunca me senti confortável de verdade na profissão que caiu no meu colo, mas acho que faz muito tempo que não me questionava tanto a respeito dela.
Enfim. O texto dá uma volta muito grande nos assuntos, mas são algumas coisas que eu queria realmente colocar pra fora. Nem liguem.
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