Arquivo para setembro \25\-03:00 2023

O mito da überparty

Existe aquele conceito filosófico, o übermensch, “super-homem”, conhecido principalmente como foi formulado por Friedrich Nietzsche. A ideia de que um ser humano, na sua individualidade, é capaz de superar os valores da sociedade e tornar-se superior a ela, transcendendo-a para elevar, a partir das suas conquistas individuais, toda a humanidade.

Isso é uma simplificação grosseira, é claro, que não abrange a complexidade que o próprio Nietsche possui no seu pensamento. Se parece algo complicado, que pode vir a justificar fascismos e autoritarismos, é porque foi assim mesmo que a ideia foi interpretada (mal interpretada segundo pessoas mais inteligentes que eu) diversas vezes desde que foi proposta, fazendo do pensador alemão uma figura bastante controversa. Mas também é uma ideia que está na origem daquele produto máximo da nossa cultura pop contemporânea, o super-herói, desde o próprio Super-Homem que não esconde a referência nem no nome, até o que é pra muitos o seu exemplar ficcional mais bem acabado, o Marvelman / Miracleman dos quadrinhos britânicos na fase roteirizada pelo Alan Moore.

Bem, em oposição a esse conceito, eu gostaria de propor um outro pseudo-conceito, que vou chamar de überparty. A tradução literal aqui é meio enganadora, pois quando falamos em “super-grupo” a imagem que nos vêm à mente é justamente grupos de super-heróis, como os Vingadores e Liga da Justiça, que na verdade são muito mais amontoados de übermensch do que grupos coesos em si mesmos. Mas a imagem que quero resgatar é muito mais a da “party” de um jogo de RPG, em especial aqueles da tradição japonesa.

Penso em Final Fantasy, Crono Trigger, Persona, Xenogears, todos esses jogos japoneses que marcaram pelo menos duas gerações de consoles de videogames. Não são histórias sobre indivíduos que transcendem a sociedade e a superam com seus dotes individuais, mas, antes disso, sobre grupos de indivíduos que se complementam, as limitações de um compensadas pelas qualidades de outro, e assim, pela força da amizade e coesão dos ideais, atingem o mesmo tipo de transcendência que o übermensch do Nietzsche – às vezes quase literalmente, dentro daquele tropo máximo do gênero em que as histórias sempre terminam de alguma forma (em alguns casos mais literalmente do que em outros) com o grupo derrotando Deus.

Às vezes penso que foram essas as histórias que mais marcaram a minha formação como pessoa. Até quando a minha referência eram os super-heróis norte-americanos, aqueles que eu lia realmente e sempre foram os meus preferidos eram um super-grupo que mais se aproximava desse tipo de ideal – os X-Men. Com todos os seus subtextos políticos, acho que o que me pegava realmente nas suas histórias era como ele não funcionava como o seu super-grupo típico, o amontoado de übermensch referido acima, indivíduos extraordiordinários que venciam pela força da sua extraordinariedade; pela sua própria formação, ele parecia muito mais com uma comunidade coesa, indivíduos que não viam espaço na sociedade e eram obrigados a se unirem como forma de sobrevivência, em que as diferenças entre eles eram parte da sua força e do que os mantinha unidos.

Eu lembro muito de uma citação da Naoko Takeuchi, criadora da Sailor Moon, sobre como ela criou a série como forma de sublimar a solidão que ela própria sentia, formando na ficção o grupo de amigas que ela gostaria de ter na vida real. Bem, eu sempre fui uma pessoa muito solitária, na infância, na adolescência, ainda hoje luto contra essa tendência. Tenho dificuldade em fazer e mais dificuldade ainda em manter amigos; acho que tenho um único que carrego comigo desde a adolescência até hoje, e mesmo ele por vezes parece distante, na medida em que ficamos semanas ou meses sem nos falar.

Quando penso em retrospecto, acho que essas histórias de fato supriram um pouco a minha necessidade de conexão. Talvez se tivesse afundado no universo individualista de um mundo de super-heróis, tivesse me tornado um desses nerds amargurados que jogam no resto do mundo a frustração de não conseguirem serem iguais aos personagens que têm como modelo. Mas os meus heróis nunca venceram sozinhos; se não tivessem outras pessoas com eles, que os levantam e sacodem e emprestam a força e os poderes, teriam sucumbido.

Eu penso muito no quanto eu levei disso pra minha vida posterior. A minha desconfiança de hierarquias e de tudo que não é feito a partir de consenso e coesão de ideias; talvez aí esteja a origem da minha simpatia pelo anarquismo. A minha dificuldade em lidar com autoridade e figuras de liderança, e mesmo (talvez principalmente) em ser essa figura de liderança. A minha dificuldade em me colocar primeiro do que o grupo, e a frustração quando percebo que ninguém em um determinado ambiente está disposto a fazer o mesmo por mim. Mesmo o meu gosto por jogos cooperativos, como o RPG, no lugar de esportes de esportes de competição.

Pro bem e pro mal, eu vejo isso até na minha prática como professor. Lidar com alunos adolescentes é sempre complicado, porque eles não tem ainda essa capacidade de auto-crítica, de olhar para si mesmo e reavaliar aquilo que fazem e pensam. A culpa é sempre do outro, e a figura do professor, revestida de uma aura de autoridade, é uma daaquelas a quem eles podem se opor na busca de entenderem a si mesmo. É sempre frustrante pra mim quando preciso ser essa figura de autoridade, e abusar de uma posição hierárquica com a qual eu nem concordo em primeiro lugar para que consiga pelo menos fingir que há uma aula acontecendo.

Essa pedagogia da autoridade, do opressor… Não é uma pedagogia com a qual eu concorde. Mas por vezes parece ser a pedagogia que esperam de mim. E essa tensão entre o professor que eu queria ser, e o professor que esperam que eu seja, é muito angustiante. Eu nunca me senti confortável de verdade na profissão que caiu no meu colo, mas acho que faz muito tempo que não me questionava tanto a respeito dela.

Enfim. O texto dá uma volta muito grande nos assuntos, mas são algumas coisas que eu queria realmente colocar pra fora. Nem liguem.

Primeira pessoa do singular, de Haruki Murakami

Se me entristeço por essas mulheres terem envelhecido, talvez seja porque isso me força a reconhecer que os sonhos que tive quando jovem já não são mais possíveis. Em certo sentido, a morte de um sonho é mais triste do que a morte de algo vivo.

Sobre Paulo Freire na educação pública

Uma historinha. Numa das disciplinas que fiz no mestrado, fui colega de uma professora de história da Escola Lumiar, um desses projetos modinha de educação particular. Como todos sabem, sou professor municipal, e esse projeto em específico tem uma certa relevância pra nós porque foi o queridinho de um secretário de educação recente nas tentativas de terceirizar o ensino público na cidade.

A colega em questão era uma pessoa bastante crítica, progressista, e de maneira geral do lado certo na maioria das questões; não vamos nos iludir e dizer que só porque está no setor privado que a pessoa é um minion, né? E ela era encantada com o projeto de educação da escola. Num dos debates das aulas, nos descreveu como funcionava: haviam projetos e oficinas sasonais; gestão participativa dos estudantes e pais nas questões administrativas; pesquisas etnográficas para entender a realidade dos estudantes; incentivos para que a didática das aulas sempre se fundamentasse no diálogo com os alunos, valorizando aquilo que eles traziam de fora e construindo o conteúdo das aulas a partir disso; uma ênfase na avaliação não classificatória, mas voltada para o desenvolvimento prático do aluno a partir das suas próprias questões e interesses.

Não precisa ser um gênio da pedagogia pra entender onde eu quero chegar. Todos esses são princípios freireanos básicos, clichezões mesmo. Tu encontra eles bem detalhados lá na Pedagogia do Oprimido, não precisa ir nem pras obras menos conhecidas. Os mesmos ideais que tantos querem vender como um “fracasso da educação.”

Vou lá chover no molhado e dizer que Paulo Freire nunca foi aplicado de verdade na educação pública brasileira. Ele ser nosso patrono é de fato muito bonito, demonstra um ideal a se perseguir, mas na prática o efeito é mais moral e simbólico do que verdadeiro.

Todas as tentativas de se fazer uma educação pública verdadeiramente freireana sempre tem resistência, briga, esperneação pública. Foi assim em Porto Alegre em vinte anos da gestão PT, quando de fato se tentou fazer um projeto educacional inovador, fundamentado em Freire e outros educadores populares, mas que na prática sofreu tanto com a resistência política e sucateamento posterior que acabou totalmente descaracterizado. E que, vejam só, era muito parecido em essência com o projeto particular que quiseram implantar de forma terceirizada.

Querem com todas as forças expurgar Paulo Freire da educação brasileira. Mas babam nos projetos particulares que se baseiam sobretudo em Paulo Freire. Todos os modelos educacionais estrangeiros que tentam nos vender com ares de utopia tem Paulo Freire como referencial. Paulo Freire é nome de um centro de estudos em pedagogia na Finlândia – considerada a melhor educação do mundo. E por aí vai.

A verdade é que o problema que eles têm não é com o Paulo Freire – é com a educação pública, universal e gratuita.

Mas até aí, chover no molhado e etc.

A Epopéia de Gilgamesh

Acho que dos épicos antigos, o meu preferido é mesmo o de Gilgamesh. Desde que li pela primeira vez, lá no começo da faculdade, me impressiona a forma como um texto tão fora de contexto, tão estranho ao mundo em que vivemos hoje, consegue soar tão universal.

Começa com tema central da narrativa, o medo da morte, que é talvez um dos grandes temas universais da humanidade né? Mas pra além disso, ele tem um senso de tragédia tão bem sublinhado – o herói que busca a imortalidade, mas no fim não a obtém -, e um protagonista redondo, que não é estanque, mas muda, se redime, e cresce ao longo da narrativa.

É claro que seria demais esperar de um épico de seis mil anos de idade a estrutura de um romance psicológico contemporâneo, mas isso sempre me pareceu um diferencial em relação aos Aquiles e Odisseus dos épicos ocidentais, em que todas as mudanças dos personagens passam de um jeito ou de outro pela ação dos deuses. Mas a evolução de Gilgamesh, e o luto por que ele passa após a morte de Enkidu, tem algo de muito mais humano, que não precisa de um agente externo para que você veja acontecendo.

Tem ainda o fato de ser um épico de ação, com monstros e combates, mas que, no fim, tem como clímax uma conversa pacífica, entre um personagem que obteve a bênção que Gilgamesh procura não por feitos de guerra e coragem, mas por engenhosidade e sabedoria ao construir a arca que salvou a humanidade do dilúvio.

A versão acádia da história, que acho que é a mais completa, tem ainda uma estrutura narrativa que podia estar em qualquer história de fantasia moderna. Tem suas idiossincrasias, claro; cadência de versos, trechos que se repetem como um refrão, o que sublinha o fato de ser um texto de tradição oral que foi transcrito. Mas tem também dois blocos narrativos muito bem delimitados, cada um com início, desenvolvimento e desfecho próprios, os acontecimentos de um levando organicamente ao outro.

E tem ainda uma circularidade na história que impressiona. Inicia com o narrador descrevendo a cidade de Uruk, e termina com o próprio Gilgamesh repetindo os mesmos versos do início para o barqueiro dos deuses, depois de voltar da jornada aos confins do mundo.

Todo valor ás Odisseias, Ilíadas, a própria Bíblia. Mas sempre achei que Gilgamesh tinha de fato um algo mais, um diferencial que me faz retornar a ele constantemente.

Da efemeridade da História

Umas coisas que a gente pensa ensinando Roma Antiga pro sexto ano. Ás vezes perdemos de vista o tamanho da História, e o quanto ela é processo constante, sem fim (chora Fukuyama), e tudo que parece certo e sólido eventualmente se desmancha no ar.

Lembro de umas comparações de que a Cleópatra estava mais próxima da nossa época (ela viveu e morreu pouco antes do nascimento de Cristo) do que da construção das primeiras pirâmides (que foram construídas +/- 2600 a. C.).

Sobre Roma, a gente sempre pensa no Império, né? Mas em certo sentido, após o primeiro século, a Roma imperial já era o período decadente. A maior parte do que fez o Império Romano tão grande e poderoso (a força do exércto, as conquistas), na real, aconteceu na República. E a República romana foi longa. De 509 a. C. até 27 a. C. – 482 aos. Pra comparar, a república democrática “moderna”, de inspiração iluminista, mais antiga é a dos Estados Unidos, que começou em 1783 – ou seja, 236 anos. Isso não é nem metade da duração total da República romana.

Dá até um calafrio pensar nisso. A gente olha pro nosso tempo às vezes e parece que ele é eterno, que nada mais vai mudar e ficaremos presos eternamente nas condições em que estamos. Mas a História é turbulenta. Um cidadão romano lá por 140 a. C., pouco depois da última guerra com Cartago, p.ex., talvez também achasse que a República seria eterna, e que eles só se expandiriam até o infinito. E ainda assim, os quase quinhentos anos republicanos no fim se verteram em outros cinco séculos do que foram essencialmente uma sequência de ditaduras militares.

Não dá pra achar que valores como a democracia, a iguldade dos povos, os direitos humanos, e etc, são eternos e universais. Eles tem uma historicidade, começaram em um determinado ponto na História, cresceram e se expandiram, e a qualquer momento podem, também, ter um fim.

No fim das contas tudo está sempre em disputa, de uma forma ou de outra, e não dá pra tomar nada como garantido. O mar da História é agitado, como diria Maiakovski.

China, historiografia, utopia

Pensando outro dia sobre a história da China, enquanto lia uma bibliografia a respeito. É interessante por se tratar de um império que muito cedo desenvolveu uma tradição historiográfica – não simplesmente de registrar a História, mas de rever regularmente os próprios registros anteriores sob uma luz crítica.

Me peguei refletindo muito na tese da sucessão de dinastias. Eu penso às vezes que a gente tem uma certa tendência de “ficcionalizar” a nossa experiência histórica – de buscar dar um sentido pra ela que seja maior e mais significativo do que os fatos sozinhos. As dinastias têm muito disso, certamente, mas me pareceu que de um jeito diferente do nosso ideário cristão-ocidental. O que dá sentido pra elas não um mítico fim último da História, quando todas as pontas se fecharão  e os pecados e dividendos morais serão cobrados. A sucessão de dinastias não acaba.

Toda a dinastia começa com uma turbulência que poderia ser ela própria um romance épico. Os governantes foram corrompidos e perderam o Mandato Divino; a população se ergueu em revolta, e a própria natureza demonstra seu desgosto com desastres. Um líder – que pode ser um nobre previamente leal ao imperador, um invasor estrangeiro, e ocasionalmente já foi até alguém oriundo das camadas populares – surge, angaria seguidores, derruba o último e frágil imperador da dinastia anterior, e funda a nova dinastia. Fim.

Só que não tem fim né? O mar da história é agitado, já dizia o poeta. A sucessão de imperadores vai enfraquecendo o poder que surgiu do conflito, até que ela se torna a dinastia corrompida a ser derrubada e substituída. Ad infinitum.

Eu contrasto isso com a nossa fixação com o “fim da História.” É uma fixação bem cristã – o Apocalipse e redenção final da humanidade – mas que também se irradia pras nossas crenças políticas – o comunismo final, por exemplo. A mais conhecida hoje é a neoliberal do Fukuyma.

Tem estudos sobre como essa ideia de que vivemos num momento definitivo, em que nada mais mudará, foi vendida pós-1989. Eu penso na tese dos regimes de historicidade do François Hartog, por exemplo, e o nosso suposto regime atual voltado para um presente eterno.

(Num pulo mais ousado, eu me pergunto se a nossa própria fixação recente com séries de fantasia pura não tem a ver com isso. Como não projetamos mais nossas utopias e anseios para o futuro, passamos a projetá-las em mundos totalmente alternativos. Mas digrido).

Eu fico pensando nesse contraste principalmente nesses tempos sombrios em que estamos. O quanto de gente que eu vejo falando sobre “não aguentar mais viver em tempos históricos.” Só que a ideia de que podemos viver em um tempo “não-histórico” já é meio ilusória né? A ideia de que a história pode ser parada ou suspensa lembra um pouco esse ideário de que ela pode terminar, também. Nem nas próprias dinastias chinesas isso ocorria, ainda que, por vezes, tentassem vender que sim.

Sem querer diminuir o fato de vivermos em um momento de crise, claro. Mas a história não acontece só nas crises, e a própria noção de que ela é só uma sucessão de crises também é um ideário muito neoliberal construído pra nos conformar a elas.

Pensando num outro ângulo, pensar na história como um fluxo eterno, sem fim, pode parecer um pouco desanimador. De que adianta uma revolução que transforme a sociedade hoje, se amanhã ela vai estar corrompida outra vez? Mas isso também é um pouco um vício nosso justamente por estarmos sempre pensando nos fins, e não nos meios, nos próprios processos em si mesmos. Na verdade, eu acho que essa noção pode ser até um pouco libertadora. Não precisamos nos envergonhar de sermos utópicos e idealistas. A gente sabe que a utopia última é inalcançável; mas isso não invalida cada pequeno avanço que conquistamos.

Sem precisar se preocupar com uma vitória final, com a revolução definitiva que salvará e libertará toda a humanidade, cada pequena vitória no caminho conta muito mais, e cada pequena revolução é uma vitória em si mesma.

Enfim. Apenas pensando alto, sem querer fazer muito sentido.


Sob um céu de blues...

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