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Da efemeridade da História

Umas coisas que a gente pensa ensinando Roma Antiga pro sexto ano. Ás vezes perdemos de vista o tamanho da História, e o quanto ela é processo constante, sem fim (chora Fukuyama), e tudo que parece certo e sólido eventualmente se desmancha no ar.

Lembro de umas comparações de que a Cleópatra estava mais próxima da nossa época (ela viveu e morreu pouco antes do nascimento de Cristo) do que da construção das primeiras pirâmides (que foram construídas +/- 2600 a. C.).

Sobre Roma, a gente sempre pensa no Império, né? Mas em certo sentido, após o primeiro século, a Roma imperial já era o período decadente. A maior parte do que fez o Império Romano tão grande e poderoso (a força do exércto, as conquistas), na real, aconteceu na República. E a República romana foi longa. De 509 a. C. até 27 a. C. – 482 aos. Pra comparar, a república democrática “moderna”, de inspiração iluminista, mais antiga é a dos Estados Unidos, que começou em 1783 – ou seja, 236 anos. Isso não é nem metade da duração total da República romana.

Dá até um calafrio pensar nisso. A gente olha pro nosso tempo às vezes e parece que ele é eterno, que nada mais vai mudar e ficaremos presos eternamente nas condições em que estamos. Mas a História é turbulenta. Um cidadão romano lá por 140 a. C., pouco depois da última guerra com Cartago, p.ex., talvez também achasse que a República seria eterna, e que eles só se expandiriam até o infinito. E ainda assim, os quase quinhentos anos republicanos no fim se verteram em outros cinco séculos do que foram essencialmente uma sequência de ditaduras militares.

Não dá pra achar que valores como a democracia, a iguldade dos povos, os direitos humanos, e etc, são eternos e universais. Eles tem uma historicidade, começaram em um determinado ponto na História, cresceram e se expandiram, e a qualquer momento podem, também, ter um fim.

No fim das contas tudo está sempre em disputa, de uma forma ou de outra, e não dá pra tomar nada como garantido. O mar da História é agitado, como diria Maiakovski.

China, historiografia, utopia

Pensando outro dia sobre a história da China, enquanto lia uma bibliografia a respeito. É interessante por se tratar de um império que muito cedo desenvolveu uma tradição historiográfica – não simplesmente de registrar a História, mas de rever regularmente os próprios registros anteriores sob uma luz crítica.

Me peguei refletindo muito na tese da sucessão de dinastias. Eu penso às vezes que a gente tem uma certa tendência de “ficcionalizar” a nossa experiência histórica – de buscar dar um sentido pra ela que seja maior e mais significativo do que os fatos sozinhos. As dinastias têm muito disso, certamente, mas me pareceu que de um jeito diferente do nosso ideário cristão-ocidental. O que dá sentido pra elas não um mítico fim último da História, quando todas as pontas se fecharão  e os pecados e dividendos morais serão cobrados. A sucessão de dinastias não acaba.

Toda a dinastia começa com uma turbulência que poderia ser ela própria um romance épico. Os governantes foram corrompidos e perderam o Mandato Divino; a população se ergueu em revolta, e a própria natureza demonstra seu desgosto com desastres. Um líder – que pode ser um nobre previamente leal ao imperador, um invasor estrangeiro, e ocasionalmente já foi até alguém oriundo das camadas populares – surge, angaria seguidores, derruba o último e frágil imperador da dinastia anterior, e funda a nova dinastia. Fim.

Só que não tem fim né? O mar da história é agitado, já dizia o poeta. A sucessão de imperadores vai enfraquecendo o poder que surgiu do conflito, até que ela se torna a dinastia corrompida a ser derrubada e substituída. Ad infinitum.

Eu contrasto isso com a nossa fixação com o “fim da História.” É uma fixação bem cristã – o Apocalipse e redenção final da humanidade – mas que também se irradia pras nossas crenças políticas – o comunismo final, por exemplo. A mais conhecida hoje é a neoliberal do Fukuyma.

Tem estudos sobre como essa ideia de que vivemos num momento definitivo, em que nada mais mudará, foi vendida pós-1989. Eu penso na tese dos regimes de historicidade do François Hartog, por exemplo, e o nosso suposto regime atual voltado para um presente eterno.

(Num pulo mais ousado, eu me pergunto se a nossa própria fixação recente com séries de fantasia pura não tem a ver com isso. Como não projetamos mais nossas utopias e anseios para o futuro, passamos a projetá-las em mundos totalmente alternativos. Mas digrido).

Eu fico pensando nesse contraste principalmente nesses tempos sombrios em que estamos. O quanto de gente que eu vejo falando sobre “não aguentar mais viver em tempos históricos.” Só que a ideia de que podemos viver em um tempo “não-histórico” já é meio ilusória né? A ideia de que a história pode ser parada ou suspensa lembra um pouco esse ideário de que ela pode terminar, também. Nem nas próprias dinastias chinesas isso ocorria, ainda que, por vezes, tentassem vender que sim.

Sem querer diminuir o fato de vivermos em um momento de crise, claro. Mas a história não acontece só nas crises, e a própria noção de que ela é só uma sucessão de crises também é um ideário muito neoliberal construído pra nos conformar a elas.

Pensando num outro ângulo, pensar na história como um fluxo eterno, sem fim, pode parecer um pouco desanimador. De que adianta uma revolução que transforme a sociedade hoje, se amanhã ela vai estar corrompida outra vez? Mas isso também é um pouco um vício nosso justamente por estarmos sempre pensando nos fins, e não nos meios, nos próprios processos em si mesmos. Na verdade, eu acho que essa noção pode ser até um pouco libertadora. Não precisamos nos envergonhar de sermos utópicos e idealistas. A gente sabe que a utopia última é inalcançável; mas isso não invalida cada pequeno avanço que conquistamos.

Sem precisar se preocupar com uma vitória final, com a revolução definitiva que salvará e libertará toda a humanidade, cada pequena vitória no caminho conta muito mais, e cada pequena revolução é uma vitória em si mesma.

Enfim. Apenas pensando alto, sem querer fazer muito sentido.

Ghost of Tsushima e Orientalismo (uma resenha)

Eu sei que vou estar sendo só o professor de História marxista estraga-prazeres chato do rolê, mas eu fico pensando muito como o Ghost of Tsushima passa pano pra questão de classe. Tipo, sei que a gente idealiza e mitifica eles um bocado por filmes e animes, mas os samurai eram a classe dominante. Não tinha nada de muito altruísta na relação deles com o povão. A conversa toda de honra isso e aquilo, além de ser uma invenção muito posterior (da virada do séc XIX/XX), os cavaleiros europeus também tinham.

Então o jogo tenta te vender um papo de “eu sou samurai e estou aqui para protegê-los”, e eu entro na onda porque, bem, é só um jogo né? Eu adoro Kurosawa e também quero me divertir. Mas aquela pulguinha não sai de trás da orelha.

E não é como se o jogo não sugerisse um conflito de classe, e às vezes até parece quase querer sublinhar um… Mas nunca passa da sugestão superficial. A relação Jin/Yuna ilustra isso bem, dá pra enxergar a fanfic de ela ser o povão passando a perna na nobreza, mas ela nunca é posta nesses termos.

O conflito principal do jogo — não o externo contra os mongóis, mas o interno do Jin sacrificando a sua honra em nome desse combate — podia ser fácil colocado nesses termos. Porque uma coisa é tu estar disposto a morrer pela tua honra; mas é honrado sacrificar os outros por ela?

É realmente honrado deixar os outros, em especial pessoas indefesas de classes baixas, morrerem por se negar a violar um código de conduta? Essa questão — que seria um baita conflito dentro dos tropos do gênero — até é sugerida no início, mas fica logo apagada e o motor do enredo vai todo pro pessoal (salvar o tio) e político (terminar a invasão) como justificativa pra tudo, o que tira da ideia de honra a sua dimensão social/política e deixa só o clichê da limitação tática na hora de lutar.

E é claro que eu sei que estou superanalisando e eu não esperava em absoluto que um joguinho de espadinha tivesse esse nível de profundidade crítica. Mas eu fico pensando nisso enquanto jogo, e como algumas das linhas narrativas secundárias, que conta as histórias dos aliados do Jin, me fazem simpatizar muito mais com os supostos vilões do que os samurais honrados que tu em tese está ajudando.

Fiquei pensando ainda em como jogo bate o tempo inteiro na tecla do “para derrotar os mongóis você está se tornando como eles” etc. etc., o que é um conflito que faz sentido quando se coloca internamente no roteiro, mas acaba levantando uma outra questão. O Jin não massacra só mongóis, mas também bandidos e ronin japoneses que encontra pelo caminho. Muitos dos quais, se formos analisar friamente, também só estão tentando sobreviver na terra devastada pelos invasores.

Pegando a caracterização de Batman-clone japonês medieval, eles acabam sem querer entrando na mesma contradição do Batman original: a de que, no fim das contas, ele ainda é pouco mais do que um membro da classe dominante que veste uma roupa apertada pra sair caçando pessoas mais desfavorecidas do que ele.

E no contexto do jogo ainda tem uma outra dimensão disso tudo. Se no fim ele abraça os métodos desonrosos dos mongóis, e usa esses métodos contra a própria população da ilha, o que o torna tão diferente deles? Essa é uma pergunta com resposta, claro: é que ele é japonês.

Tudo bem sermos oprimidos por um membro da classe dominante, desde que seja a classe dominante japonesa. Se forem estrangeiros, aí não! Talvez isso tenha colaborado também pra ele ser tão bem recebido no Japão. Mesmo sendo ocidental, ele se reveste bastante de um verniz patriótico/nacionalista japonês. Até faz um joguete narrativo de questionar a noção de honra e colocar ela como anacrônica (sic), mas acaba se revestindo do mesmo discurso que o bushido e o samurai foram revestidos no começo do século XX, com consequências complicadas.

Outro ponto sobre o jogo foi ter retornado a ele um ano depois, para jogar a expansão, e ter feito isso depois de jogar Sekiro, um jogo japonês de fato e que explora um universo cultural bem parecido. E é muito patente como tudo em Sekiro parece mais autêntico.

Não digo só da representação histórica em si, mas parece que é um jogo com algo a dizer de verdade — ainda que com aquela narrativa mínima e indireta típica do gênero Souls. Mas ainda parece que há uma mensagem verdadeira no subtexto, um comentário sobre a decadência e o envelhecimento subjacente no conflito entre o feudo de Ashina e o Ministro do Interior.

Em Tsushima o centro do conflito é uma exploração de um tropo anacrônico e orientalista, formulado por alguém que não parece entender ele de verdade. Fica um certo vazio de significado concreto, sobra uma moral muito abstrata, que subjaz um sentido que é fácil de ser interpretado de um jeito bem problemático.

Repassando algumas cenas, reforça muito toda a discussão sobre ~honra~ que soa parecida demais com uma crença de superioridade intrínseca do povo japonês sobre o mongol, de um jeito que chega a soar supremacista. Eu peguei inclusive uns comentários que deixam subentendido que os próprios samurais são invasores que “unificaram” a ilha, e um chamado à população a aceitar o domínio samurai como mais “civilizado” que o mongol.

Acho que aí é algo do nosso contexto. Outro dia tinha lido um texto sobre Mass Effect, e a sua narrativa pró-militar e anti-valores democráticos que passava batido quase vinte anos atrás. Mas hoje, no contexto de ressurgência de fascismos no mundo todo, acaba soando bem incômodo.

Volto ao fato de como o jogo foi bem recebido e elogiado no próprio Japão, um país que está longe de ser um farol de progressismo e tem uma história muito problemática com ideais de supremacia racial. Longe de mim fiscalizar o que outros gostam ou não gostam em um produto cultural, mas a empolgação que alguns veículos de mídia demonstraram com o jogo me deixaram um tanto incomodado de verdade, e pensando no que eles estavam enxergando nessa história em específico.

Outro aspecto em que a diferença de olhar é visível é a religião. Ghost of Tsushima tinha uma relação bem complicada com a religiosidade; se era a crença samurai nos kami era bonito e sutil, mas a crença popular no sobrenatural era sempre boba e superstição. Nesse contraste, é muito interessante como Sekiro abraça a própria herança budista.

Mas claro, eu só estou superanalisando a questão toda. Ambos os jogos são divertidos, eu como fã de filmes de ninja e samurai adorei, e Tsushima deve ter sido aquele que eu mais afundei horas em 2020 (em grande medida por quão impressionante visualmente ele é), mas é importante não esquecer que nenhum deles é História. E um pouco de auto-questionamento sobre quais aspectos você está de fato apreciando nunca faz mal a ninguém.

Casta – As Origens do Nosso Mal-Estar

Casta — As Origens do Nosso Mal-estar é um livro muito pungente e provocador, propondo uma comparação de três sistemas de segregação (o racismo dos EUA, o nazismo e as castas indianas) e desvelando muito do caráter estrutural que eles assumem, mesmo que não dê diretamente o nome. É uma leitura que compensa. Mas tem também o recorte geográfico, de meio que ignorar o mundo ao sul do Texas, e principalmente o viés liberal que fica um pouco velado nas análises.

Então é um problema causado pela divisão de castas a distorção da lógica meritocrática que impede indivíduos da casta inferior de se destacarem para o benefício de todos. Mas não é problema de um sistema de poder e exploração, hoje capitalista mas que já foi outro, te incentivar a buscar razões, por arbitrárias que sejam, pra manter um grupo sempre subordinado e submisso.

É claro que as duas coisas se entrecruzam e interseccionam, uma questão não é necessariamente mais fundamental que a outra, e o livro se propõe a analisar só uma delas. Mas tem pontos em que tu sente que fica faltando aquele último empurrãozinho teórico, sabe? Fica um argumento meio “o problema não é o capitalismo, é que nós não fazemos ele direito.”

Só que às vezes o capitalismo faz parte do problema também.

Cowboys do Asfalto, de Gustavo Alonso

A questão de pano de fundo é a seguinte: se o ‘povo’ se mostrou politicamente conservador, esteticamente ele quase sempre foi progressista. Esse paradoxo vem sendo constantemente subestimado na maioria dos livros já escritos sobre música popular. Por um lado porque é de difícil (talvez impossível) resolução; por outro porque uma boa parcela das esquerdas e direitas caminhou exatamente no sentido oposto a essa proposta, ou seja, supunha ter um discurso politicamente ‘progressista’, mas esteticamente conservador em diversos pontos.

Do livro Cowboys do Asfalto, sobre a história da música sertaneja.

Aula de História – um Haiku

À sombra de Heródoto,
O saber voa
Em bolinhas de papel.


Sob um céu de blues...

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