China, historiografia, utopia

Pensando outro dia sobre a história da China, enquanto lia uma bibliografia a respeito. É interessante por se tratar de um império que muito cedo desenvolveu uma tradição historiográfica – não simplesmente de registrar a História, mas de rever regularmente os próprios registros anteriores sob uma luz crítica.

Me peguei refletindo muito na tese da sucessão de dinastias. Eu penso às vezes que a gente tem uma certa tendência de “ficcionalizar” a nossa experiência histórica – de buscar dar um sentido pra ela que seja maior e mais significativo do que os fatos sozinhos. As dinastias têm muito disso, certamente, mas me pareceu que de um jeito diferente do nosso ideário cristão-ocidental. O que dá sentido pra elas não um mítico fim último da História, quando todas as pontas se fecharão  e os pecados e dividendos morais serão cobrados. A sucessão de dinastias não acaba.

Toda a dinastia começa com uma turbulência que poderia ser ela própria um romance épico. Os governantes foram corrompidos e perderam o Mandato Divino; a população se ergueu em revolta, e a própria natureza demonstra seu desgosto com desastres. Um líder – que pode ser um nobre previamente leal ao imperador, um invasor estrangeiro, e ocasionalmente já foi até alguém oriundo das camadas populares – surge, angaria seguidores, derruba o último e frágil imperador da dinastia anterior, e funda a nova dinastia. Fim.

Só que não tem fim né? O mar da história é agitado, já dizia o poeta. A sucessão de imperadores vai enfraquecendo o poder que surgiu do conflito, até que ela se torna a dinastia corrompida a ser derrubada e substituída. Ad infinitum.

Eu contrasto isso com a nossa fixação com o “fim da História.” É uma fixação bem cristã – o Apocalipse e redenção final da humanidade – mas que também se irradia pras nossas crenças políticas – o comunismo final, por exemplo. A mais conhecida hoje é a neoliberal do Fukuyma.

Tem estudos sobre como essa ideia de que vivemos num momento definitivo, em que nada mais mudará, foi vendida pós-1989. Eu penso na tese dos regimes de historicidade do François Hartog, por exemplo, e o nosso suposto regime atual voltado para um presente eterno.

(Num pulo mais ousado, eu me pergunto se a nossa própria fixação recente com séries de fantasia pura não tem a ver com isso. Como não projetamos mais nossas utopias e anseios para o futuro, passamos a projetá-las em mundos totalmente alternativos. Mas digrido).

Eu fico pensando nesse contraste principalmente nesses tempos sombrios em que estamos. O quanto de gente que eu vejo falando sobre “não aguentar mais viver em tempos históricos.” Só que a ideia de que podemos viver em um tempo “não-histórico” já é meio ilusória né? A ideia de que a história pode ser parada ou suspensa lembra um pouco esse ideário de que ela pode terminar, também. Nem nas próprias dinastias chinesas isso ocorria, ainda que, por vezes, tentassem vender que sim.

Sem querer diminuir o fato de vivermos em um momento de crise, claro. Mas a história não acontece só nas crises, e a própria noção de que ela é só uma sucessão de crises também é um ideário muito neoliberal construído pra nos conformar a elas.

Pensando num outro ângulo, pensar na história como um fluxo eterno, sem fim, pode parecer um pouco desanimador. De que adianta uma revolução que transforme a sociedade hoje, se amanhã ela vai estar corrompida outra vez? Mas isso também é um pouco um vício nosso justamente por estarmos sempre pensando nos fins, e não nos meios, nos próprios processos em si mesmos. Na verdade, eu acho que essa noção pode ser até um pouco libertadora. Não precisamos nos envergonhar de sermos utópicos e idealistas. A gente sabe que a utopia última é inalcançável; mas isso não invalida cada pequeno avanço que conquistamos.

Sem precisar se preocupar com uma vitória final, com a revolução definitiva que salvará e libertará toda a humanidade, cada pequena vitória no caminho conta muito mais, e cada pequena revolução é uma vitória em si mesma.

Enfim. Apenas pensando alto, sem querer fazer muito sentido.

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Sob um céu de blues...

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