Archive for the 'Resenhas' Category

A Epopéia de Gilgamesh

Acho que dos épicos antigos, o meu preferido é mesmo o de Gilgamesh. Desde que li pela primeira vez, lá no começo da faculdade, me impressiona a forma como um texto tão fora de contexto, tão estranho ao mundo em que vivemos hoje, consegue soar tão universal.

Começa com tema central da narrativa, o medo da morte, que é talvez um dos grandes temas universais da humanidade né? Mas pra além disso, ele tem um senso de tragédia tão bem sublinhado – o herói que busca a imortalidade, mas no fim não a obtém -, e um protagonista redondo, que não é estanque, mas muda, se redime, e cresce ao longo da narrativa.

É claro que seria demais esperar de um épico de seis mil anos de idade a estrutura de um romance psicológico contemporâneo, mas isso sempre me pareceu um diferencial em relação aos Aquiles e Odisseus dos épicos ocidentais, em que todas as mudanças dos personagens passam de um jeito ou de outro pela ação dos deuses. Mas a evolução de Gilgamesh, e o luto por que ele passa após a morte de Enkidu, tem algo de muito mais humano, que não precisa de um agente externo para que você veja acontecendo.

Tem ainda o fato de ser um épico de ação, com monstros e combates, mas que, no fim, tem como clímax uma conversa pacífica, entre um personagem que obteve a bênção que Gilgamesh procura não por feitos de guerra e coragem, mas por engenhosidade e sabedoria ao construir a arca que salvou a humanidade do dilúvio.

A versão acádia da história, que acho que é a mais completa, tem ainda uma estrutura narrativa que podia estar em qualquer história de fantasia moderna. Tem suas idiossincrasias, claro; cadência de versos, trechos que se repetem como um refrão, o que sublinha o fato de ser um texto de tradição oral que foi transcrito. Mas tem também dois blocos narrativos muito bem delimitados, cada um com início, desenvolvimento e desfecho próprios, os acontecimentos de um levando organicamente ao outro.

E tem ainda uma circularidade na história que impressiona. Inicia com o narrador descrevendo a cidade de Uruk, e termina com o próprio Gilgamesh repetindo os mesmos versos do início para o barqueiro dos deuses, depois de voltar da jornada aos confins do mundo.

Todo valor ás Odisseias, Ilíadas, a própria Bíblia. Mas sempre achei que Gilgamesh tinha de fato um algo mais, um diferencial que me faz retornar a ele constantemente.

Ghost of Tsushima e Orientalismo (uma resenha)

Eu sei que vou estar sendo só o professor de História marxista estraga-prazeres chato do rolê, mas eu fico pensando muito como o Ghost of Tsushima passa pano pra questão de classe. Tipo, sei que a gente idealiza e mitifica eles um bocado por filmes e animes, mas os samurai eram a classe dominante. Não tinha nada de muito altruísta na relação deles com o povão. A conversa toda de honra isso e aquilo, além de ser uma invenção muito posterior (da virada do séc XIX/XX), os cavaleiros europeus também tinham.

Então o jogo tenta te vender um papo de “eu sou samurai e estou aqui para protegê-los”, e eu entro na onda porque, bem, é só um jogo né? Eu adoro Kurosawa e também quero me divertir. Mas aquela pulguinha não sai de trás da orelha.

E não é como se o jogo não sugerisse um conflito de classe, e às vezes até parece quase querer sublinhar um… Mas nunca passa da sugestão superficial. A relação Jin/Yuna ilustra isso bem, dá pra enxergar a fanfic de ela ser o povão passando a perna na nobreza, mas ela nunca é posta nesses termos.

O conflito principal do jogo — não o externo contra os mongóis, mas o interno do Jin sacrificando a sua honra em nome desse combate — podia ser fácil colocado nesses termos. Porque uma coisa é tu estar disposto a morrer pela tua honra; mas é honrado sacrificar os outros por ela?

É realmente honrado deixar os outros, em especial pessoas indefesas de classes baixas, morrerem por se negar a violar um código de conduta? Essa questão — que seria um baita conflito dentro dos tropos do gênero — até é sugerida no início, mas fica logo apagada e o motor do enredo vai todo pro pessoal (salvar o tio) e político (terminar a invasão) como justificativa pra tudo, o que tira da ideia de honra a sua dimensão social/política e deixa só o clichê da limitação tática na hora de lutar.

E é claro que eu sei que estou superanalisando e eu não esperava em absoluto que um joguinho de espadinha tivesse esse nível de profundidade crítica. Mas eu fico pensando nisso enquanto jogo, e como algumas das linhas narrativas secundárias, que conta as histórias dos aliados do Jin, me fazem simpatizar muito mais com os supostos vilões do que os samurais honrados que tu em tese está ajudando.

Fiquei pensando ainda em como jogo bate o tempo inteiro na tecla do “para derrotar os mongóis você está se tornando como eles” etc. etc., o que é um conflito que faz sentido quando se coloca internamente no roteiro, mas acaba levantando uma outra questão. O Jin não massacra só mongóis, mas também bandidos e ronin japoneses que encontra pelo caminho. Muitos dos quais, se formos analisar friamente, também só estão tentando sobreviver na terra devastada pelos invasores.

Pegando a caracterização de Batman-clone japonês medieval, eles acabam sem querer entrando na mesma contradição do Batman original: a de que, no fim das contas, ele ainda é pouco mais do que um membro da classe dominante que veste uma roupa apertada pra sair caçando pessoas mais desfavorecidas do que ele.

E no contexto do jogo ainda tem uma outra dimensão disso tudo. Se no fim ele abraça os métodos desonrosos dos mongóis, e usa esses métodos contra a própria população da ilha, o que o torna tão diferente deles? Essa é uma pergunta com resposta, claro: é que ele é japonês.

Tudo bem sermos oprimidos por um membro da classe dominante, desde que seja a classe dominante japonesa. Se forem estrangeiros, aí não! Talvez isso tenha colaborado também pra ele ser tão bem recebido no Japão. Mesmo sendo ocidental, ele se reveste bastante de um verniz patriótico/nacionalista japonês. Até faz um joguete narrativo de questionar a noção de honra e colocar ela como anacrônica (sic), mas acaba se revestindo do mesmo discurso que o bushido e o samurai foram revestidos no começo do século XX, com consequências complicadas.

Outro ponto sobre o jogo foi ter retornado a ele um ano depois, para jogar a expansão, e ter feito isso depois de jogar Sekiro, um jogo japonês de fato e que explora um universo cultural bem parecido. E é muito patente como tudo em Sekiro parece mais autêntico.

Não digo só da representação histórica em si, mas parece que é um jogo com algo a dizer de verdade — ainda que com aquela narrativa mínima e indireta típica do gênero Souls. Mas ainda parece que há uma mensagem verdadeira no subtexto, um comentário sobre a decadência e o envelhecimento subjacente no conflito entre o feudo de Ashina e o Ministro do Interior.

Em Tsushima o centro do conflito é uma exploração de um tropo anacrônico e orientalista, formulado por alguém que não parece entender ele de verdade. Fica um certo vazio de significado concreto, sobra uma moral muito abstrata, que subjaz um sentido que é fácil de ser interpretado de um jeito bem problemático.

Repassando algumas cenas, reforça muito toda a discussão sobre ~honra~ que soa parecida demais com uma crença de superioridade intrínseca do povo japonês sobre o mongol, de um jeito que chega a soar supremacista. Eu peguei inclusive uns comentários que deixam subentendido que os próprios samurais são invasores que “unificaram” a ilha, e um chamado à população a aceitar o domínio samurai como mais “civilizado” que o mongol.

Acho que aí é algo do nosso contexto. Outro dia tinha lido um texto sobre Mass Effect, e a sua narrativa pró-militar e anti-valores democráticos que passava batido quase vinte anos atrás. Mas hoje, no contexto de ressurgência de fascismos no mundo todo, acaba soando bem incômodo.

Volto ao fato de como o jogo foi bem recebido e elogiado no próprio Japão, um país que está longe de ser um farol de progressismo e tem uma história muito problemática com ideais de supremacia racial. Longe de mim fiscalizar o que outros gostam ou não gostam em um produto cultural, mas a empolgação que alguns veículos de mídia demonstraram com o jogo me deixaram um tanto incomodado de verdade, e pensando no que eles estavam enxergando nessa história em específico.

Outro aspecto em que a diferença de olhar é visível é a religião. Ghost of Tsushima tinha uma relação bem complicada com a religiosidade; se era a crença samurai nos kami era bonito e sutil, mas a crença popular no sobrenatural era sempre boba e superstição. Nesse contraste, é muito interessante como Sekiro abraça a própria herança budista.

Mas claro, eu só estou superanalisando a questão toda. Ambos os jogos são divertidos, eu como fã de filmes de ninja e samurai adorei, e Tsushima deve ter sido aquele que eu mais afundei horas em 2020 (em grande medida por quão impressionante visualmente ele é), mas é importante não esquecer que nenhum deles é História. E um pouco de auto-questionamento sobre quais aspectos você está de fato apreciando nunca faz mal a ninguém.

Death Stranding e Violência

Eu gosto de pensar que o Death Stranding soa um pouco como um comentário sobre violência em games / na cultura em geral. Aquele diálogo final do Cliff e Sam soa muito isso — o soldado e herói de guerra falando pro cara cujo trabalho é conectar as pessoas.

Lembro que o Kojima é um cara que fez carreira com uma série militar, e dá pra ver nela própria o quanto ele é atormentado por isso — como desde o MGS 2 todos os soldados tem nome e sobrenome, como tu tem opções de vitória não-letal e é recompensado por usar elas. O MGS 5 talvez seja o que vai mais longe nesse comentário: o jogo todo soa como um mea culpa por nos fazer idolatrar um personagem que, em última instância, é o próprio vilão da série. A virada de tom que ele tem no final, pra quem percebe esse meta-jogo, é muito simbólica e é uma das razões porque eu ainda acho ele fantástico mesmo com todas as questões que ele tem. Aquele meta-jogo de tu pouco a pouco se transformar em um demônio é muito perturbador — e brilhante, em certo sentido.

No DS o discurso é bem mais pungente. Aqui tu é de fato punido quando usa força letal. Mas no final, a mensagem também é bem mais otimista. E ninguém vai me convencer que o Cliff não é o próprio Snake, passando o bastão pro tipo de jogo que o Kojima quer fazer a partir de agora.

Casta – As Origens do Nosso Mal-Estar

Casta — As Origens do Nosso Mal-estar é um livro muito pungente e provocador, propondo uma comparação de três sistemas de segregação (o racismo dos EUA, o nazismo e as castas indianas) e desvelando muito do caráter estrutural que eles assumem, mesmo que não dê diretamente o nome. É uma leitura que compensa. Mas tem também o recorte geográfico, de meio que ignorar o mundo ao sul do Texas, e principalmente o viés liberal que fica um pouco velado nas análises.

Então é um problema causado pela divisão de castas a distorção da lógica meritocrática que impede indivíduos da casta inferior de se destacarem para o benefício de todos. Mas não é problema de um sistema de poder e exploração, hoje capitalista mas que já foi outro, te incentivar a buscar razões, por arbitrárias que sejam, pra manter um grupo sempre subordinado e submisso.

É claro que as duas coisas se entrecruzam e interseccionam, uma questão não é necessariamente mais fundamental que a outra, e o livro se propõe a analisar só uma delas. Mas tem pontos em que tu sente que fica faltando aquele último empurrãozinho teórico, sabe? Fica um argumento meio “o problema não é o capitalismo, é que nós não fazemos ele direito.”

Só que às vezes o capitalismo faz parte do problema também.

A Cidade e A Cidade (Porto Alegre)

Conversando com uns alunes esses dias me peguei pensando em como a mobilidade urbana deles é limitada. Estão sempre se movendo nos mesmos eixos, Vila Nova-Restinga-Bom Jesus, às vezes Cruzeiro, uma vez tive uma aluna que tinha se mudado do Rubem Berta.

São lugares que também nunca aparecem nos meus outros círculos sociais, que quase sempre se movem ali por Cidade Baixa-Bom Fim-Menino Deus, ou às vezes ali no Mont’Serrat-Rio Branco-Bela Vista. É como se fossem duas cidades diferentes entrecortando o mesmo espaço geográfico.

Aí lembrei daquele livro do China Miéville, A Cidade e A Cidade, sobre duas cidades que ocupam o mesmo espaço sem nunca interagir, os habitantes de uma ignorando por completo o que acontece na outra. Sempre encarei como uma metáfora para países divididos, como a Palestina.

Agora me pego pensando que talvez Beszel e Ul Qoma sejam mesmo aqui.

Revolutionary Suicide

Li tempos atrás Revolutionary Suicide, autobiografia do Huey P. Newton, um dos fundadores do Black Panther Party. É intenso. E muito relevante tanto em tempos atuais, onde muito das coisas contra o qual eles se rebelavam continuam presentes e em primeiro plano; como num contexto mais amplo, por revelar um pensador muito crítico, com uma leitura incrível do pensamento marxista-leninista-maoísta atravessada pela experiência de opressão racial.

O BPP deve ser a mais significativa organização marxista-leninista dos EUA pós-Segunda Guerra, e com frequência isso é meio apagado da memória que passa sobre eles pra cá. Imagino se é deliberado? Mas no livro essa influência é muito evidente, e ele é muito enfático a respeito da influência que as Revoluções Cubana e Chinesa, principalmente, tiveram sobre a sua ideologia.

Não é um livro livre de problemas quando colocamos ele em perspectiva, é claro. Acho que o mais problemático até aqui são os comentários dele sobre a homossexualidade dentro da prisão onde ele cumpriu pena. Mas a crítica ao encarceramento em massa segue atual. Transparece uma certa personalidade narcísica também, mas no contexto em que ele estava, isso era muito evidentemente uma forma de resistência — o que fica muito claro na forma altiva e orgulhosa com que ele encarava a opressão policial, tanto dentro como fora da cadeia.

E tem outros pontos que me tocam mais pessoalmente, também. Toda a experiência escolar dele reflete muito o meu trabalho, já que a escola em que dou aula tem algumas características muito parecidas. E o relato de como ele terminou a escola analfabeto, e foi aprender a ler só aos 17 anos, sozinho, usando uma cópia d’A República de Platão do irmão dele, só pra provar pros professores que ele era bom o suficiente pra faculdade; eu vejo tantos alunos das minhas turmas ali. Quantas vezes eu não vi colegas simplesmente desistirem de alunos? “Esse aí não vai aprender nada mesmo”; e é claro que a grande maioria tem uma cor bem específica. Eu sei que eu mesmo já fiz isso também, lá no começo, e me dói olhar pra trás e pensar nisso. É difícil reconhecer que a gente não nasce perfeito, e o aprendizado é vagaroso e nunca está completo.

Me pego pensando também muito nos comentários dele a respeito da religião. O pai dele era pregador, e ele reconhece diversas vezes ao longo do livro a influência que a igreja teve sobre ele. No fim, ele trocou a experiência religiosa pela política, e isso fica evidente na forma como ele idealizava o BPP nos termos de uma comunidade de irmãos, com o senso de pertencimento que os fortaleceria e guiaria; mas o tempo inteiro reconhece e reverencia a forma como a religião cumpre esse papel, e a importância dela em criar um sentimento comunitário.

Essa é uma lição em que muita ~esquerda~ moderna, tão apressada em acusar qualquer tipo de religiosidade como ignorância, podia prestar atenção. É claro que cada contexto é único, e existem idiossincrasias da religião de lá que não são as mesmas de cá, onde o conservadorismo das teologias da prosperidade na periferia é bastante histérico e entra em conflito com as outras realidades religiosas que disputam o mesmo espaço. Mas se não partirmos da religião como um dado, e entendermos o que é, afinal, que as pessoas buscam nela, nunca vamos entender as as dinâmicas complexas que afetam essas realidades.

Mas enfim. Ficou uma resenha longuinha, mas eu só queria guardar alguns pensamentos que tive enquanto lia o livro.


Sob um céu de blues...

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