Eu sei que vou estar sendo só o professor de História marxista estraga-prazeres chato do rolê, mas eu fico pensando muito como o Ghost of Tsushima passa pano pra questão de classe. Tipo, sei que a gente idealiza e mitifica eles um bocado por filmes e animes, mas os samurai eram a classe dominante. Não tinha nada de muito altruísta na relação deles com o povão. A conversa toda de honra isso e aquilo, além de ser uma invenção muito posterior (da virada do séc XIX/XX), os cavaleiros europeus também tinham.
Então o jogo tenta te vender um papo de “eu sou samurai e estou aqui para protegê-los”, e eu entro na onda porque, bem, é só um jogo né? Eu adoro Kurosawa e também quero me divertir. Mas aquela pulguinha não sai de trás da orelha.
E não é como se o jogo não sugerisse um conflito de classe, e às vezes até parece quase querer sublinhar um… Mas nunca passa da sugestão superficial. A relação Jin/Yuna ilustra isso bem, dá pra enxergar a fanfic de ela ser o povão passando a perna na nobreza, mas ela nunca é posta nesses termos.
O conflito principal do jogo — não o externo contra os mongóis, mas o interno do Jin sacrificando a sua honra em nome desse combate — podia ser fácil colocado nesses termos. Porque uma coisa é tu estar disposto a morrer pela tua honra; mas é honrado sacrificar os outros por ela?
É realmente honrado deixar os outros, em especial pessoas indefesas de classes baixas, morrerem por se negar a violar um código de conduta? Essa questão — que seria um baita conflito dentro dos tropos do gênero — até é sugerida no início, mas fica logo apagada e o motor do enredo vai todo pro pessoal (salvar o tio) e político (terminar a invasão) como justificativa pra tudo, o que tira da ideia de honra a sua dimensão social/política e deixa só o clichê da limitação tática na hora de lutar.
E é claro que eu sei que estou superanalisando e eu não esperava em absoluto que um joguinho de espadinha tivesse esse nível de profundidade crítica. Mas eu fico pensando nisso enquanto jogo, e como algumas das linhas narrativas secundárias, que conta as histórias dos aliados do Jin, me fazem simpatizar muito mais com os supostos vilões do que os samurais honrados que tu em tese está ajudando.
Fiquei pensando ainda em como jogo bate o tempo inteiro na tecla do “para derrotar os mongóis você está se tornando como eles” etc. etc., o que é um conflito que faz sentido quando se coloca internamente no roteiro, mas acaba levantando uma outra questão. O Jin não massacra só mongóis, mas também bandidos e ronin japoneses que encontra pelo caminho. Muitos dos quais, se formos analisar friamente, também só estão tentando sobreviver na terra devastada pelos invasores.
Pegando a caracterização de Batman-clone japonês medieval, eles acabam sem querer entrando na mesma contradição do Batman original: a de que, no fim das contas, ele ainda é pouco mais do que um membro da classe dominante que veste uma roupa apertada pra sair caçando pessoas mais desfavorecidas do que ele.
E no contexto do jogo ainda tem uma outra dimensão disso tudo. Se no fim ele abraça os métodos desonrosos dos mongóis, e usa esses métodos contra a própria população da ilha, o que o torna tão diferente deles? Essa é uma pergunta com resposta, claro: é que ele é japonês.
Tudo bem sermos oprimidos por um membro da classe dominante, desde que seja a classe dominante japonesa. Se forem estrangeiros, aí não! Talvez isso tenha colaborado também pra ele ser tão bem recebido no Japão. Mesmo sendo ocidental, ele se reveste bastante de um verniz patriótico/nacionalista japonês. Até faz um joguete narrativo de questionar a noção de honra e colocar ela como anacrônica (sic), mas acaba se revestindo do mesmo discurso que o bushido e o samurai foram revestidos no começo do século XX, com consequências complicadas.
Outro ponto sobre o jogo foi ter retornado a ele um ano depois, para jogar a expansão, e ter feito isso depois de jogar Sekiro, um jogo japonês de fato e que explora um universo cultural bem parecido. E é muito patente como tudo em Sekiro parece mais autêntico.
Não digo só da representação histórica em si, mas parece que é um jogo com algo a dizer de verdade — ainda que com aquela narrativa mínima e indireta típica do gênero Souls. Mas ainda parece que há uma mensagem verdadeira no subtexto, um comentário sobre a decadência e o envelhecimento subjacente no conflito entre o feudo de Ashina e o Ministro do Interior.
Em Tsushima o centro do conflito é uma exploração de um tropo anacrônico e orientalista, formulado por alguém que não parece entender ele de verdade. Fica um certo vazio de significado concreto, sobra uma moral muito abstrata, que subjaz um sentido que é fácil de ser interpretado de um jeito bem problemático.
Repassando algumas cenas, reforça muito toda a discussão sobre ~honra~ que soa parecida demais com uma crença de superioridade intrínseca do povo japonês sobre o mongol, de um jeito que chega a soar supremacista. Eu peguei inclusive uns comentários que deixam subentendido que os próprios samurais são invasores que “unificaram” a ilha, e um chamado à população a aceitar o domínio samurai como mais “civilizado” que o mongol.
Acho que aí é algo do nosso contexto. Outro dia tinha lido um texto sobre Mass Effect, e a sua narrativa pró-militar e anti-valores democráticos que passava batido quase vinte anos atrás. Mas hoje, no contexto de ressurgência de fascismos no mundo todo, acaba soando bem incômodo.
Volto ao fato de como o jogo foi bem recebido e elogiado no próprio Japão, um país que está longe de ser um farol de progressismo e tem uma história muito problemática com ideais de supremacia racial. Longe de mim fiscalizar o que outros gostam ou não gostam em um produto cultural, mas a empolgação que alguns veículos de mídia demonstraram com o jogo me deixaram um tanto incomodado de verdade, e pensando no que eles estavam enxergando nessa história em específico.
Outro aspecto em que a diferença de olhar é visível é a religião. Ghost of Tsushima tinha uma relação bem complicada com a religiosidade; se era a crença samurai nos kami era bonito e sutil, mas a crença popular no sobrenatural era sempre boba e superstição. Nesse contraste, é muito interessante como Sekiro abraça a própria herança budista.
Mas claro, eu só estou superanalisando a questão toda. Ambos os jogos são divertidos, eu como fã de filmes de ninja e samurai adorei, e Tsushima deve ter sido aquele que eu mais afundei horas em 2020 (em grande medida por quão impressionante visualmente ele é), mas é importante não esquecer que nenhum deles é História. E um pouco de auto-questionamento sobre quais aspectos você está de fato apreciando nunca faz mal a ninguém.
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