Posts Tagged 'fantasia urbana'

Estação Perdido

estação perdidoUns anos atrás, o autor britânico China Miéville causou um certo frisson no mundinho da literatura fantástica nacional. Acho que eu mesmo tenho um pouco de culpa no cartório, uma vez que embarquei no hype train, li quase tudo de sua autoria que consegui por as mãos, e divulguei impressões em resenhas numa época em que blogs literários ainda engatinhavam. Em um mundo ainda pré-Game of Thrones, de poucas opções além do seu feijão-com-arroz tolkeniano, ele parecia mesmo diferente de tudo o que tínhamos disponível: linguagem ambiciosa, cenários urbanos decadentes, e uma orientação política progressista e assumidamente marxista, batendo de frente com o conservadorismo mais retrógrado de certos dinossauros do gênero.

Esse hype todo foi um pouco do que pautou o lançamento do seu primeiro romance, Rei Rato, pela hoje finada editora Tarja; mas seriam mais alguns anos antes que ele encontrasse uma casa mais definitiva (e alguns diriam adequada) na Boitempo, entre autores como Slavoj Žižek e Leonardo Padura. O primeiro romance publicado na editora foi A Cidade e A Cidade, pelo qual ganhou o prêmio Hugo de ficção fantástica; e, agora, temos finalmente em português Estação Perdido, provavelmente o seu livro mais conhecido. Acredito que seja uma boa oportunidade, assim, de retornar ao mundo de Bas-Lag, e ver o que você pode encontrar de mais provocante e revolucionário dentro dele.

Estação Perdido (ou Perdido Street Station) é o primeiro livro de uma trilogia, que se completa com The Scar (A Cicatriz?) e Iron Council (Conselho de Ferro? – estou chutando possíveis nomes traduzidos). Eles não contam exatamente uma história contínua, mas cada um possui um enredo fechado com personagens próprios, ainda que haja uma linearidade cronológica e acontecimentos de livros anteriores tenham consequências diretas nos posteriores. Principalmente, no entanto, os três livros dividem o cenário fantástico de Bas-Lag, em especial a metrópole pseudo-vitoriana New Crobuzon, onde se passa toda a ação do primeiro volume.

A verdade é que todo hype passa eventualmente, e gera aquela ressaca em que você se pega perguntando a respeito do que fez durante ele. Olhando hoje, tantos anos depois, penso que Estação Perdido é um livro irremediavelmente datado. É muito próprio do período em que foi escrito, ou ao menos de quando o li pela primeira vez. Tenho uma impressão sobre ele parecida com a que tenho sobre Neuromancer, do William Gibson, também fundador de um gênero: a de que pode-se com certeza reconhecer as suas qualidades e a revolução que causou; mas, quando o seu primeiro contato é com os imitadores, acaba parecendo algo menos do que foi no contexto original.

Há no livro uma ânsia muito evidente de ser uma ruptura, e chocar, às vezes até gratuitamente, o leitor. Falamos de um livro que praticamente abre com uma cena de sexo bastante gráfica entre o protagonista e uma mulher-besouro. Muitas das escolhas de enredos, personagens e ambientação parecem claramente feitas para gerar contraste com clichês e padrões da literatura fantástica mais tradicional – da ambientação urbana e decadente, muito distante da utopia idílica do Condado, até os próprios protagonistas de ocupações um tanto mais mundanas do que os guerreiros, reis e aventureiros que você encontrará num romance de Dragonlance ou Forgotten Realms. Uma das passagens mais comentadas entre os leitores, aliás, é a contratação de um grupo de mercenários exploradores de masmorras pelos protagonistas, e o quanto ele difere da visão que se tem ao ler um cenário de campanha de um jogo de RPG.

Essa ênfase na ruptura, e o seu próprio sucesso em fazê-la, é uma das razões pelas quais ele hoje, quinze anos depois da publicação original, soa um pouco diminuído. Mas isso não quer dizer que o livro simplesmente não seja mais recomendável, muito longe disso. Se tudo o que você conhece de literatura fantástica for Tolkien, George R. R. Martin e produtos relacionados de cenários de RPG – em outras palavras, se as suas próprias referências ainda não passaram do período em que ele foi publicado originalmente -, ele ainda pode acertá-lo como um soco no estômago. Se a sua contestação literária soa um pouco datada, a sua contestação social e política, os seus amores proibidos e revoltas populares, permanecem – e, em tempos como os atuais, temo dizer que não serão diminuídos tão cedo. E acima de tudo, Miéville é um autor com uma imaginação única, capaz de criar cenários, personagens e criaturas que são ao mesmo tempo assustadoras, cativantes e absolutamente fascinantes. Você não vai terminar a leitura sem ter uma impressão muito forte causada pelo monstro-aranha Weaver, o imponente Construct Council, ou os tenebrosos slakemoths.

Olhando em retrospecto, no entanto, tantos anos depois, tenho a impressão mesmo de que Estação Perdido é menos sobre contar uma história, e mais sobre provar um ponto. O verdadeiro astro não parece ser realmente qualquer um dos personagens, mas sim a ambientação, o clima e a própria cidade de New Crobuzon; um pouco como a Terra-Média de Tolkien, transformada aqui em uma megalópole decadente, que os protagonistas devem explorar e viajar de um lado a outro para cumprir a sua missão, e chega mesmo a, como uma entidade dotada de vontade própria, agir e interferir com as suas ações.

Quem conhece a obra posterior do autor sabe que há uma evolução muito clara com o passar dos livros. Mesmo os seguintes ambientados em Bas-Lag me parecem ser mais bem realizados, uma vez que já tinham o terreno preparado pelo anterior. The Scar é um épico fantástico sobre piratas – mas também, e talvez muito mais, sobre política, imperialismo e feminismo. E Iron Council é talvez a verdadeira magnum opus de Miéville, onde a sua visão de uma fantasia concebida por ideais políticos é levada mais longe; é ambiciosa desde a própria linguagem, nos personagens e protagonistas, até a própria trama épica de fantasia revolucionária.

No fim, Estação Perdido talvez chegue sim um pouco tarde, mas há quem argumentará que nunca é tarde para se conhecer uma obra como essa. Se as suas tentativas de ruptura hoje parecem fora de contexto, em grande parte é pelo próprio sucesso que ele teve originalmente. De um jeito ou de outro, China Miéville continua sendo um dos meus autores preferidos, e qualquer lançamento com o seu nome é capaz de me animar e empolgar.

The Sacred Book of the Werewolf

sacred werewolfVictor Pelevin é um dos principais autores russos contemporâneos. Ele se encaixa naquelas correntes pós-modernas e pós-realistas que tem sido bastante prolíficas ultimamente, algo assim como um Haruki Murakami que escreve em cirílico. No caso de Pelevin, muitos dos seus livros se estruturam mesmo como romances de ficção científica e fantasia, com universos e desenvolvimentos dentro dos paradigmas de gênero, e tendo como cenário o ambiente da Rússia urbana moderna, além ainda de um bocado de religiosidade oriental jogada na mistura.

The Sacred Book of the Werewolf é um dos sues livros mais conhecidos. Ele conta a história de A Hu-Li, uma licantropo-raposa chinesa de dois mil anos, praticamente uma versão contemporânea da clássica kitsune do folclore japonês (e me perdoem se eu não conheço o nome chinês para usá-lo aqui no lugar). Trabalhando como uma prostituta de luxo na Moscou contemporânea, ela acaba tendo que entrar em um período de baixa visibilidade após um problema com um cliente. É nesse ínterim que ela conhece Alexander, um lobisomem que é também uma figura importante na indústria petrolífera russa; e é claro que a partir as coisas começam a ficar realmente complicadas para ela.

Se a premissa básica daria um bom suspense sobrenatural, na verdade há pouco de thriller aqui e muito mais de um romance filosófico. A Hu-Li é culta e traz consigo dois milênios de tradições orientais clássicas, e a sua busca pessoal pela iluminação é um tema constante que tanto abre como fecha a história. Há espaço para parábolas e mesmo uma profecia a ser cumprida, enquanto ela e uma irmã trocam confidências espirituais.

Como eu disse anteriormente, Pelevin está mais próximo de uma ficção de gênero propriamente dita do que, digamos, um Murakami. Há uma certa fixação na construção e exposição de cenário, explicando detalhes do funcionamento de poderes sobrenaturais que os protagonistas possuem. O tom é o de uma pseudo-ciência, e eu pessoalmente achei mesmo um tanto gratuito. Isso na verdade diminui os temas maiores do romance, e torna-se às vezes um tanto entediante. Lá pelo meio do romance algumas passagens e diálogos entre os personagens chegam mesmo a se confundir com um romance de costumes, e isso no mau sentido – eles discutem trivialidades e coisas sem importância, com aquele tom de uma novela global.

Outro problema é mais específico, e diz respeito à relação que A Hu-Li estabelecer com seu par Alexander; me perdoem se por acaso acabar entrando em spoilers aqui. O seu primeiro encontro envolve uma certa violência íntima (um estupro, pra não dissimular), que o autor prontamente se põe a justificar de ambos os lados, e a diminuir o seu impacto físico e psicológico sobre a protagonista com toda aquela pseudo-ciência que eu citei no parágrafo anterior. Conforme a trama segue e os dois vão ficando mais próximos, a sombra desse primeiro acontecimento, por mais que seja esquecido por ambos, continua lá, e é difícil que ele não incomode um leitor mais crítico. No fim, tendo isso em mente, e mesmo que ele tente falar de temas mais amplos, é difícil não enxergar o livro todo como uma apologia à síndrome de Estocolmo.

Isso acaba sendo o que realmente marca negativamente o livro, mesmo que no resto ele seja um livro bem escrito e com sua dose de passagens interessantes. Recomendo com ressalvas.

A Morte é Legal

amorteA Morte é Legal é o segundo livro de Jim Anotsu, que, apesar do nome, é um escritor bem brasileiro. Depois da deliciosa, mas broxantemente curta, aventura de Annabel & Sarah, ele nos traz desta vez um romance sobrenatural com ares de épico juvenil, sempre nos encantando com a sua imaginação fértil e referências pop.

A história desta vez é protagonizada por Andrew Webley, um garoto apaixonado e, por isso mesmo, muito ridículo, vivendo na cidadezinha inglesa de Dresbel. As coisas começam a mudar para ele, no entanto, quando conhece uma garota estranha de mechas verdes que lhe faz uma proposta irrecusável, e ele logo descobre ser ninguém menos que Ive, a Princesa do Fim Inevitável, filha mais nova da própria Morte. Paralelamente, seguimos também a história da irmã de Andrew, Amber, e a sua busca pessoal para ganhar credibilidade nas ruas e se tornar a próxima rainha do hip hop.

Mais do que um mero romance sobrenatural, o que esta história apresenta é um conto sobre a maturidade e os sacrifícios que temos que fazer para atingi-la. Ao longo do texto, todos os protagonistas devem eventualmente passar por situações de crise, escolhas difíceis e decisões irreversíveis, do tipo que depois os moldará enquanto adultos. A intensidade com que tais situações são descritas – seja nas discussões de Andrew com o pai, as decepções de Amber com as próprias limitações, mesmo o desespero de Ive para evitar o destino que sua mãe decidiu para ela – é arrebatadora, e pode-se ver a sinceridade do autor escrevendo sobre si próprio por meio de seus personagens.

Há alguns pontos negativos, é claro, mas eu acredito que seja principalmente pela falta de um trabalho de edição mais incisivo. Não digo nem das dúzias de referências literárias e musicais que percorrem o livro – há sim um pouco de quebra de clima quando um dos personagens compara os seus sentimentos com uma música de uma banda obscura da qual você nunca ouviu falar, mas é também parte do jogo que o autor propõe, e do que torna a história tão sincera e cativante. Incomoda mais o fato de que a escrita por vezes parece crua e descuidada, com advérbios sobrando e frases que poderiam ser divididas ou reformuladas; uma revisão cuidadosa e reescrita de algumas passagens não faria mal. Mas o que mais me marcou negativamente mesmo foi a quantidade de simples erros de copidesque mesmo – coisas como artigos repetidos, frases que não terminam, o tipo de coisa que seria o papel de um editor mesmo consertar. Não é a primeira vez que destaco isso em um (bom) livro desta editora, e acho que vale o puxão de orelha para que os próximos lançamentos sejam mais cuidadosos.

Nada disso, no entanto, chega sequer perto de arranhar os méritos que o livro possui. Mesmo com as falhas apontadas, ainda temos um universo surreal delicioso que poderia estar em uma HQ do Neil Gaiman ou livro do Michael Ende, um enredo extremamente envolvente, com personagens e mesmo vilões que cativam e criam empatia com o leitor, e um final de partir o coração. É o tipo de história que dá até pena de ver ser publicada por um autor brasileiro – nada contra autores nacionais em si, mas pelo fato de que seria um verdadeiro pote de ouro nas mãos de um empresário que o vendesse a um estúdio de cinema, que facilmente o transformaria no filme do verão estrelando o Michael Cera ou coisa que o valha. Por aqui, vai precisar de um bocado de sorte para que um Jorge Furtado da vida o encontre e dê a ele o tratamento que a história merece.

Enfim, A Morte é Legal é, sim, um livro muito legal. Leiam, não vão se arrepender.

O Rei Mago

O Rei Mago é, sem firulas, a continuação de Os Magos, livro que eu havia resenhado ainda na edição importada, The Magicians, antes de uma edição nacional ser sequer sonhada. Vale destacar, aliás, a velocidade da editora Amarilys em trazer o livro tão rápido para cá – ele foi lançado em língua inglesa em agosto passado, e no começo deste ano já era possível encontrar a tradução nas lojas! Preferi valorizar o nosso mercado local, assim, e comprar esta versão, ao invés de ter todo o trabalho de importá-lo de terras estrangeiras, por mais que a capa britânica tenha ficado absurdamente mais bonita.

Em todo caso, o livro continua a história de Quentin Coldwater, o nosso misto de Holden Caulfield e Harry Potter preferido, já anos depois de se formar na universidade mágica de Brakebills e ter a sua primeira viagem trágica para o reino encantado de Fillory. Agora, junto com alguns antigos colegas e amigos, ele se tornou um dos quatro reis do local, passando seus dias entre banquetes vistosos, caçadas mágicas e aparições públicas na varanda do seu castelo. Seria um belo de um final feliz para a sua história, não fosse o fato de que ele ainda sente falta de alguma coisa, algo que deixou para trás mas que não consegue exatamente nomear – e será esse sentimento, é claro, que porá tudo a perder, e o forçará a entrar em uma nova jornada de auto-descoberta até os confins do mundo conhecido.

Paralelamente a esta viagem conhecemos a história de Julia, amiga de infância de Quentin e agora também uma rainha de Fillory, que havia sido recusada em Brakebills e teve que descobrir a magia sozinha, pagando um preço altíssimo por ela. Na verdade, aqui ela é muito mais propriamente uma protagonista do que Quentin: aproximadamente metade do livro envolve a sua história pessoal atrás dos segredos arcanos que lhe foram negados no livro anterior, e é através dela que todo o seu cenário e o universo, antes praticamente restritos a Brakebills e Fillory, se desenvolve e expande, tomando ares de uma fantasia urbana que não deve nada a qualquer história do Neil Gaiman.

É também a história de Julia que compreende o lado mais intenso do livro, aquele que nos dá um nó na garganta ao se aproximar do desfecho e nos deixa pensativos por dias a fio. O autor Lev Grossman costuma se basear e fantasiar a sua própria história pessoal, muitas vezes levada na base de consultas psiquiátricas e anti-depressivos, para criar seus personagens, e isso dota eles de uma força e realidade bastante únicas, mesmo quando jogados em um mundo repleto de magia e seres mitológicos. Já falei um pouco sobre estas histórias antes, que ele costuma relatar algumas vezes no seu blog pessoal, e a forma como eu me identifiquei e relacionei com elas. Acho que a melhor descrição que vi sobre o resultado está em alguma resenha que li algum tempos atrás, embora não consiga me lembrar onde: ele é ao mesmo tempo uma homenagem sincera e envolvente às histórias de fantasia clássicas como as Crônicas de Nárnia e Harry Potter, e uma desconstrução extremamente crítica delas e daqueles que as lêem; ao mesmo tempo em que nos encanta com um mundo maravilhoso repleto de fantasia, ele também nos puxa bruscamente de volta à realidade, chutando o escapismo para longe e nos fazendo parar e refletir sobre nós mesmos, raramente de forma elogiosa.

Na soma geral, em todo caso, acho que me envolvi e cativei mais com o primeiro livro do que este. Ele tem o lado positivo de ser mais direto e objetivo na ação, sem se estender por metade do livro em desventuras estudantis; por outro lado, por ter lido o anterior justamente durante o meu período de ressaca pós-formatura, acho que elas ajudaram mesmo que eu me identificasse com os personagens e situações, e tornasse a experiência toda de ler ele um tanto mais intensa. Não sei também até que ponto o fato de eu ter lido uma tradução atrapalhou nisso, mas eu senti o estilo um pouco mais exagerado e cru do que o anterior, nem sempre com frases e parágrafos muito bem aparadas e retinhos. Aliás, se anteriormente eu elogiei a velocidade da editora em lançá-lo, aqui vale um puxão de orelha também: o texto final em português me pareceu um tanto mal revisado, errando, por exemplo, praticamente todos os particípios do verbo pagar, além de algumas frases que alguém com algum conhecimento de inglês consegue facilmente reverter para a língua original e pensar em uma tradução melhor. Não é nada que realmente prejudique a leitura, mas incomoda um pouco, especialmente se pensarmos que são coisas que poderiam ser evitadas com uma ou duas revisões a mais; alguns meses a mais para ter o livro em mãos não me incomodariam nem um pouco para ter um produto melhor acabado.

É interessante destacar também a forma como o livro deixa a a possibilidade aberta para ainda outra continuação, provavelmente fechando uma trilogia (ou até mesmo uma série maior, vai saber). Antes que critiquem, no entanto, é bom deixar claro que a história é perfeitamente autocontida, resolvendo de forma satisfatória todas as tramas e subtramas que ela mesma propõe, com todos os três atos narrativos perfeitamente bem estabelecidos; se você consegue perceber esta abertura, é muito mais por dicas e comentários laterais, deixados entendidos nas entrelinhas, e no final um tanto melancólico que na verdade nos deixa desejando que uma continuação venha, mais do que meramente esperando. Sem contar, é claro, em todos os personagens cativantes que conhecemos ao longo do livro, que passamos às vezes a ver mesmo como amigos pessoais, e que sinceramente gostaríamos de ter a oportunidade de encontrar novamente. Bom, eu gostaria, pelo menos.

Enfim, O Rei Mago é um ótimo livro, uma continuação perfeitamente a altura de um livro tão marcante como foi o primeiro Os Magos para mim. Recomendo ambos enormemente.

Rei Rato

Rei Rato traz de volta um velho conhecido do blog, mas de quem eu não falava fazia algum tempo – o escritor britânico China Miéville. Trata-se, no caso, do seu romance de estréia, e também o primeiro a ser traduzido para o português e lançado no Brasil pela Tarja Editorial, que, dizem os boatos, está trabalhando em uma edição nacional do clássico Perdido Street Station.

O livro conta a história de Saul Garamond, um jovem londrino que um dia é acordado pela polícia para descobrir que o seu pai está morto depois de cair da janela do apartamento. É claro que não foi um simples acidente, e esse é o estopim que o colocará em contato com todo o mundo estranho e fantástico que existe sob as ruas de Londres, bem como lhe revelar detalhes obscuros sobre o seu nascimento e ascendência.

Em alguns aspectos, o cenário e a história lembram bastante Lugar-Nenhum, do Neil Gaiman – ambos lidam, afinal, com universos escondidos sob as ruas londrinas, e a queda de alguém “de cima” até eles. Se Gaiman cria um mundo colorido e cheio de magia, no entanto, Miéville é muito mais duro na sua caracterização, enchendo a sua anti-Londres de sujeira e podridão, e até mesmo fazendo os seus protagonistas se alimentarem dela. Por outro lado, achei o cenário do primeiro muito mais vivo e pulsante, repleto de personagens únicos e ambientes envolventes, o que me levou mesmo mesmo a refletir algumas coisas sobre o nosso próprio mundo; o universo mágico de Miéville, ao contrário, parece mais simples e objetivo, quase um cenário teatral mesmo, apenas um pano de fundo para o seu roteiro se desenvolver. Muito mais viva são as suas descrições da Londres original, e da cultura urbana do drum and bass que permeia a narrativa.

Já no roteiro propriamente dito, Miéville é de fato muito mais eficiente do que o Gaiman. Trata-se de uma história de jornada do herói, auto-descoberta e amadurecimento bastante simples, a bem da verdade, mas muito bem executada. Ela reconta e atualiza um conto de fadas clássico – O Flautista de Hamelin -, trazendo-o para a Londres moderna, recheando-o com drum and bass e transformando-o, em alguns momentos, quase em uma história de super-heróis, ou mesmo em um mangá shonen, desses em que personagens super-poderosos se debatem por sobre os prédios da cidade. Longe de ser uma história juvenil, no entanto, ela é também pesada e forte, sem se furtar de descrever mortes e amputações de forma bastante gráfica, e com um quê de romance policial em alguns momentos.

Considerando o meu conhecimento de obras posteriores do autor, é interessante notar também a sua evolução enquanto escritor. Pode-se ver bem que se trata do seu primeiro romance, pela forma como ele organiza as descrições e o roteiro, e também como tateia um tanto receoso em algumas delas. A sua ideologia política assumida também se faz presente, embora raramente de forma panfletária – apenas a cena final quase me fez rir em voz alta, pelo seu exagero intrínseco.

A tradução de Alexandre Mandarino também merece todos os méritos. Pela apresentação já dá pra perceber que se trata de uma obra difícil – muitas passagens e diálogos são escritos no dialeto cockney, que é falado pela classe trabalhadora em alguns locais de Londres, o que torna uma tradução e adaptação bastante complicadas. O uso de gírias comuns acabou funcionando bem, acho eu, e o resultado é uma leitura fluida e fácil. O uso extensivo de notas de tradução, algo com a qual eu geralmente tenho algumas reservas, também serviu bem pra elucidar as poucas dúvidas que surgiram, e o seu posicionamento no fim dos capítulos não atrapalha o fluxo da narrativa – você pode facilmente ignorá-las por completo se assim quiser.

Enfim, Rei Rato é um livro muito interessante, o livro de estréia de um dos principais e mais premiados autores de fantasia atuais, finalmente publicado em português. Para os que liam o blog e ficavam curiosos a respeito mas não entendem o suficiente de inglês para ir atrás dos originais, essa é a chance de vocês.

Hard-Boiled Wonderland and The End of the World

Existe um certo conflito no mercado literário entre o que se chama de literatura mainstream e a literatura dita de gênero. Diferentemente do que ocorre no mainstream e o underground na música, no entanto, esta não é uma divisão assim tão óbvia e ululante. A definição mais comum é a de que o mainstream seria a literatura da forma, onde o meio de se contar a história e o cuidado no trato com as palavras seria o fundamental; enquanto a literatura de gênero seria, ao contrário, a do conteúdo, do gênero propriamente dito, com foco na história em que se quer contar. Na prática, a divisão acaba sendo mais entre a literatura “séria”, aquela que as pessoas inteligentes e respeitáveis deveriam ler, e o “lixo literário”, digamos assim, com as histórias de fantasia, ficção científica, mistério e todo o resto que as pobres mentes não evoluídas consomem. E como acontece freqüentemente nesses casos, a classificação de uma obra em um ou outro grupo acaba sendo muito mais uma definição arbitrária do que propriamente um indicativo do seu conteúdo ou qualidade de fato.

Vejamos o caso do autor japonês Haruki Murakami, por exemplo. Tecnicamente, é um autor mainstream – é respeitado pela crítica literária, seus livros são recomendados por grandes revistas, e ele já chegou mesmo a ser indicado como um possível ganhador do prêmio Nobel. A maioria dos seus livros, no entanto, inclui diversos elementos fantasiosos, de mistério e outros flertes algo mais do que sutis com o que seria a literatura de gênero. Você vai encontrar lá animais que falam com humanos (e o contrário também, pessoas que falam com animais), prostitutas psíquicas, belas adormecidas… Tudo isso em meio a um ambiente quase realista, urbano, mas com uma aura de sonho pairando sempre sobre os personagens e os enredos. Acho que o seu livro que subverte mais profundamente essa divisão mainstream/gênero, ao menos entre os que eu já li, é Hard-Boiled Wonderland and The End of the World.

A narrativa é dividida em duas historias, Hard-Boiled Wonderland e The End of the World, contadas em capítulos alternados. O protagonista da primeira é um calcutec, uma espécie de programador/criptógrafo que utiliza o inconsciente para criptografar dados e assim protegê-los de hackers, em especial os semiotecs, calcutecs renegados trabalhando para um grupo conhecido como a Factory. No começo do livro ele está a caminho para um serviço pelo qual foi contratado, onde deve proteger os dados de um cientista misterioso realizando experimentos obscuros com redução sonora; e a partir daí, é claro, vai se envolvendo com enredos e conspirações crescentes a cada  capítulo. (Nenhum personagem em ambas as histórias, aliás, possui um nome próprio – o protagonista de cada uma narra os acontecimentos em primeira pessoa, enquanto os demais são referidos pela sua ocupação ou alguma característica marcante: o cientista, a garota de rosa, a bibliotecária, etc).

Já na segunda história o narrador é um recém-chegado à Cidade (ou Town), uma pequena vila cercada por um muro perfeito e intransponível que dizem ser localizada no fim do mundo, cujo mapa contendo os seus principais pontos abre o volume. Para ser aceito pelos seus habitantes ele deve primeiro abrir mão da sua sombra, que só pode viver do lado de fora, e então recebe a função a de ser um dreamreader, responsável por ler os sonhos contidos em um conjunto de crânios de unicórnios guardados na biblioteca local. E aos poucos, na medida em que avançam os capítulos, ele vai também encontrando e tentando desvendar os segredos deste lugar misterioso, bem como o destino a que condenou a sua sombra ao entrar na cidade.

Há uma ligação entre as duas histórias revelada próximo ao final, é claro, mas mesmo assim elas praticamente nunca se cruzam ou influem diretamente uma na outra. É um pouco como estar lendo dois romances simultaneamente, um mais puxado para a ficção científica, quase um cyberpunk não-futurista, e o outro uma fábula fantástica repleta de simbolismos e acontecimentos maravilhosos. E mesmo o primeiro, na verdade, conta ainda com diversos elementos fantásticos puros, de youkais comedores de humanos à própria pesquisa sobre redução sonora, que tem muito mais de imaginação do que propriamente especulação científica. Como acontece com freqüência na obra de Murakami, o foco das histórias está menos na sua conclusão, em buscar um desfecho que pode mesmo parecer inconclusivo e aberto demais, e mais no caminho realizado até lá, em sentir a história mais do que desvendá-la, e acompanhar o desenvolvimento dos personagens e as situações surreais pelas quais eles passam, sempre repletas de citações literárias e musicais.

No fim, Hard-Boiled Wonderland and The End of the World é um livro muito gostoso de se ler, com personagens cativantes e algumas passagens realmente memoráveis, em especial nos capítulos do The End of the World. Talvez alguns se decepcionem com a forma como acaba, um tanto abruptamente, como se deixasse espaço para uma continuação que nunca foi escrita, mas, pessoalmente, não acho que isso seja um defeito – o final em aberto está lá menos para nos deixar ávidos e curiosos e mais porque era, de fato, o fim do que havia para contar, e os mistérios sugeridos mas nunca resolvidos não são realmente tão fundamentais para os personagens. Não posso deixar de recomendar, mesmo que, até onde eu saiba, ainda não tenha sido publicada uma edição em português.


Sob um céu de blues...

Categorias

Arquivos

Estatísticas

  • 235.218 visitas