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A Fantasia Além dos Livros

Então, esse ano eu tive uma oportunidade muito legal, ao ser chamado pelo Christopher Kastensmidt, da Bandeira do Elefante e da Arara, pra substituir de última hora o escritor Max Mallman em um dos painéis da Odisséia de Literatura Fantástica que aconteceu aqui em Porto Alegre no fim de abril. O tema era a fantasia em outras mídias além da literatura, e eu estava acompanhado do escritor Gerson Lodi-Ribeiro, do desenhista e roteirista de quadrinhos Estevão Ribeiro, e do roteirista e diretor de cinema Pedro Zimmerman. Meu papel seria falar principalmente sobre RPG, embora eu tenha preparado um material um pouco maior, falando também sobre duas outras mídias alternativas dos temas fantásticos. Fiz algumas pesquisas e reflexões bacanas, no entanto, e acho que seria interessante resgatar esse material em um textinho simples por aqui.

Pois bem. Como eu falei, apesar de ter preparado coisas para falar sobre outros assuntos, na minha fala eu acabei me reduzindo principalmente à fantasia no RPG. A maioria das pessoas deve saber bem que ele está ligado à literatura fantástica praticamente desde o seu surgimento; os criadores de Dungeons & Dragons, o primeiro e mais conhecido jogo de RPG, eram fãs confessos, e construíram a ambientação dos primeiros jogos com base nos autores que liam. A influência mais conhecida é Tolkien e O Senhor dos Anéis, mas quem conhece pode perceber uma presença bastante forte de elementos vindo de Michael Moorcock, autor das histórias do Elric de Melniboné, e também do Fritz Leiber, das histórias de Lankhmar, entre outros. Lankhmar inclusive chegou a ser adaptado como um cenário oficial do AD&D, muito antes da terceira e quarta edições do jogo que são mais jogadas atualmente.

Isso expõe, acredito, a característica principal do RPG com respeito a outras mídias do gênero fantástico: ele é, principalmente, um apropriador de elementos, mais do que um criador. Quer dizer, pensem na própria forma como ele é jogado: um jogo de grupo, focado na interação entre os participantes. Assim, mais importante do que ser original, é oferecer elementos que os jogadores reconheçam e com o qual tenham vontade de interagir no ambiente de jogo – se os jogadores gostam de piratas, use-se um cenário de piratas; se gostam de elfos, um cenário de elfos; e daí por diante. Isso se expande mesmo para a geração de jogos de terror sobrenatural que esteve muito em voga no fim do século passado, que se apropria de muitos elementos da literatura gótica. Independente de algumas bobagens que se houve por aí, jogar RPG é menos uma atividade individual e reflexiva do que uma atividade social.

Claro, isso não quer dizer também que um RPG não possa ter um papel criador e estar na vanguarda, apenas que é algo pouco comum, e não costuma ser exatamente uma característica dos jogos de maior sucesso. Acho que o melhor exemplo de um RPG na vanguarda das mídias de fantasia é o dieselpunk, termo que foi usado pela primeira vez em um jogo independente pouco conhecido chamado Children of the Sun, de 2002, e que recentemente foi tema de uma coletânea de contos da Editora Draco.

O segundo tema que eu havia preparado para falar no painel, mas acabei cortando da apresentação final, foram os videogames. Acredito que a fantasia nos jogos eletrônicos, pelo menos a dos primeiros anos, esteja ligada principalmente ao público-alvo dos primeiros consoles, que eram, em geral, crianças e pré-adolescentes, que são atraídas pelas cores fortes e brilhantes de jogos como Super Mario Bros. ou Sonic the Hedgehog. Some-se ainda as próprias limitações técnicas, que tornavam um tanto difícil apresentar gráficos mais realistas e sombrios com as limitações de tons de cores e limite de pixels dos modelos. Assim, muitas das suas séries clássicas acabaram tendo um elemento fantástico como característica marcante; foi um longo caminho até que a evolução técnica e do público-alvo permitiu o surgimento de franquias realmente realistas, como Call of Duty e Battlefield. Mesmo a fantasia atualmente adquiriu um tom mais sombrio e anatomicamente cuidadoso, visto em jogos como The Elder Scrolls e Dark Souls, mas ela ainda está bastante presente em jogos da nova geração.

Existem duas séries em especial que também merecem algum destaque devido à sua importância cultural e os intercâmbios realizados com outras mídias. A primeira são os RPGs eletrônicos da franquia Dragon Quest, cujo primeiro jogo foi lançado em 1986. Com um ambiente de fantasia medieval clássica, com forte inspiração do D&D, que havia sido publicado em japonês no ano anterior, a série logo se tornou extremamente popular no Japão, tendo sido por muito tempo a sua franquia de games mais popular. Uma lenda urbana conhecida diz mesmo que uma lei chegou a ser baixada proibindo a sua venda em dias úteis para evitar que os seus fãs faltassem ao emprego ou às aulas para comprar os lançamentos.

Sendo um fenômeno cultural tão grande, Dragon Quest de fato definiu muito do que os japoneses entendem por fantasia, e a influenciou em diversas outras mídias. A principal delas, é claro, são os animes e mangás: muitas séries de fantasia, acredito que a mais conhecida atualmente seja Fairy Tail, além da óbvia inspiração na ambientação, apresentam uma caracterização e técnicas especiais dos personagens que parecem ser feitas sob medida para a progressão matemática que é esperada de um jogo eletrônico. O próprio Dragon Quest chegou a ser adaptado para um mangá e série de animação, exibido no Brasil com o nome de Fly – O Pequeno Guerreiro.

O outro exemplo da influência dos videogames em outras mídias é na cultura zumbi que tem estado em evidência em anos recentes. Ainda que os zumbis certamente não sejam criações dos games, podendo ser resgatados desde os filmes de George Romero, a própria religião vudu e criaturas e monstros de jogos de RPG, existe um paralelismo muito suspeito entre a evolução dessa cultura e os jogos da série Resident Evil. Os dois primeiros lançamentos da franquia foram publicados em 1996 e 1998, e, calculando-se, pode-se facilmente concluir que quem os jogou como adolescentes naquela época hoje se encontram na faixa dos vinte e tantos até os trinta e poucos anos, justamente a que mais se identifica e envolve com histórias de zumbis. Claro que não se pode reduzir toda a popularidade dos zumbis apenas a isso – eu pessoalmente tenho a minha própria interpretação sociológica de bar sobre o tema -, mas é uma coincidência muito evidente para ser simplesmente ignorada.

Por fim, eu havia preparado também algumas linhas sobre a presença de fantasia na música, outra mídia que geralmente é ignorada nos meios interessados por literatura fantástica, mas que apresenta uma relação bastante forte com ela. Para além da óbvia relação com a poesia, ela possui alguns intercâmbios bastante fortes com a literatura como um todo. Pode-se resgatar isso inicialmente, acredito, desde a tradição de óperas dos séculos XVIII e XIX, como A Flauta Mágica ou O Anel de Nibelungos, mas pode-se notar a sua presença com bastante força mesmo em músicas populares mais atuais.

Tolkien, por exemplo, era um autor muito popular em comunidades hippies das décadas de 1960 e 1970, que viam principalmente nos elfos e a sua cultura ligada à natureza como um ideal a ser seguido, ainda que o próprio autor em geral os desprezasse enquanto público. Por isso, não é exatamente difícil de se encontrar referências às suas obras em músicas de bandas da época, sendo o caso mais conhecido, provavelmente, o do Led Zeppelin, que o fazem em músicas como The Battle of Evermore, Over the Hills and far Away e um punhado de outras. Outras bandas que fizeram referências a Tolkien incluem o Black Sabbath e o Rush, e reza a lenda que mesmo os Beatles chegaram a cogitar fazer uma adaptação cinematográfica de O Senhor dos Anéis, tendo o Paul Mccartney interpretando o Frodo e o John Lennon como o Gollum.

Mais recentemente, a literatura fantástica é muito presente em músicas de algumas bandas de estilos mais pesados, como o heavy metal e suas vertentes (em especial o power metal), pelo menos desde a década de 1980. O exemplo mais conhecido é certamente o Blind Guardian, que possui discos inteiros em homenagem a Tolkien e seus personagens, além de Stephen King e outros autores do gênero, e recentemente também produziu algumas músicas inspiradas pela série A Song of Ice and Fire, do George R. R. Martin. Outro autor muito referenciado em bandas pesadas é H. P. Lovecraft e os seus Mitos de Cthulhu; só para ficar na mais conhecida, o Metallica possui uma música chamada The Call of Ktulu.

Três projetos relacionando literatura fantástica e música pesada também são interessantes de destacar. O primeiro é o Avantasia, projeto idealizado por Tobias Sammet, vocalista da banda Edguy, que reúne diversos músicos consagrados do gênero para formar uma espécie de “opera metal“, cujo enredo possui diversos elementos oriundos da literatura fantástica. A principal referência no caso é o ciclo arturiano, presente no próprio nome – “Avantasia” é uma mistura de Ávalon com fantasia. Outro projeto semelhante é o Ayreon, do músico holandês Arjen Anthony Lucassen, que também tentar uma montar uma espécie de opera pesada com temas fantásticos, reunindo artistas renomados do heavy metal e gêneros semelhantes. E Lucassen também é responsável pelo Star One, que tem a mesma premissa, mas desta vez com um enredo inspirado pela ficção científica.

E um último estilo musical com elementos fantásticos que eu gosto de destacar, desta vez já puxando mais para o meu gosto pessoal, é o blues tradicional norte-americano. Para quem não sabe, ele possui a sua origem na música folclórica do sul dos Estados Unidos, e por isso possui muitas canções que se estruturam quase como contos, com direito a personagens, enredos e reviravoltas. Algumas destas músicas incluem fortes elementos do sobrenatural, relacionada principalmente à religião vudu – como as gipsy women, por exemplo, ou bruxas/ciganas; e também o mojo, uma espécie de força sobrenatural. Temos ainda a famosa lenda imortalizada na canção de Robert Johnson, sobre esperar à meia-noite em uma encruzilhada para que o diabo apareça e afine o seu violão, e assim você pode aprender a tocar como os mestres do estilo.

Claro, podemos encarar estas referencias inicialmente como religiosas, e não propriamente fantásticas, uma vez que são baseadas em uma crença verdadeira e que ainda é praticada em alguns lugares. No entanto, é interessante notar como o próprio blues, na medida em que passou a ser ouvido e praticado em outros ambientes fora do seu original, não perdeu a referência a estes elementos, mesmo quando tocados por músicas para quem eles nada significam. Pode-se dizer que ele passou a ser encarado com um viés realmente fantástico, algo como vamos brincar de ser um músico errante do delta do Mississipi.

E este foi o material que eu havia preparado para o painel, apesar de a minha fala realmente acabar reduzida apenas à primeira parte, sobre o RPG. É claro que nada disso é propriamente um estudo muito aprofundado, mas acredito que sejam algumas notas e apontamentos gerais bastante válidos. Um dia, quem sabe, eu me debruço mais longamente sobre um ou outro destes temas.

Z

No começo eram casos isolados, pequenas notas aqui e ali que me intrigaram pela frequência, mas ainda longe de assustar. Soube de um amigo de um amigo que havia sido infectado, eu mesmo cheguei a ver outro com meus próprios olhos, dentro de uma livraria de renome. Mas essas coisas acontecem, você está sujeito a pequenos surtos como estes algumas vezes. Pela minha experiência o melhor a fazer é se proteger em sua casa, armado com uma poltrona confortável e um bule de café, esperando ele passar.

Aos poucos, no entanto, comecei a desconfiar de que desta vez havia algo de diferente. Os seus números aumentavam em progressão geométrica; as vítimas identificadas passaram a ser contadas nas centenas, logo nos milhares. Parecia que para onde quer que eu me virasse havia uma fratura exposta, um pedaço de carne putrefata, um verme saindo dos olhos.

Me isolei em minha casa, fazendo da poltrona a minha armadura e da xícara de café a minha espada. Ao meu redor, meus aliados no exílio, organizados em fileiras e colunas pelas paredes da biblioteca. Minha fortaleza seria impenetrável; nenhum deles se aproximaria.

Como fui ingênuo. Não havia para onde correr, não havia onde se esconder. Um deles já estava mesmo oculto em minhas próprias fileiras, e, antes que pudesse perceber e me esquivar do seu ataque, ele pulou sobre mim com a fúria de um lobo faminto.

Senti uma dor lacerante e intensa enquanto ele me rasgava por dentro, como se me virando do avesso. Suas garras prendiam minha cabeça, e logo ele já se banqueteava com o meu cérebro. Reunindo minhas últimas forças, ainda com ele sobre mim, me arrastei até a mesa da biblioteca, onde peguei uma folha e um lápis e comecei a escrever:

É o fim. Eles estão por toda a parte. O Apocalipse dos livros sobre zumbis enfim chegou até mim.

Jurassic Park IV

velociraptorTivemos sorte, e conseguimos fazer o helicóptero funcionar e usá-lo para fugir da cidade. A infestação havia tomado proporções incontroláveis; não havia mais esperança para os que ficaram para trás. Sobrevoamos as ruínas que restaram da civilização e seguimos em direção ao oceano, cruzando quilômetros de água e ondas. Não tínhamos muito combustível, no entanto, e tive que escolher uma ilha próxima à costa onde poderíamos pousar.

Foi um pouso complicado. O terreno era irregular, e não havia como evitar choques e algum dano aos passageiros. Tive que pilotar no limite da minha capacidade para reduzi-los ao mínimo possível, e garantir ao menos que todos saíssem vivos. Descemos – talvez caímos fosse mais próximo de como aconteceu – em uma espécie de clareira em uma floresta. Saímos todos do veículo e corremos para longe, ajudando os que estavam mais feridos a andar com velocidade. Entramos em meio às árvores pouco antes de ouvir o helicóptero explodir.

Apenas então nos demos o luxo de parar para descansar e recuperar o fôlego. Foi quando percebemos o ambiente à nossa volta, coberto de ossadas e cascas de ovos chocados, ambos grandes demais para pertencerem a qualquer animal que conhecêssemos. Não muito longe vi uma cerca de arame derrubada e o que restou de uma placa de metal, e me dei conta de onde estávamos.

Já tinha ouvido histórias a respeito: uma ilha abandonada, onde, anos atrás, um milionário excêntrico utilizara de ciência avançada para montar um parque exótico, diferente de tudo que já fora feito pelo homem. Um funcionário descontente e um acidente inesperado, no entanto, o forçou a desistir dos seus planos, e deixar para trás o trabalho de uma vida inteira.

Havíamos saído de um pesadelo e ido parar em outro ainda pior.

Não tive tempo de absorver completamente a minha dedução, no entanto, pois logo ouvimos um barulho do meio das matas, e percebemos que não estávamos sozinhos.

– Velociraptors? – perguntei, de um fôlego só.

– Não. – Christine respondeu.

Ela estava certa. O cheiro de podridão os anunciava antes mesmo que entrassem no nosso campo de visão; quando o fizeram, olhamos aterrorizados para a sua carne decomposta, os pedaços das escamas se depreendendo do corpo, os vermes que saíam de suas narinas e entravam pelas cavidades vazias dos seus olhos.

Velociraptors zumbis.

Estávamos condenados.

O Guia de Sobrevivência a Zumbis

Ao contrário do que muitos vão dizer, a escolha de ícones pop raramente tem algo de gratuito ou espontâneo. Se aliens foram tão populares nos Estados Unidos anos 50, por exemplo, isso tem menos a ver com o fato de serem intrinsicamente legais do que com o de a sociedade norte-americana no auge da paranóia da Guerra Fria reconhecer neles uma ameaça plausível, não necessariamente na sua existência, mas certamente na sua caracterização – uma ameaça externa, com tecnologias estranhas, descreveria com perfeição tanto uma invasão alienígena como um ataque soviético. Da mesma forma, se a figura do cowboy heroicizado se espalhou por todo o mundo ocidental, aparecendo de quadrinhos franceses a filmes italianos e até novelas globais, isso tem muito a ver com a idealização da cultura norte-americana logo após a Segunda Guerra Mundial, quando ela se tornou predominante na maior parte do hemisfério. Mesmo a recente popularização do ninja e das artes marciais pode ser relacionada de alguma forma ao “milagre japonês” e o prodígio econômico nipônico nos anos 80, quando todos olhavam para o Japão com algum espanto e inveja. (A exceção, claro, são os dinossauros. Dinossauros são legais, e eu não imagino uma razão plausível para isso.)

Assim, se zumbis (junto com piratas, por razões que devem ser ainda mais claras) são o ícone do momento, eu realmente não consigo ver nisso apenas o fato de eles serem de alguma forma legais para o público contemporâneo. Cronologicamente, talvez se possa traçar este sucesso desde, pelo menos, os videogames da série Resident Evil, se não algum lançamento anterior que eu ignoro, que marcaram a adolescência de muitos dos que hoje fazem a cultura pop; mas há bem mais que explica o seu alcance tão amplo, e o que as pessoas reconhecem inconscientemente ao vê-los e imaginá-los.

O fato é que o zumbi é, talvez, a criatura fantástica que melhor descreve muitas situações contemporâneas, com as quais convivemos e que presenciamos às vezes sem perceber. A imagem de uma horda de mortos-vivos sem cérebro rastejando e destruindo a sociedade como a conhecemos, por exemplo, tem demais em comum com a imagem que muitos fazem das hordas de imigrantes terceiro-mundistas invadindo os Estados Unidos e a Europa, ou mesmo, trazendo para o contexto brasileiro, com os arrastões de favelados que ameaçam a segurança das elites e classes médias – e como não comparar a típica atitude recomendada contra zumbis (mate-os sem remorso) com a defendida por algumas pessoas, inclusive políticos, contra estes grupos? A própria idéia de um ser apático, incapaz de fazer mais do que rastejar e devorar cérebros, lembra de alguma forma a figura do proletário amortecido socialmente pela comunicação de massas, com seus eventos esportivos e programas televisivos.

Em um contexto mais amplo, talvez se possa relacionar ainda a idéia de um inimigo acéfalo, e portanto sem ideologias, que tem como único objetivo a destruição por si mesma, com o relativo vazio de alternativas políticas após o fim da Guerra Fria, quando a queda do muro de Berlim e o desmantalmento da União Soviética fez com alguns chegassem a anunciar o “fim da História”. E mesmo a sua explicação pseudo-científica mais popular, a do vírus experimental, pode ser facilmente associada à paranóia recente da guerra biológica.

Enfim, cortando a digressão, chegamos então a’O Guia de Sobrevivência a Zumbis, de Max Brooks (que, eu descobri recentemente, é filho do grande Mel Brooks), um guia prático sobre como sobreviver a um eventual ataque de hordas mortas-vivas. Em certo sentido, ele serve de prova da presença marcante de zumbis na cultura pop dos anos 2000, ao ponto de poder prescindir de contar uma história para apenas parodiar os guias de sobrevivência a catástrofes naturais. Ao invés de um enredo com início, meio e fim, o que se tem é uma discussão detalhada sobre zumbis, suas origens e as formas de combatê-los, com dicas de equipamentos, métodos de fuga e táticas de defesa e ataque contra inssurreições de necrófilos na sua cidade.

O tom, obviamente, é o da sátira, embora o texto se finja de sério na maior parte do tempo. Há boas sacadas e comentários pontuais sobre a cultura norte-americana, e como ela às vezes parece ter sido orientada desde a origem para lidar com situações deste tipo (e outras vezes nem tanto assim), mas em geral o humor do livro é mais sutil, presente mais na idéia e contexto geral do que em tentativas de fazê-lo rir a cada fim de página com algum escracho genérico qualquer. Isso pode torná-lo um pouco cansativo para alguém que não goste tanto assim dos bichos, mas também faz parte do que o torna tão divertido para os mais aficcionados – os primeiros talvez gostem mais de World War Z, do mesmo autor e ainda não lançado por aqui, uma espécie de seqüência espiritual deste e que conta detalhes da guerra final entre os humanos e os mortos-vivos.

E, é claro, esta é também uma boa aquisição para qualquer jogador de RPG, por todos os detalhes descritivos que podem ser aproveitados em jogos com ambientações modernas. A última parte, inclusive, onde são descritos diversos ataques de zumbis registrados desde a pré-história, pode ser facilmente transformada em um cenário de campanha, além de muitos deles funcionarem como sugestões de aventuras.

Em todo caso, O Guia de Sobrevivência a Zumbis é um livro interessante, divertido, e que qualquer um com algum nível de zumbifilia (ou seria necrofilia?) deve gostar de ler.

Apenas Um Peregrino

Apenas Um Peregrino é uma série criada por Garth Ennis, mais conhecido pela sua obra-prima Preacher, apesar de eu pessoalmente achar essa aqui muito mais legal. Retrata um mundo pós-apocalíptico, após o sol esfriar e aumentar de tamanho, engolindo Mercúrio e Vênus e se aproximando perigosamente da Terra, que se tornou incrivelmente árida e desértica, com oceanos evaporando e terras antigamente férteis desaparecendo. Nesse mundo vive o Peregrino, um andarilho com uma queimadura no rosto em forma de cruz, que, com um rifle na mão, ajuda refugiados desta terra desolada entre uma citação genérica da bíblia e outra.

Quem conhece Preacher ou qualquer outro trabalho de Ennis já sabe bem o que esperar: muita ação, violência e bizarria, rechados de um humor negro, cínico e crítico, do tipo que freqüentemente nos faz pensar porra, eu não acredito que ele fez isso mesmo! Para quem gosta desses elementos – e eu me apresso em me incluir neste grupo – é um prato cheio; há grandes combates épicos, frases de efeito, passagens grotescas, personagens marcantes – a começar pelo próprio Peregrino, com seu jeitão de Clint Eastwood, uma história cruel e chocante revelada em detalhes no primeiro volume, e táticas cínicas e niilistas de alcançar seus objetivos. Tudo muito bem apoiado pela arte de Carlos Ezquerra, que constrói de forma perfeita o ambiente de faroeste pós-apocalíptico, com vastas regiões desoladas e ruínas ameaçadoras.

O segundo volume, intitulado O Jardim do Éden, também já foi lançado por aqui. É legal também, adicionando zumbis à mistureba toda e com um final um pouco mais definitivo. No entanto, o roteiro, apesar do final-surpresa, é um pouco repetitivo para quem já leu a primeira história, seguindo exatamente os mesmos passos de desenvolvimento e evolução. Mas é uma ótima HQ mesmo assim, especialmente em conjunto com a primeira, ainda que possa ser lido de forma independente, apesar de eu recomendar começar pelo primeiro volume mesmo para quem quiser conhecer o personagem.

De qualquer forma, os dois volumes reunidos formam uma uma ótima obra, com um ótimo cenário e personagens. Constantemente me vejo com vontade de ler as histórias de novo, e elas sempre me deixam com vontade de jogar RPG.

Orgulho e Preconceito e Zumbis

Orgulho e Preconceito e Zumbis conta a história de Elizabeth Bennet, jovem e inteligente filha de um pequeno proprietário rural na Inglaterra do começo do século XIX, enquanto ela se vê envolvida com as tramas e intrigas matrimoniais próprias do seu meio social. Tudo seria mais fácil, é claro, se ela também não tivesse que lidar com uma misteriosa praga que se abateu sobre o país, fazendo com que os corpos dos mortos se levantem dos túmulos e rastejem pelos campos atrás de cérebros frescos.

Como deve ficar bem claro já pelo nome, o livro é uma brincadeira com o clássico Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, um daqueles romances de costumes formadores da literatura inglesa e leitura obrigatória de segundo grau, uma espécie de José de Alencar ou Machado de Assis anglo-saxão. Basicamente, ele reconta toda a história original, com a ambientação de época, crítica aos costumes e tramas sociais, porém adicionando algumas cenas e elementos novos que mudam completamente o seu significado, geralmente envolvendo zumbis, canibalismo e artes marciais. O resultado final fez tanto sucesso lá fora que já foi transformado em história em quadrinhos e tem uma apdação para cinema em produção, além de ter gerado uma pequena onda de mashups literários, com novos lançamentos como Sense and Sensibility and Sea Monsters e Abraham Lincoln, Vampire Hunter ainda saindo com alguma freqüência.

Mais do que apenas a obra de Austen, no entanto, o livro faz uma sátira de toda essa literatura academicista, que transforma histórias muitas vezes surgidas de folhetins populares em complexos trabalhos de erudição e construção intelectual, ao mesmo tempo em que desdenha de outras justamente por serem populares e best-sellers. Pode-se ver isso na ironia das sinopses, como a da orelha do livro, que destaca como ele transforma uma obra-prima da literatura mundial em algo que você terá vontade de ler; em todos os absurdos criados pelo pastiche, com os personagens muitas vezes mais preocupados em manter a etiqueta e a formalidade do que lidar com o apocalipse à sua volta, o que é muito bem retratado nas ilustrações de recatadas damas inglesas abatendo hordas de mortos-vivos com golpes de kung-fu; e também na própria edição e formato, que não deixa de incluir até um conjunto de questões para debate, perguntando sobre os simbolismos envolvidos nos ataques de zumbis ou o significado do vômito em algumas cenas.

Há quem questione a validade da idéia, no entanto. Mais de 80% do texto, ao que parece, se mantém exatamente igual ao original, o que não representa um problema jurídico, já que ele possui quase duzentos anos e, assim, pertence ao domínio público, mas pode-se perguntar sobre o valor ético de ganhar royalties e direitos de adaptação sobre um trabalho assim. Por outro lado, há de se destacar também que o interessante no livro é justamente os novos 20%, que o tornam atraente para um público que não leria a versão original de outra forma e pode até ficar um pouco entediado com o pedaço considerável de romance de costumes que se manteve – gente como eu, pra resumir.

Em todo caso, esse é o tipo de discussão que só faz sentido de um ponto de vista editorial/acadêmico/crítico, e dificilmente chegará ao Leitor Comum, aquele que só quer um livrinho divertido pra ler no fim de semana. Para ele, basta saber que tem zumbis. E ninjas. E mestres Shaolin. E intrigas amorosas da aristocracia inglesa no início do século XIX.

Droga, como poderia ser ruim?


Sob um céu de blues...

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