Um homem destemido percorre uma floresta misteriosa. Após muito andar, finalmente encontra o que procurava: uma árvore ancestral, mais antiga do que tudo ali em volta. Ele finca a sua arma nela; segundo se conta, isso lhe dará poderes sobrenaturais. E ele logo tem a chance de testá-los, uma vez que seus inimigos, os senhores daquela mata, o encontram, prendem e escalpelam ali mesmo, deixando-o para morrer. Mas ele não morre.
Essa cena poderia estar em qualquer romance épico de fantasia sobre elfos e árvores místicas. Mas trata-se apenas da abertura do primeiro capítulo de Renascer, novela exibida no horário nobre das oito horas da noite pela Rede Globo em 1993. Muitas vezes se ignora, mas há uma longa tradição de fantasia nas telenovelas brasileiras: você vai encontrá-la em Saramandaia (de preferência a original, mas o recente remake insosso também vale), Roque Santeiro, Pedra Sobre Pedra, e outras que marcaram o horário nobre na televisão nacional.
Faz já algum tempo, no entanto, que essa característica da nossa dramaturgia tem minguado. Talvez desde O Clone não tenhamos tido uma novela desse horário com elementos fantásticos marcantes; e mesmo naquela era uma ferramenta narrativa secundária, e a própria novela é mais lembrada pela representação capenga da cultura muçulmana do Marrocos do que pela ficção científica. Se você quer algum sobrenatural, o máximo que conseguirá será o recorrente apelo ao espiritismo que se vê em algumas novelas dos horários menos nobres das seis e sete horas – mas, claro, ai de quem chamar religião de fantasia…
Recorro a esse fato pois quero formular a partir dele uma hipótese sobre a fantasia na cultura brasileira. O fantástico, o sobrenatural, está profundamente ligado à nossa cultura popular. É a cultura das simpatias e do sincretismo religioso; da moça que faz oferenda a Iemanjá no fim do ano mas não deixa de frequentar a missa todo domingo. E é uma cultura capaz de aceitar como verossímil, e se encantar com, um demônio numa garrafa que traz fortuna e tragédia para quem o possui; uma árvore nascida do corpo de um homem amado pelas mulheres, e cujos frutos as dão orgasmos; ou um homem atraído (literalmente) pela lua cheia.
Não é exatamente uma coincidência que, ao se afastar desses elementos, as telenovelas também tenham se afastado desse elemento popular. Quantas novelas do horário das oito tivemos recentemente sobre a vida em Copacabana, os dramas amorosos das mulheres brancas ricas e sua aparente falta de necessidade de trabalhar, com o popular e a diversidade relegado, quando muito, a um “núcleo pobre” de onde vêm as suas empregadas domésticas? E quantas delas incluíram algum elemento fantástico nos seus enredos?
Isso é relevante, porque espelha o que acontece nos círculos mais “cultos” ligados à literatura e outras mídias. O realismo que é o sério e o culto, onde se faz as críticas sociais e não se mascara os problemas das pessoas; a fantasia é a crendice boba do povo não instruído, o escapismo daqueles que não são capazes de encarar a realidade. Mesmo um autor consagrado como Jorge Amado, ao flertar com o fantástico e trazer o popular para a frente da sua literatura, é visto com certa reserva, e acaba lembrado mais como um “autor de novelas” – ainda que ele próprio seja muito mais crítico e analítico nas suas histórias com elementos fantásticos e personagens maiores que a vida do que muitos daqueles que se dizem realistas.
Enquanto isso, no ambiente internacional, a América Latina como um todo é reconhecida como a origem de um rótulo literário original, o realismo mágico – e é curioso, aliás, que mesmo lá fora seja necessário chamá-la de realismo para dar alguma respeitabilidade à fantasia, como se fantasiar e flertar com o irreal não pudesse servir, em última instância, para intensificar a nossa relação com a própria realidade. Tanto se questionou sobre por que esse gênero, tão prolífico entre mexicanos, colombianos e argentinos, não teve tanta proeminência na literatura brasileira. Eu enxergo aí mais um reflexo dessa mesma questão: para os literatos nacionais, é necessário ser realista, ser cru e objetivo, ser o “grande romancista americano,” para se legitimar; a fantasia, ora, é coisa de telenovelas populares. E assim acaba que são os autores delas, os Dias Gomes e Beneditos Ruy Barbosas, os nossos verdadeiros Juan Rulfos e Gabriel García Marquez, que fizeram, no seu auge criativo, da teledramaturgia a nossa forma ficcional mais inventiva e consolidada frente ao público.
E quando as telenovelas abandonaram esse fantástico e abraçaram o realismo, abandonaram também essa tradição, buscando, no fundo, aquela mesma legitimação dos literatos cultos. Queriam, ahem, “qualificar” o seu público, sair do campo da cultura popular e das massas e se elitizar. Que isso facilite a publicidade e traga mais receitas para a emissora, claro, é apenas uma consequência.
Enfim, queria apenas levantar essa hipótese: a de que a fantasia, no fundo, e em especial no Brasil, é necessariamente mais inclusiva do que o realismo. Afinal, se a realidade é a exclusão, quem pode nos culpar por preferir fantasiar? Penso, agora, em dois livros, ambos estrangeiros, que li recentemente, e como eles se utilizam da fantasia para dar voz a ignorados e excluídos: em Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, a imigrantes indianos na Inglaterra contemporânea; e em Wizard of the Crow, de Ngũgĩ wa Thiong’o, talvez com ainda mais força e veemência (sério, leiam esse livro), a uma nação africana fictícia que espelha outras muito reais. E penso então como isso se reflete nas próprias telenovelas citadas, que frequentemente, usando a fantasia como desculpa, resgatavam regiões e populações periféricas, interioranas e de maneira geral ignoradas pelos centros urbanos nacionais. (E não é curioso que talvez o nosso maior épico regional – o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa – também possa ser lido a partir da ótica da fantasia?)
Pensando nesse caminho, de repente consigo entender melhor porque o fantástico, o “maior que a vida” e o surreal, sempre me pareceram mais interessantes do que meramente realismo acadêmico, tanto na hora de ler como de escrever meus rascunhos sem ambição aqui do blog.
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