Arquivo para fevereiro \29\-03:00 2016

Fantasia e Cultura Popular

jequitibáUm homem destemido percorre uma floresta misteriosa. Após muito andar, finalmente encontra o que procurava: uma árvore ancestral, mais antiga do que tudo ali em volta. Ele finca a sua arma nela; segundo se conta, isso lhe dará poderes sobrenaturais. E ele logo tem a chance de testá-los, uma vez que seus inimigos, os senhores daquela mata, o encontram, prendem e escalpelam ali mesmo, deixando-o para morrer. Mas ele não morre.

Essa cena poderia estar em qualquer romance épico de fantasia sobre elfos e árvores místicas. Mas trata-se apenas da abertura do primeiro capítulo de Renascer, novela exibida no horário nobre das oito horas da noite pela Rede Globo em 1993. Muitas vezes se ignora, mas há uma longa tradição de fantasia nas telenovelas brasileiras: você vai encontrá-la em Saramandaia (de preferência a original, mas o recente remake insosso também vale), Roque Santeiro, Pedra Sobre Pedra, e outras que marcaram o horário nobre na televisão nacional.

Faz já algum tempo, no entanto, que essa característica da nossa dramaturgia tem minguado. Talvez desde O Clone não tenhamos tido uma novela desse horário com elementos fantásticos marcantes; e mesmo naquela era uma ferramenta narrativa secundária, e a própria novela é mais lembrada pela representação capenga da cultura muçulmana do Marrocos do que pela ficção científica. Se você quer algum sobrenatural, o máximo que conseguirá será o recorrente apelo ao espiritismo que se vê em algumas novelas dos horários menos nobres das seis e sete horas – mas, claro, ai de quem chamar religião de fantasia…

Recorro a esse fato pois quero formular a partir dele uma hipótese sobre a fantasia na cultura brasileira. O fantástico, o sobrenatural, está profundamente ligado à nossa cultura popular. É a cultura das simpatias e do sincretismo religioso; da moça que faz oferenda a Iemanjá no fim do ano mas não deixa de frequentar a missa todo domingo. E é uma cultura capaz de aceitar como verossímil, e se encantar com, um demônio numa garrafa que traz fortuna e tragédia para quem o possui; uma árvore nascida do corpo de um homem amado pelas mulheres, e cujos frutos as dão orgasmos; ou um homem atraído (literalmente) pela lua cheia.

Não é exatamente uma coincidência que, ao se afastar desses elementos, as telenovelas também tenham se afastado desse elemento popular. Quantas novelas do horário das oito tivemos recentemente sobre a vida em Copacabana, os dramas amorosos das mulheres brancas ricas e sua aparente falta de necessidade de trabalhar, com o popular e a diversidade relegado, quando muito, a um “núcleo pobre” de onde vêm as suas empregadas domésticas? E quantas delas incluíram algum elemento fantástico nos seus enredos?

Isso é relevante, porque espelha o que acontece nos círculos mais “cultos” ligados à literatura e outras mídias. O realismo que é o sério e o culto, onde se faz as críticas sociais e não se mascara os problemas das pessoas; a fantasia é a crendice boba do povo não instruído, o escapismo daqueles que não são capazes de encarar a realidade. Mesmo um autor consagrado como Jorge Amado, ao flertar com o fantástico e trazer o popular para a frente da sua literatura, é visto com certa reserva, e acaba lembrado mais como um “autor de novelas” – ainda que ele próprio seja muito mais crítico e analítico nas suas histórias com elementos fantásticos e personagens maiores que a vida do que muitos daqueles que se dizem realistas.

Enquanto isso, no ambiente internacional, a América Latina como um todo é reconhecida como a origem de um rótulo literário original, o realismo mágico – e é curioso, aliás, que mesmo lá fora seja necessário chamá-la de realismo para dar alguma respeitabilidade à fantasia, como se fantasiar e flertar com o irreal não pudesse servir, em última instância, para intensificar a nossa relação com a própria realidade. Tanto se questionou sobre por que esse gênero, tão prolífico entre mexicanos, colombianos e argentinos, não teve tanta proeminência na literatura brasileira. Eu enxergo aí mais um reflexo dessa mesma questão: para os literatos nacionais, é necessário ser realista, ser cru e objetivo, ser o “grande romancista americano,” para se legitimar; a fantasia, ora, é coisa de telenovelas populares. E assim acaba que são os autores delas, os Dias Gomes e Beneditos Ruy Barbosas, os nossos verdadeiros Juan Rulfos e Gabriel García Marquez, que fizeram, no seu auge criativo, da teledramaturgia a nossa forma ficcional mais inventiva e consolidada frente ao público.

E quando as telenovelas abandonaram esse fantástico e abraçaram o realismo, abandonaram também essa tradição, buscando, no fundo, aquela mesma legitimação dos literatos cultos. Queriam, ahem, “qualificar” o seu público, sair do campo da cultura popular e das massas e se elitizar. Que isso facilite a publicidade e traga mais receitas para a emissora, claro, é apenas uma consequência.

Enfim, queria apenas levantar essa hipótese: a de que a fantasia, no fundo, e em especial no Brasil, é necessariamente mais inclusiva do que o realismo. Afinal, se a realidade é a exclusão, quem pode nos culpar por preferir fantasiar? Penso, agora, em dois livros, ambos estrangeiros, que li recentemente, e como eles se utilizam da fantasia para dar voz a ignorados e excluídos: em Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, a imigrantes indianos na Inglaterra contemporânea; e em Wizard of the Crow, de Ngũgĩ wa Thiong’o, talvez com ainda mais força e veemência (sério, leiam esse livro), a uma nação africana fictícia que espelha outras muito reais. E penso então como isso se reflete nas próprias telenovelas citadas, que frequentemente, usando a fantasia como desculpa, resgatavam regiões e populações periféricas, interioranas e de maneira geral ignoradas pelos centros urbanos nacionais. (E não é curioso que talvez o nosso maior épico regional – o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa – também possa ser lido a partir da ótica da fantasia?)

Pensando nesse caminho, de repente consigo entender melhor porque o fantástico, o “maior que a vida” e o surreal, sempre me pareceram mais interessantes do que meramente realismo acadêmico, tanto na hora de ler como de escrever meus rascunhos sem ambição aqui do blog.

Ensaio Sobre o Desânimo

Acho que lembro bem do último evento de anime que fui. Um amigo tinha recebido espaço da organização pra divulgar um fanzine de RPG, e eu era parte do “staff” dele; talvez já nem tivesse ido não fosse por isso, já que fazia um bom tempo tinha desanimado de pagar ingresso e pegar fila. O fato é que foi durante ele que eu tive um daqueles momentos de epifania, em que nossas vidas mudam de uma hora pra outra. Você sabe, tipo aquele meme da internet.

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Você olha para os lados se perguntando, “o que eu tô fazendo aqui?” Não era o único cara de vinte e poucos anos lá, mas claramente era parte de uma minoria. Muitos adolescentes, gente quatro, cinco, seis anos mais jovem que eu; muitos cosplays e tudo mais. De repente, comecei a pensar como era quando eu mesmo comecei a me interessar por esse tipo de coisa. Eu comprava fitas de animes legendados em fansubbers. Devia ser o único cara que gostava de animes na minha turma de colégio. Mangás? Era uma coisa quase mítica, salvo um eventual Lobo Solitário ou Akira encontrado num sebo.

A verdade é que, olhando ao redor, eu não sentia raiva de ninguém lá, dessa “juventude perdida” ou qualquer coisa assim. Pelo contrário – sentia inveja. Assistir animes, jogar videogames, consumir nerdices quase sempre havia sido uma atividade solitária para mim, um momento de introspecção. Tive meus amigos com quem joguei Magic: the Gathering e RPG, mas boa parte deles já tinha abandonado essa vida – havia talvez dois ou três com quem eu ainda dividia essas atividades eventualmente, se tanto. E agora via aqueles adolescentes em bandos se divertindo, interagindo, namorando. O tipo de experiência que eu não tinha conseguido ter na idade deles (sim, eu era o seu típico nerd virjão aos quinze anos).

A impressão que eu tinha era de ter me adiantado ao zeitgeist. Tivesse sido só alguns anos mais jovem, poderia estar aproveitando o evento como eles.

Esse mesmo tipo de isolamento, de se sentir alheio a tudo, me perseguiu por quase toda a vida. Acho que desde que tomei consciência de mim mesmo tenho sido uma pessoa melancólica. Lembro de já ter falado disso aqui antes, não? De como tenho a impressão de viver na Era da Depressão. (Que nome pra um volume apócrifo do Hobsbawn, hein). Outro dia, uns meses atrás, tirei uma foto com colegas de faculdade, e, na legenda, ao darem um adjetivo para cada um, me descreveram como “melancolia;” é engraçado, pois me lembro claramente de estar tentando sorrir. E juro por Marc Bloch que, cada vez que me pedem para sorrir, em pelo menos dois terços das vezes eu já estou sorrindo.

Tenho pensado muito nesse tipo de coisa recentemente, ao me deparar com esses extremismos de Facebook. Cada vez que um parente anuncia apoio ao Bolsonaro ou ao MBL; cada vez que um ex-colega de escola defende que bandido tem mais é que apanhar; cada vez que descontam como “opinião” a análise de especialistas com quarenta anos de carreira acadêmica (afinal, é tudo ideologia mesmo)… Acabo voltando a esses pensamentos. Já passei muito do estágio da negação, da irritação, do enfrentamento. Cada vez que olho um deles, hoje em dia, a única coisa que consigo sentir é desânimo.

Tenho uma esperança sincera de que as coisas melhorem eventualmente; de que racismos, machismos, classismos se resolvam e deixem de existir, ou pelo menos diminuam gradualmente. Da minha forma, do alto dessa melancolia e desânimo que minam boa parte da minha proatividade, tenho tentado ajudar – sei que tento, eu mesmo, ser uma pessoa melhor, menos preconceituosa, mais consciente e crítica dos meus próprios privilégios. Talvez nem sempre consiga, mas pelo menos sempre tento.

Ao mesmo tempo, no entanto, me sinto desanimado de viver num mundo em que esse estágio ainda não tenha sido atingido. Às vezes sinto que, de novo, estou me adiantando demais ao zeitgeist.

R. I. P.

Se queres transformar-te num homem de letras, e, quem sabe um dia, escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás que fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas.

– Umberto Eco (1932-2016), Baudolino.

Glasshouse

glasshouseÉ curioso como um livro pode não causar um impacto muito grande em você logo após ser lido, mas acabar retornando em algum momento posterior e causar uma pequena explosão de ideias. Você o termina e pensa que não é grande coisa, mas então semanas, meses ou anos depois ele subitamente retorna ao seu pensamento, e de repente você se dá conta de que ele tinha um significado muito maior do que você percebeu inicialmente.

Glasshouse foi o primeiro livro do autor inglês Charles Stross que li, anos atrás, antes mesmo de Accelerando (seu livro mais conhecido) ou The Atrocity Archives. Na época, talvez por ter menos referências a seu respeito, achei uma ficção científica curiosa e instigante, mas acho que não consegui realmente entendê-lo na sua totalidade. Foi preciso algum tempo de maturação das minhas próprias ideias para que a sua história retornasse à minha memória, e eu pudesse entender o quão provocante ela é realmente.

O enredo se passa no século XXVII, muito depois da humanidade atingir a singularidade – alguns leitores defendem que ele divide o mesmo universo com Accelerando, mas trata-se na verdade de uma obra independente, que retoma muito dos temas daquela sem referi-la diretamente. A base da sociedade é uma extrapolação da tecnologia da informação, que transforma os próprios corpos humanos em pouco mais além de bits e bytes; você pode até mesmo fazer uma gravação de todas as informações contidas no seu corpo e então recriá-lo no caso de uma morte acidental, como se fosse um save point de um jogo eletrônico.

Outra consequência desta tecnologia é que é possível fazer alterações no próprio corpo alterando as suas linhas de código, recebendo habilidades únicas, membros extras ou o que mais você quiser. Talvez este seja o elemento que torne o livro mais provocante, e extremamente atual em vista de debates recentes da nossa sociedade: o seu próprio gênero, aqui, é apenas uma linha de código, que pode ser alterada livremente de acordo com a vontade do usuário. O protagonista, que abre o livro no gênero masculino, em um determinado momento muda-se para uma mulher para participar de um experimento social em uma estação espacial, e passa a maior parte do livro desta forma; e o mesmo acontece com outros personagens importantes.

Isso é posto em um forte contraste com a sociedade puritana norte-americana da década de 1950, cuja recriação é o objetivo do referido experimento social. É um período tratado como uma “idade das trevas” pelos personagens, não só pelas suas características intrínsecas, que o transformam rapidamente em um panóptico de pesadelo e dão ao enredo a sua característica de thriller literário, mas também porque poucos registros confiáveis a seu respeito sobreviveram – o que ecoa, aliás, certas entrevistas recentes de especialistas sobre a perenidade nem sempre lembrada de arquivos digitais. Claro, trata-se de um livro já com dez anos, então talvez algumas das respostas a que chegam neste debate pareçam datadas e não muito satisfatórias; mas em última instância, acredito que ainda valha mais pelas perguntas que faz e as ideias que provoca.

E talvez essa seja mesmo a principal função da (boa) ficção científica – não necessariamente encontrar as melhores respostas, mas pelo menos fazer as melhores perguntas. Trata-se, em todo caso, de um livro bastante instigante e provocador, como me acostumei a encontrar nos outros trabalhos do autor que li depois.


Sob um céu de blues...

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