Arquivo para abril \29\-03:00 2009

Chapeuzinho Vermelho

Era uma vez uma linda menina de olhos verdes e cabelos dourados encaracolados, que morava em uma casa no campo, longe da cidade grande, junto com a mãe. Chapeuzinho Vermelho é como era conhecida, pois gostava de usar um manto com capuz vermelho quando saía a caminhar saltitante pelas redondezas.

Um dia, a mãe de Chapeuzinho Vermelho pediu para a filha levar uma cesta de doces até a avó, cuja casa ficava após um grande bosque. A menina pegou a cesta, vestiu o velho manto vermelho, e foi feliz visitar a vovózinha, de quem gostava muito. No meio do caminho, no entanto, encontrou um velho lobo.

– Olá, menina! O que fazes por aqui? – perguntou o lobo.

– Uau! Um lobo falante! – respondeu, surpresa, Chapeuzinho Vermelho, que nunca tinha visto um lobo que falasse antes.

– Er… Ehm… Ahh… Au! Au! – respondeu o lobo.

Um pouco confusa, Chapeuzinho seguiu o caminho até a casa da avó. Chegando lá, entregou os doces, e ganhou como recompensa um delicioso pedaço de torta de chocolate. Voltou antes de escurecer.

E todos viveram felizes para sempre, exceto o lobo, que foi encontrado morto alguns dias depois em uma armadilha colocada por caçadores, e virou um lindo tapete comprado pela mãe de Chapeuzinho Vermelho para colocar na porta de entrada da casa.

The New Weird

the-new-weird-ann-and-jeff-vandermeerA new weird é como é chamado um subgênero recente da literatura fantástica que tem tido um certo destaque nos mercados de língua inglesa na última década, comparado por alguns críticos ao cyberpunk dos anos 80, como se estivesse acontecendo hoje na fantasia a revolução que houve então na ficção científica. Claro que todo novo rótulo acaba sendo um pouco polêmico e questionável, ainda mais na new weird, que em primeiro lugar já nem é mais tão new assim, e ainda parte da premissa justamente de não reconhecer as barreiras entre gêneros e subgêneros; tem muito a ver com a mania dos editores de língua inglesa, norte-americanos principalmente, de encontrar um nicho para tudo, e com a necessidade dos autores de encontrar espaço em um mercado assim. Por outro lado, como destaca o organizador Jeff VanderMeer, ele próprio um autor identificado com o movimento, no prefácio desta coletânea sobre o tema, essa classificação passa a ter uma certa relevância quando se nota que muitos dos principais prêmios de literatura fantástica dos últimos anos foram entregues a autores de alguma forma identificados com ela.

E o que é a new weird, então? Fundamentalmente, é os autores de fantasia, horror e ficção científica tomando as rédeas das suas próprias criações, se recusando a seguir fórmulas prontas ou linhas editoriais ao escrever suas obras; eles não querem copiar Tolkien ou Asimov, não querem escrever sobre cavaleiros nobres enfrentando dragões nem robôs em crise existencial, muito menos sobre guerras intergaláticas ou buscas épicas por artefatos ancestrais capazes de salvar o mundo – querem, muito mais, voltar aos tempos seminais da revista Weird Tales, onde foram publicados nomes como H. P. Lovectaft e Robert E. Howard, quando tais distinções ainda não estavam tão enraizadas. A partir daí, no entanto, toda definição acaba ficando um pouco arbitrária, embora haja alguns elementos comuns que sejam marcantes, como: o cuidado técnico com a linguagem, maior do que é comum na literatura de massas; uma ênfase nos ambientes urbanos, diferente do ambiente rural típico das histórias de fantasia; o uso de uma estética grotesca e bizarra como forma de chocar e surpreender o leitor; o uso de analogias e metáforas para falar, a partir da fantasia, do nosso próprio mundo; e uma certa predileção por transpor barreiras de gênero, misturando fantasia, ficção científica, horror e outros rótulos como se tudo fosse a mesma coisa. Estas, ao menos, são as características que mais me chamaram a atenção ao ler os contos desta coletânea, ainda que nenhuma delas possa ser considerada como canônica e imutável – afinal, um gênero que parte da premissa de não seguir fórmulas prontas fica meio sem sentido no momento em que ele próprio se torna uma fórmula.

O livro é dividido em quatro partes. A primeira, chamada Stimuli, traz contos de autores anteriores à new weird que de alguma forma influenciaram os principais nomes do movimento, e é onde estão alguns dos melhores momentos da coletânea. Destaque para In the Hills, In the Cities, de Clive Barker, com uma bizarra competição entre duas cidades, facilmente a história que mais me impressionou em todo o livro (se algum conto neste livro merece a alcunha de weird, certamente é este); e Crossing Into Cambodia, do Michael Moorcock, uma releitura de O Coração das Trevas passada na terceira guerra mundial, claramente inspirada por Apocalipse Now. The Braining of Mother Lamprey, de Simon D. Ings, é outro bom momento, uma viagem de fantasia urbana caótica, com algumas das passagens mais bizarras e divertidas que eu já li em histórias fantásticas; bem como The Neglected Garden, de Kathe Koja, uma história de suspense bizarro à lá Stephen King.

A segunda parte, Evidence, é onde encontramos os autores identificados com a new weird propriamente ditos. Em geral, no entanto, não achei esta parte tão interessante quanto a anterior – há alguns bons momentos, principalmente nas histórias com monstros espantosos e bizarros, mas ela sofre um pouco daquele mal de coletâneas: as histórias são curtas demais para você se envolver o bastante com elas, e algumas são ainda longas demais para passar apenas por leitura de banheiro. Outro problema é que alguns dos contos são na verdade excertos de obras maiores, de forma que você fica bastante perdido sobre o que está acontecendo. Há alguns bons destaques, no entanto: Jack, de China Miéville, revisita o seu cenário tradicional de Bas-Lag para contar a história do maior herói da mertrópole New Crobuzon – é uma história interessante, que questiona o próprio papel de heróis em uma sociedade, mas não achei ela tão instigante e envolvente quanto os romances do autor; Watson’s Boy, de Brian Evenson, lembra aqueles contos e mundos labirínticos do Jorge Luís Borges; At Reparata, de Jeffrey Ford, apesar do ambiente medieval mais tradicional, tem personagens criativos, um monstro legal e uma história envolvente e cativante; The Ride From the Gabbleratchet, de Steph Swainston, mesmo sendo um excerto sem começo nem fim, vale pelos monstros e paisagens fantásticas; e The Gutter See the Light That Never Shines, de Alistair Rennie, apresenta uma cidade fantástica repleta de psicopatas bizarros.

A terceira parte, Symposium, é a mais decepcionante. A premissa era a de ter alguns autores e críticos comentando sobre a new weird, o que ela é e os seus elementos mais marcantes; na prática, no entanto, a maioria dos artigos acaba se estendendo demais em questionar e responder até que ponto vale a pena criar um rótulo novo e por que aderir a ele, repetindo os mesmos argumentos que já aparecem no texto que abre este pedaço do livro, este sim bastante interessante e relevante, uma transcrição editada das discussões entre autores no forum Third Alternative que levaram à criação do termo (e que podem ser lidas na íntegra, em inglês, aqui). A exceção fica para o ótimo texto de Darja Malcom-Clarke, Tracking Phantoms, que fala sobre alguns dos elementos que se tornaram identificados com o gênero, especialmente a estética do grotesco e a mistura de gêneros.

Por fim, fecha o livro o Laboratory, com a história Festival Lives, um experimento coletivo em que um grupo de autores de fantasia tradicional foram chamados a escrever em turnos uma história a partir do que eles entendiam como new weird. O resultado é interessante, embora sofra um pouco de falta de foco – cada escritor seguiu por um caminho diferente as idéias apresentadas pelos anteriores, adicionando elementos e personagens novos e avançando o enredo de forma indireta ao invés de linear. É um pouco estranho de acompanhar, mas no fim até que é uma leitura interessante, especialmente para quem gosta de cidades fantásticas e criaturas bizarras.

Em geral, The New Weird é um livro interessante para quem gosta de literatura fantástica e quer descobrir que é possível ser original e autoral dentro do gênero, fugindo daquela mesmice dos clones tolkenianos. Como toda coletânea de vários autores, é mais um ponto de partida do que de chegada, mas é um ótimo ponto de partida – eu, pelo menos, ganhei uma boa quantidade de autores para procurar assim que o dólar voltar a um patamar razoável. A grande decepção mesmo é perceber que um movimento literário tão prolífico lá fora não demonstra qualquer eco em terras tupiniquins, onde nenhuma obra associada foi lançada e poucos se propõem a escrever a partir das idéias que eles apresentam. Fica aí a bronca para as editoras nacionais.

O Silêncio

Com calma, cuidadoso, o viajante conferiu a regulagem da roupa de proteção. Em meio à vastidão silenciosa que o cercava, um único erro poderia ser fatal; sem problemas aparentes, seguiu atrás do guia, flutuando pelo vácuo sonoro. A profunda imensidão daquela ausência de som era melancolicamente poética. Milhares de anos-béis havia em todas as direções antes que se pudesse sentir o menor sinal de uma onda sonora viajando pelo espaço.

O guia parou subitamente, e fez um sinal para dobrarem. O viajante tentou segui-lo, usando de toda a destreza possível no desajeitado traje de sononauta, mas um rasgo se abriu na roupa, deixando-o desprotegido contra a fluxo de som que fugiu para a região. Sentiu o grito correndo pelo corpo, subindo em direção à garganta, fazendo os lábios tremerem com a sua aproximação; a face se contorceu, desesperada – bastavam mais alguns segundos e não seria possível segurá-lo.

Mas o guia se aproximou, tapando o buraco com a mão e logo fechando-o com uma mordaça adesiva. O viajante suspirou aliviado, e seguiu adiante na viagem guiada por aquele infinito silencioso.

Hegemonia: O Herdeiro de Basten

11016110Uma das coisas que eu considero mais curiosas dos hoje míticos anos 80 foi a profusão de desenhos animados que misturavam quase sem pudor temas de ficção científica e fantasia. Não digo que fosse então uma mistura nova – autores como Jack Vance já faziam isso com pelo menos uma década de antecedência, séries mais antigas como Os Herculóides e Galaxy Trio também, e acho que dá pra remontar ela ainda desde as histórias do Flash Gordon publicada em jornais nos anos 30, se não antes, numa época em que FC e fantasia ainda não eram gêneros tão canônicos e divididos a ponto de intimidar quem quisesse cruzá-los -, mas não deixo de achar interessante a forma como eles se expandiram como praga naquela década, de He-Man e os Mestres do Universo a Thundercats e Silverhawks. É um chute longo, mas imagino que tenha algo a ver com o mega-sucesso do primeiro Guerra nas Estrelas ainda no fim dos anos 70, que também promovia uma fusão semelhante, tanto que ainda hoje há quem se recuse a considerar a saga de George Lucas propriamente como uma ficção científica.

Corte de vinte anos, então, e chegamos a Hegemonia: O Herdeiro de Basten, de Clinton Davisson, que, apesar do nome, é brasileiro. Também ele investe numa mistura semelhante, colocando dragões cuspidores de fogo ao lado cruzadores espaciais, e guerreiros espadachins vestindo armaduras ultra-tecnológicas. É difícil ler as descrições das diferentes civilizações do planeta Elôh, dos soberanos de Basten às cidades dos frânios e as vilas dos gelfos, e não pensar de alguma forma em Eternia, com seus reis, rainhas e príncipes medievais desfilando em tanques e naves e portando armas de raios. E eu digo isso no bom sentido, é claro, como alguém que cresceu vendo estas séries animadas – não consigo ler uma história assim sem sentir um certo gostinho de nostalgia na boca -, e tem um gosto assumido pelo pastiche.

A forma como se dá essa fusão é bastante interessante, extrapolando aquela máxima do Arthur C. Clarke segundo a qual toda tecnologia suficientemente avançada é indistingüível de magia. A tecnologia da Hegemonia, o vasto império galáctico governado pela raça dos disonianos, certamente é assim, capaz feitos notáveis como a esfera de Dison, uma espécie de casco construído em volta da estrela da capital do império de forma a maximizar a captação da sua energia; as macronaves, embarcações espaciais com quilômetros de comprimento e poder de fogo suficiente para destruir planetas e estrelas; e as dermas, as avançadas armaduras de bio-tecido usadas pelos disonianos, que conseguem ter mais funções disponíveis que um celular moderno. Todo o cenário do livro, aliás, é repleto de idéias interessantes que extrapolam conceitos científicos de forma imaginativa, como o anel incandescente em torno de Elôh, que o mantém em um dia eterno e causa diversas anomalias gravitacionais, ou as diversas espécies de criaturas fantásticas, das superlativas gulitemas às sereias merfolks.

Mas é claro que o livro não se resume apenas a uma abordagem fantástica da ficção científica. O autor também se propõe a discutir de maneira crítica diversas questões sociais mais sérias, que são evidenciadas já nas duas páginas de epígrafes que abrem a obra, citando trechos de Gramsci, Morin e McLuhan entre alguns autores de ficção. A Hegemonia é descrita como um império vasto e avançado, mas também decadente, e as contradições e divisões internas são expostas constantemente ao protagonista, que reflete e divaga a respeito. Outro tema constante é a comunicação, e especialmente a falta dela, geralmente com conseqüências catastróficas.

O grande problema de O Herdeiro do Basten é a narrativa. O livro é escrito como um diário neural, um aplicativo embutido na armadura do protagonista Ron Schwolen, príncipe do reino provinciano de Basten enviado à capital Dison como estudante, a partir da qual ele grava seus pensamentos e reflexões em tempo real. Até há alguns pontos bem positivos nessa narração em primeira pessoa e no tempo presente, como uma espécie de fluxo de consciência; é interessante acompanhar o choque entre a sua formação racionalista e “Dison-cêntrica”, por assim dizer, e a realidade que ele encontra ao retornar à terra natal após algumas decepções pessoais, que o leva a questionar suas convicções e visão de mundo. No entanto, também não deixa de ser um pouco estranho imaginar alguém que consiga pensar de forma tão analítica e articulada em meio a momentos tensos como uma discussão acalorada com o irmão ou um combate contra um exército de dragões; qualquer um que já tenha se envolvido em situações semelhantes sabe que as coisas não funcionam dessa forma, e, por mais que seja óbvio que foi uma necessidade narrativa, não deixa de soar um pouco artificial da mesma forma. Não ajuda muito também a linguagem utilizada, especialmente nos diálogos, que parecem ter um sotaque lusitano com seus “vou estar a fazer”, e colabora bastante pra essa impressão de artificialidade que eu tive em muitos momentos.

O enredo também dá uma derrapada no final, quando precisa acelerar alguns acontecimentos para concluir a história e apresentar algumas soluções que parecem meio sacadas de última hora, mas em geral consegue ser bastante interessante e bem encadeado, apresentando a típica jornada de exploração do mundo das histórias de alta fantasia e romances planetários, junto com a jornada individual de amadurecimento e auto-conhecimento do protagonista, algo bem Joseph Campbell. E há, por fim, dois apêndices que fecham o livro, com um pequeno glossário de termos da Hegemonia e um mini-dicionário da língua dos dragões. O primeiro, talvez, poderia ser mais completo; muitos elementos interessantes que aparecem no livro e poderiam ser aprofundados não estão lá, enquanto outros termos e explicações parecem não ter tanta relevância para a história contida no volume. E o segundo vale mais por curiosidade mesmo, já que não possui muita utilidade além de ajudar a desvendar uma referência escondida a Star Wars.

De maneira geral, Hegemonia: O Herdeiro de Basten é uma obra bastante interessante e criativa, e que eu gostei de ter lido. Alguns problemas mais formais impedem que eu a recomende com veemência, mas acho que merece uma lida, não só para valorizar todo o esforço que é necessário para uma obra nacional de gênero ser publicada, mas também porque há, sim, bastante a se gostar nela. E, talvez o mais importante, ela consegue despertar a curiosidade para o mundo de Hegemonia, deixando boas possibilidades de desenvolvimento em aberto para os volumes seguintes, já que o projeto do autor, conforme destacado na orelha do livro, é de estendê-la em duas trilogias.

Blues Blues Blues

jimmyrogers-bluesbluesbluesfrontÀs vezes algumas pessoas têm tendência em considerar o blues uma música um tanto simplória demais. Não culpo elas: é de fato uma música simples, feita por pessoas simples, em geral sem uma educação musical formal, com uma série de fórmulas típicas e manjadas; grosso modo e nas devidas proporções, dá até pra dizer que é uma espécie de funk dos anos 40 e 50. No entanto, é justamente essa música simples e manjada que está nas raízes do rock e todas as suas vertentes, e, assim, de todo o paradigma da música popular ocidental na segunda metade do século XX.

A questão que alguns parecem ignorar é que é justamente essa simplicidade a maior virtude do estilo – é uma música fácil de tocar, basta ter algum suingue e ritmo na batida das cordas, e que tem resultados mais ou menos garantidos uma vez que se entenda essa simplicidade; Eric Hobsbawn já destacava, no seu clássico livro sobre a história do jazz, que a escala tradicional de blues é essencialmente expressionista, e não vejo onde discordar. Quem toca blues não está interessado em explorar todas as expressões das tonalidades musicais, nem em fazer experimentos eruditos, nem em ir atrás de novas formas de fruição estética ou elevação intelectual; está interessado apenas em tocar, livre e espontaneamente. Qualquer um que entenda do estilo vai dizer que um bom blues não se toca com as mãos, mas com a alma; à parte pela pseudo-religiosidade, não é uma afirmação de todo exagerada. O importante, e a graça no estilo, não está em encontrar todas as notas no lugar certo, num arranjo perfeitinho e bem acabado, mesmo que cuidadosamente dissontante – está em encontrar as notas lá, do jeito que estão, como simplesmente saíram na hora em que os músicos se reuniram para tocar.

Por isso, não é incomum encontrar em discos de blues as mesmas e mesmas músicas, por vezes até tocadas pelos mesmos artistas. Uma música que é marcante na carreira de um músico pode ficar completamente diferente nas mãos de outro, ou até nas do mesmo em um momento diferente; dificilmente duas gravações serão rigorosamente iguais, nota por nota. Há espaços demais para a expressão pessoal, para esticar o bend em um solo, ou adicionar um slide onde havia um hammer-on, ou abafar as notas de um acorde de base, ou usar um timbre diferente de guitarra, ou qualquer outra possibilidade; é quando está sem essa expressividade que o blues realmente fica um tanto simplório, com melodias e harmonias comuns e manjadas.

O que nos leva, então, a esse Blues Blues Blues, do lendário guitarrista Jimmy Rogers, que fez parte da formação clássica da banda de Muddy Watters, reunido com um grupo bastante seleto de estrelas admiradoras. É um álbum marcante por uma série de razões – por exemplo, por ser o último gravado pelo guitarrista, completado pouco tempo depois da sua morte; ou então por todas as estrelas reunidas, de Eric Clapton a Robert Plant & Jimmy Page a Mick Jagger & Keith Richards a um punhado de outros; ou apenas pelo repertório de clássicos escolhidos, como Blow Wind Blow, Everyday I Have the Blues, Sweet Home Chicago, Worried Life Blues e outros tantos. Enfim, uma grande festa de blues, onde todos se divertem e fazem o que gostam mais do que qualquer outra coisa. Quem não vê graça no estilo dificilmente vai achar qualquer graça no disco; felizmente, no entanto, o meu caso é o extremo oposto.

O Grande Globalizador

3396965440_67acdc2a84O mundo, como qualquer um que não esteja vivendo os últimos meses em uma cápsula de proteção contra um holocausto de zumbis sabe, está em um período de crise. Os pessimistas dizem que é o apocalipse definitivo do capitalismo internacional, enquanto os otimistas dizem que é só a pior crise econômica desde 1929. É o momento de olhar para trás e lavar a roupa suja, apontando os erros de política econômica internacional nos últimos vinte, trinta ou mesmo oitenta anos, e criticando e demonizando abertamente o neo-pós-novo-ultra-power-liberalismo, o crédito virtual, a especulação financeira, a globalização da economia, o comércio livre, a Alca, o FMI, a direção do Grêmio, o técnico da Seleção, etc, etc, etc.

E é, também, o momento de parar por um instante, e refletir e questionar outros elementos do mundo em que vivemos. Pois a mesma globalização que transforma uma crise local em mundial em poucos dias afetou também a nossa cultura em dúzias de outras formas. Hoje, você pode conversar com um amigo virtual indonésio sobre um videogame japonês que os dois conhecem e jogaram, criticar uma nova banda alemã por plagiar os grandes nomes do rock inglês, ou mesmo ler as regras da última sensação do RPG norte-americano enquanto come um Big Mac no centro de uma cidade brasileira. Você pode estar em Tóquio ou em Berlim, e estranhamente se sentir no mesmo local; talvez visite uma loja de histórias em quadrinhos na primeira e os restos de um muro pichado em outra, mas ainda assim verá os mesmos prédios de concreto e vidro, o mesmo asfalto escuro, os mesmos carros em cores neutras, as mesmas multidões sóbrias andando apressadas de um lado para o outro. O mundo globalizado é, em certo sentido, o mundo uniformizado.

Há um elemento, no entanto, que supera todos os outros pelo seu poder uniformizador. O grande globalizador, afinal, não é o McDonald’s ou a Coca-Cola, nem o Tom Hanks ou o Naruto; o maior de todos os globalizadores é um só: o catchup.

Sim, o catchup, este molho de peixes de origem oriental que, no início do século XIX, passou a ser feito com tomates nos Estados Unidos, e hoje é onipresente na cozinha ocidental. Esqueça o símbolo e o seu alcance internacional, no entanto; o seu poder globalizador vai mesmo além deles, e atinge a sua própria função prática enquanto condimento. A comida, afinal, é como a cultura – possui dezenas de sabores e gostos diferentes, é mais rica na diversidade, e é mesmo capaz de se misturar para dar origem a novas e impensáveis possibilidades gastronômicas. Você não vai à África atrás de retiros espirituais, nem à Índia para ver girafas e leões; da mesma forma, não come chocolate quando quer um salgado, e nem um cachorro quente na sobremesa.

No entanto, coloca catchup para tirar o gosto forte de calabresa no salgado que comprou na padaria, e enche dele até as bordas o cachorro quente que comprou na barraquinha da esquina. Você pode ir a qualquer restaurante no mundo e colocar catchup na comida, e assim uniformiza os sabores e destrói a sua individualidade, tirando-lhes o direito de serem únicos e jogando-os todos no mesmo paladar global. E então já não importa se é uma pizza portuguesa ou mussarela, ou se pediu um xis-bacon ou xis-galinha: você está saboreando, efetivamente, o catchup.

Pense bem, portanto, na próxima vez que for colocar catchup na sua porção de batatas fritas. Não é apenas um ato culinário, como pode parecer em um primeiro momento; é um ato político, e não deve ser feito levianamente.


Sob um céu de blues...

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