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Shinzo Abe e o Japão Pop

Pensando um pouco no caso do Shinzo Abe, ex-primeiro-minustro japonês assassinado ano passado. Eu sei que eu venho de um contexto e geração em que tudo de lá é visto como “óóó Japão” pois animes e videogame, mas ele é justamente um exemplo de como não dá pra fazer isso acriticamente. Por trás de cosplay de Mário ele sempre foi, sem meias palavras, um fascista, quase literalmente. O Japão nunca foi uma nação inocente.

O que eu me peguei pensando, no entanto, é como muito dessa idealização que a minha geração faz do Japão vem, na verdade, de um tipo de contracultura. As obras que fizeram o “Japão pop” não eram exatamente de mainstream. E isso vem desde o Kurosawa — por toda associação que a gente faz dele com filme de samurai (vide Ghost of Tsushima), tem poucos samurais de fato na obra dele; os personagens de dramas históricos que ele escrevia eram andarilhos, camponeses, salteadores, com uma ênfase muito grande no conflito de classe.

Aí vamos para o Miyazaki — outro autor de obras que nunca esconderam um subtexto político, da crítica à industrialização em Mononoke e Nausicaa até a metáfora da prostituição infantil em Chihiro. O Yoshiyuki Tomino fez a carreira inteira fazendo uma crítica antibelicista em forma de anime de robô. Então vem toda a geração de animes cyberpunk de Akira até Ghost in the Shell — e a ascensão de um gênero tão intrinsicamente anticapitalista justamente na década em que o desenvolvimento econômico do Japão mais impressionava e assustava o mundo diz muita coisa. E vai chegar até lá o Hideaki Anno, que era protegido do Miyazaki, e também fez uma obra subversiva e questionadora ao seu próprio modo.

Até Final Fantasy, pra falar da minha hiper-fixação pessoal, pode se enquadrar nisso, e os jogos mais conhecidos que fizeram a fama da série não escondiam as mensagens anti-belicista (FF4), anti-imperialista (FF6), anti-capitalista (FF7), anti-aristocrática (FFTactics), até anti-clerical (FF10). Um dos choques do Final Fantasy XV pra mim foi justamente me dar conta do quanto ele destoava desse conteúdo dos jogos que me encantaram na juventude, e no lugar fazia uma apologia da monarquia com direito até a um resgate do direito divino dos reis.

O livro do Matt Alt sobre a história da cultura pop japonesa, Pure Invention, tem um capítulo ótimo que explora esse tema, como essa relação vem desde quando o mangá Ashita no Joe servia de referência para os movimentos estudantis da década de 1960. A tese dele é que muitos desses estudantes com o currículo manchado pela participação em protestos contra o governo, tiveram dificuldade em encontrar espaço em empregos tradicionais e acabaram desembocando nessa indústria mais marginal que eram os animes, e foi isso que levou à explosão de criatividade do meio no fim dos anos 1970, os 1980 e a primeira metade dos 1990.

Se a tese procede me faltam os meios pra avaliar. Mas acho que ela expressa bem como essa cultura marginal vai acabar se conectando, no ocidente, com pessoas que se sentiam deslocadas e isoladas socialmente, que é como eram os fãs de anime na minha geração. E é também o ponto de desconexão que vai acontecer quando alguns começarem a olhar para o país de onde elas vinham acriticamente, e não entenderem que as obras que admiravam estavam justamente criticando aquela sociedade.

Remember Me

Remember_MeEu tenho a impressão hoje em dia de que todos os jogos atuais se perdem no paradigma do “mundo aberto.” É difícil encontrar algum grande lançamento que funcione de forma muito diferente – GTA, Elder Scrolls, até Assassin’s Creed… Não que isso seja ruim, claro; é um modelo eficiente, e que, quando bem feito, garante uma experiência vasta e diversificada de jogo. Mas no fim acaba fazendo com que todos os jogos também fiquem muito parecidos entre si, detalhes de jogabilidade e temas centrais à parte. Quer dizer, mesmo um jogo excelente e único como Red Dead Redemption ficou conhecido entre jogadores como o “GTA no velho oeste”…

Remember Me é diferente, embora nem sempre de forma positiva. Em um primeiro momento, o que ele parece mesmo é um retorno aos tempos áureos dos jogos de plataforma, embora redesenhado para a geração atual de consoles. Ao invés de correr e pular obstáculos da esquerda para a direita em um cenário 2D, a protagonista deve fazer isso com suas técnicas de parkour pela Neo-Paris do fim do século XXI, apresentada em gráficos muito bonitos e detalhados; mas o desenho das fases, na maior parte do tempo grandes linhas retas com eventuais desvios fechados para esconder uns power-ups safados, bem que poderia estar em um, com direito mesmo ao chefão de fase tradicional em cada uma delas.

Isso acaba tirando um pouco da graça de ter um cenário tão bonito e colorido, uma vez que você nunca chega a poder explorá-lo direito entre os corredores estreitos aos quais está confinado. Você apenas corre de um ponto a outro, pulando em marquises, canos e janelas, e vendo de relance eventuais pontos turísticos obrigatórios como o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel. Frequentemente, é claro, você será atacado por inimigos, e terá que combatê-los usando um sistema de combos pré-determinados até divertido e original, mas que deixa um tanto de saudade de um combate mais livre e aprofundado como o de um Devil May Cry ou Bayonetta.

Mas claro, pra quem passou a infância toda correndo de um lado a outro da tela isso também não é um problema, e é até um pouco nostálgico. Remember Me é um jogo objetivo e direto, sem muitos desvios, e isso não é necessariamente ruim; é o tipo de jogo que você completa em uma ou duas tardes, e depois se concentra em repetir seus melhores momentos para adquirir todos os troféus e descobrir todos os seus segredos e power-ups escondidos. Apenas o fato de ser um jogo moderno, sem arcaísmos como vidas limitadas e continues, acaba tirando um pouco da graça do gênero – quando calcular um pulo errado é apenas uma incomodação, e não realmente uma perda significativa, ter que repetir ele até acertar acaba virando um enfado mais do que um desafio.

Para valorizar essa objetividade, o jogo conta ainda com uma história de ficção científica bem interessante, ainda que um tanto exagerada algumas vezes. Estamos no fim do século XXI, como já mencionei, em uma versão distópica de Paris, onde uma companhia chamada Memorize domina a população através de uma ferramenta de armazenamento, cópia e mesmo edição de memórias. Possui um trauma passado que o impede de ser feliz? Não há problema – basta apagá-lo ou modificá-lo e tudo estará resolvido! É nesse mundo que você assume o papel de Nilin, uma memory hunter, especialista em roubar e modificar lembranças de outros, que começa o jogo sem a própria memória e deve ir episódio a episódio em busca do seu passado misterioso.

O tema das memórias e traumas é bastante presente, mesmo na jogabilidade. Alguns dos momentos mais interessantes do jogo acontecem quando você invade a mente de certos personagens e deve explorar as suas memórias atrás de pequenos bugs, como um cinto de segurança ou a trava de segurança de um revólver soltos, para então alterá-las e fazê-los se sentirem culpados ou se voltarem contra uns contra os outros. Em outros momentos você deve usar memórias roubadas para passar por câmeras de segurança, descobrir senhas e outros truques semelhantes. O resultado em geral são quebras-cabeças bem inteligentes, mas que infelizmente não acontecem tantas vezes quanto poderiam.

No final, Remember Me ainda é um jogo bem legal, mesmo que longe de ser perfeito, contando com uma distopia cyberpunk original, uma protagonista forte e toda sorte de idéias provocantes no caminho. Pode valer a pena experimentar sim, ainda mais considerando que ele se encontra disponível para download gratuito para assinantes do serviço PlayStation Plus.

The Future is Japanese

TheFutureIsJapanese_coverVez por outra a gente passa por fases em que lemos praticamente só coisas dentro de um mesmo campo temático. Já tive a minha fase new weird, a minha fase autores russos / soviéticos… Atualmente, estou na fase Japão. E nem falo só de Haruki Murakami, claro – tenho lido alguns autores japoneses mais alternativos, classificados no próprio país dentro daquele paradigma da literatura “de gênero.”

Tenho que agradecer por isso à editora Haikasoru, que tem se dedicado a traduzir algumas obras de gênero de lá para o inglês, permitindo o contato com essa vertente da literatura de um país que tanto desperta curiosidade pelos lados de cá do meridiano de Greenwich. Graças a ela pude entrar em contato com a romanização do videogame Ico, por exemplo; bem como uma obra tão única no seu escopo como Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights. E é ela também que editou este The Future is Japanese, que em treze contos busca fazer um pequeno panorama da literatura de gênero, em especial a ficção científica, do e sobre o Japão.

Como esta premissa parece indicar, nem todos os autores presentes nela são realmente japoneses. Há muitos autores ocidentais no meio, que possuam alguma ligação particular com o país ou que se disporam a escrever histórias que de alguma forma remetessem à sua cultura, inclusive nomes conhecidos como Bruce Sterling (um dos pais do cyberpunk ao lado de William Gibson), Ekaterina Sedia (premiadíssima autora de Alquimia de Pedra, recentemente publicado em português pela Tarja Editorial) e Catherynne M. Valente (autora também premiada de Palimpset e do fenômeno de financiamento coletivo The Girl Who Circumnavigated Fairyland in a Ship of Her Own Making); e também alguns outros naquele campo mais nebuloso dos autores de dupla nacionalidade, como o sino-americano Ken Liu.

De maneira geral, foram estes autores que se fixaram mais fortemente nos paradigmas e clichês tão associados à terra do sol nascente. Há as distopias cyberpunk, realidades virtuais, seres folclóricos… Algo esperado até, já que eles tinham que justificar a sua seleção para uma coletânea com este tema. Mas isso também não os impediu de entregar histórias bastante interessantes. Chitai Heiki Koronbin, de David Moles, por exemplo, é a única história que envolve os famigerados mecha, ou robôs gigantes; mas é um conto envolvente sobre pilotos jovens enfrentando seres alienígenas, e poderia ser mesmo o começo de um bom mangá ou anime. A história de Sterling, Goddess of Mercy, que envolve um futuro distópico onde Tóquio foi destruída por um ataque nuclear norte-coreano, é bastante instigaste politicamente; e Rachel Swirsky foi uma das poucas autoras que fugiram da ficção científica, se aventurando pelas histórias de fantasmas em The Sea of Trees. Por fim, Cathrynne M. Valente talvez tenha entregue a história mais tocante do livro, One Brush, One Stroke, um pequeno conto com ares folclóricos que versa, entre outras coisas, sobre a paixão platônica de um pincel por uma mulher-caracol.

É claro, no entanto, que, para o leitor ocidental, o grande astro do livro são os autores nipônicos. Talvez tenha havido aqui um certo corporativismo safado da editora: muitos dos autores tem sido publicados em inglês pela Haikasoru, como uma rápida no catálogo presente nas páginas finais permite constatar. Nada fora do esperado também, acredito. Acho que o único autor que já conhecia anteriormente seja Hideyuki Kikuchi, cujos livros já foram adaptados como animes relativamente conhecidos como Vampire Hunter D e A Wind Named Amnesia. Seu conto aqui se chama Mountain People, Ocean People, e é uma pequena fantasia / ficção científica com ares pulp sobre uma civilização de homens voadores nos picos da montanhas, incluindo aí batalhas com monstros e conflitos juvenis. Outro autor que achei bastante interessante foi Issui Ogawa, que em uma pequena space opera chamada Golden Bread fez uma inversão de papeis bem curiosa, com um descendente do império japonês no futuro distante sendo confrontado com uma colônia caucasiana em um asteroide onde os costumes orientais atuais estão mais vivos do que nele.

Dois dos contos mais marcantes do livro foram os de Project Itoh (pseudônimo do autor Satoshi Ito) e TOBI Hirotaka. O do primeiro se chama The Indifference Engine, e, apesar do nome fazer referência à obra fundadora do steampunk, possui ecos mais fortes de A Laranja Mecânica, mas trocando os delinquentes juvenis irlandeses por crianças-soldado africanas. E o do segundo é chamado Autogenic Dreaming: Interview with the Columns of Clouds, um pequeno épico virtual que brinca com a forma da entrevista, e é repleto de ideias provocantes e uma extrapolação muito instigante sobre o Google e o seu projeto de digitalizar as grandes obras da humanidade.

Na soma final, como todo livro de contos, e ainda mais os que reúnem uma dúzia de autores diferentes, The Future is Japanese também possui seus altos e baixos, com algumas histórias que andam e andam sem avançar, e outras que você deseja que continuassem em livros maiores. Mas achei o saldo bastante positivo, e foi interessante poder entrar em contato com alguns autores novos que posso procurar conhecer melhor no futuro.

Tenra Bansho Zero

tenra-coverDesde que vi pela primeira vez a página deste projeto no Kickstarter, eu já sabia:  eu tinha que colaborar. Não sei exatamente o que fez eu decidir isso quase instantaneamente. Seriam as imagens misturavam guerreiros monstruosos, ninjas ciborgues, mecha? O subtítulo “hiper-fantasia asiática?”  A descrição de um cenário de fantasia com praticamente toda a cultura pop japonesa que eu conheço desde dez anos através de animes e afins? Qualquer que tenha sido a razão, eu realmente decidi que eu precisava participar do projeto e garantir a minha cópia. E alguns meses depois de fazer a minha contribuição, enfim, recebi para avaliação um PDF contendo a versão para revisão, que eu resenho aqui para quem quiser conhecer mais a respeito.

Enfim, para quem não sabe (e eu também não sabia até conhecer o projeto e correr atrás de informações), Tenra Bansho Zero é um RPG escrito e publicado por Junichi Inoue, que desde a sua primeira edição em 1997 rapidamente se tornou um dos mais populares no Japão. O projeto de tradução foi idealizado por Andy Kitkowski, um tradutor norte-americano apaixonado por cultura asiática, que conheceu o jogo e decidiu que queria de qualquer maneira publicá-lo em inglês. E eis que surgiu o projeto de financiamento coletivo extremamente bem sucedido (de $9 mil pedidos inicialmente, foram conseguidos no fim quase $130 mil!).

Do que eu pude avaliar pelos PDFs para revisão, trata-se de um sistema bem particular, que pega os elementos básicos do RPG como nós conhecemos e o impregna de cultura oriental, não apenas no cenário mas no seu próprio sistema de regras e formato das sessões. O trabalho de tradução inclusive foi além de meramente converter o jogo para outra língua, e inclui diversas notas explicativas a respeito da cultura de jogos entre os japoneses. O resultado é um material bastante único, que, mais do que apresentar inúmeras idéias de jogo, realmente te ensina algo sobre uma cultura diferente.

Mas vamos por partes. A grande maioria dos RPGs que eu conheço sempre começa com as regras para criação de personagens, e com Tenra não é muito diferente. Existem em geral dois modos clássicos de fazer isso: usando classes de personagens ou outro equivalente, ou com distribuição livre de pontos. TBZ conseguiu, de alguma forma, ficar exatamente no meio destes dois paradigmas: ao criar um personagem você deve escolher entre uma série de arquétipos prontos, que já vêm com certas habilidades e poderes pré-definidos; no entanto, pode também combinar diversos deles, além de fazer alguns pequenos ajustes e adições no resultado final.

Há arquétipos de todos os tipos: profissionais, sociais, raciais… Alguns mesmo tratam de históricos específicos, como ex-samurai, ex-piloto, etc. Como a combinação deles é livre, é possível ter uma variedade bastante grande de personagens. A contrapartida, é claro, é que eles vêm com um custo: todo arquétipo adiciona um certo valor de Karma ao personagem. Durante o jogo, o seu valor de Karma nunca pode ultrapassar 108, representando os 108 pecados da doutrina budista; se isso acontecer, o personagem se torna um asura, uma espécie de demônio incontrolável, e é entregue ao mestre como um NPC. Assim, nada impede você de começar com um ninjasamurai-ciborgue-piloto-de-mecha; mas se o fizer, terá que tomar muito cuidado durante a partida, pois qualquer descuido pode fazê-lo exceder o máximo de Karma e assim perder o controle sobre o seu personagem…

O sistema de rolagens também é interessante, ficando em outro meio termo entre diversas formas mais tradicionais. Você possui uma pilha de dados de seis lados igual ao seu atributo, e deve rolá-los para conseguir um valor igual ou menor ao de uma perícia; por fim, há também uma dificuldade-alvo, que diz a quantidade de sucessos que você deve rolar para ser bem sucedido. Por exemplo: ao buscar informações em uma vila, o mestre determina que o atributo a ser rolado é Empatia, com a perícia Informações e dificuldade 2. Você possui Empatia 5, portanto rola cinco dados; a sua perícia Informação é 3, portanto você deve rolar 3 ou menos em cada um desses dados; e por fim, como a dificuldade é 2, você precisa conseguir sucessos em pelo menos dois dados para ser bem sucedido. Com a quantidade de variantes envolvidas (entre outras coisas, você pode misturar qualquer atributo com qualquer perícia), há bastante margem para o mestre pedir jogadas diferentes, tornando a partida menos previsível sem prejudicar a praticidade do jogo.

Isso é somado ainda a um sistema de combate também voltado para o lado prático e da intuitividade. Como em 3D&T e Mutantes & Malfeitores, o seu foco é a ação, e não a tática; no lugar de regras detalhadas de movimentação e dúzias de opções de manobras, há as indicações gerais de como atacar e defender, e na maioria dos casos é deixado a cargo do mestre e dos jogadores dar cor a estas jogadas. Entre os detalhes específicos mais interessantes, está o fato de que toda defesa é também uma tentativa de contra-ataque – ou seja, se o seu resultado ao se defender for melhor que o do atacante, você não só evita o golpe como ainda ganha um ataque extra contra ele! Assim é muito simples de fazer aquelas cenas típicas de filmes de artes marciais, em que o Bruce Lee detona sozinho todos os estudantes da escola de kung fu rival.

Outro elemento interessante é o sistema de ferimentos que o jogo propõe. Além da sua contagem de Vitalidade (os tradicionais Pontos de Vida), cada personagem também possui algumas “caixas” de ferimentos que ele pode marcar. Por exemplo, se quiser evitar a perda de Vitalidade em um determinado ataque, ele pode marcar uma caixa de Ferimentos Leves, representando cortes e arranhões adquiridos no lugar do dano. Na medida em que os ferimentos vão ficando mais graves, você também recebe alguns bônus na hora de combater – sim, você fica mais forte à medida que toma mais dano! Isso também é feito para emular melhor filmes e seriados de artes marciais, em que as lutas vão aumentando em tensão e gravidade na medida em que os lutadores vão se golpeando, até chegar ao clímax final com um par de golpes em câmera lenta em meio a um círculo de fogo, ou qualquer coisa assim. Em último caso, você pode pôr a própria vida em risco em troca do maior bônus, mas deve acatar o resultado caso perca a batalha no final.

A alma do sistema, em todo caso, está em como ele utiliza três elementos específicos: os pontos de Kiai, as fichas Aiki, e os Destinos dos personagens. Pontos de Kiai funcionam basicamente como os Pontos de Ação, Heroicos e outros tantos que são comuns em sistemas recentes. Você pode gastar eles para receber alguns bônus de jogo ou realizar algumas manobras únicas. Eles também fazem as vezes de experiência, visto que você pode usá-los para aumentar seus atributos e poderes nos intervalos entre os atos. No entanto, todo ponto de Kiai gasto se transforma mais tarde em um ponto de Karma; portanto, abusar deles pode acabar transformando o seu personagem em um asura.

E como você adquire pontos de Kiai? Usando as fichas Aiki. Estas fichas devem ser distribuídas durante o jogo, de acordo com as ações dos personagens, e servem para adquirir pontos de Kiai rapidamente ou nos intervalos entre os atos. Jogadores que ajam de acordo com o histórico e personalidade que escolheram na criação devem receber fichas como premiação, bem como aqueles que tiverem boas soluções para os problemas que surgirem ou simplesmente fizerem coisas legais. O jogo propõe que não só o mestre tenha o poder de distribuir as fichas Aiki, mas também os jogadores: em certo sentido, é como se eles fossem o público de uma peça teatral, distribuindo as fichas de acordo com o quão entretidos estão se sentindo.

Claro, há um critério para a distribuição adequada de fichas Aiki, e esse critério é representado pelos Destinos. Cada personagem pode ter um ou mais deles, que representam objetivos pessoais e a forma como ele se sente a respeito dos demais. Por exemplo, se você é apaixonado por um outro personagem, isso pode ser considerado um Destino; se possui a missão de proteger o príncipe-herdeiro, também; e se quer descobrir a verdade sobre a morte dos seus familiares, isso pode muito bem ser outro Destino. O próprio mestre também deve, no início da sessão, dar um Destino especial para cada um dos personagens, representando aquilo que ele espera que seja feito por ele durante o jogo. Assim é fácil saber um personagem merece ou não receber uma ficha Aiki: basta seguir as indicações dos seus Destinos.

Os Destinos possuem também outras funções importantes no jogo. Cada um deles possui um valor, que é utilizado na hora de converter fichas Aiki em pontos de Kiai. E, mais importante, eles também podem ser usados para reduzir o Karma do personagem, na medida em que os objetivos representados neles vão sendo cumpridos, sendo fundamentais para mantê-lo longe da transformação em asura.

A forma como todos esses elementos se unem na partida é bastante peculiar. Tudo é feito para emular a atmosfera de uma peça tradicional de teatro kabuki – o próprio conceito das fichas Aiki tem como objetivo colocar os jogadores no papel de público dessa peça. A estrutura das aventuras também é feita através de cenas e atos, com direito mesmo a um intervalo entre eles para os jogadores descansarem e fazerem a manutenção dos seus personagens. Outro ponto curioso é que o livro desencoraja a realização de campanhas – embora certamente não sejam impossíveis de se realizar, e existirem até algumas sugestões nesse sentido, o jogo funciona melhor, segundo diz, com aventuras fechadas, terminadas em uma ou duas sessões de jogo, como se fosse mesmo uma única peça de teatro com início, meio e fim. A própria evolução dos personagens e sublimação de Destinos é  feito durante os intervalos, de forma a garantir que haja um desenvolvimento da sua personalidade dentro da própria aventura.

Quanto ao cenário, o jogo se passa no planeta Tenra, que significa “toda a terra sob o céu.” Os seres humanos não são nativos desse planeta, mas, segundo a história contada pelos sacerdotes Shinto, desceram das estrelas milhares de anos atrás, em uma óbvia metáfora para a colonização espacial. Isolados, desenvolveram-se em uma cultura única semelhante à do Japão feudal, com a divisão das ilhas onde se estabeleceram em domínios e províncias sob a tutela de um Imperador, e a igreja Shinto determinando os rumos da civilização por trás das cortinas. É um mundo que sofre com guerras endêmicas há 400 anos, desde que a própria igreja Shinto concedeu permissão para que os senhores feudais lutassem entre si para expandir os seus domínios. E tudo só piorou desde que um estranho artefato conhecido como a Estrela Fantasma caiu no planeta, devastando a antiga capital e levando à divisão da igreja em duas facções distintas.

E aqui entram todos os personagens que eu citei mais acima: uma situação de guerra tão longa levou o desenvolvimento de dezenas de novas tecnologias bélicas, tanto fundamentadas na ciência como na magia. Isso permite, basicamente, que todos os elementos que já fizeram parte da cultura pop japonesa de alguma forma encontrem algum espaço: mechasamurai, monstros, mesmo ecos dos mangás cyberpunk nas próteses cibernéticas e afins. Há um cuidado especial em descrever um por um todos os “tipos” de personagens que estão disponíveis aos jogadores: os samurai, que aqui não são vassalos dos senhores feudais, mas guerreiros que passaram por uma dolorosa cirurgia para receberem os poderes de uma criatura sobrenatural; os shinobi, com suas técnicas sombrias ampliadas por procedimentos cirúrgicos e próteses cibernéticas; os pilotos das armaduras yoroi, grandes máquinas movidas por magia que só podem ser pilotadas por jovens ainda puros de espírito; os kijin e kongohki, que são os ciborgues e andróides de Tenra; os oni, a raça nativa original de Tenra, com uma cultura tribal ligada à natureza, algo como uma versão mangá dos na’vi de Avatar; os anelidistas, que possuem implantados no seu corpo espécies de vermes nativas de Tenra, que num processo de simbiose dão a eles poderes medicinais… Enfim, há uma gama enorme de possibilidades, alguns dos quais podem até ser misturados entre si.

O ponto interessante, acho, é a forma como a fantasia oriental e a ficção científica acabam se misturando em todos eles. A magia onmyojutsu, por exemplo, que funciona através da invocação de espíritos conhecidos como shikigami, pode ser conjurada de forma tradicional, através de selos de papel e força de vontade; ou de ábacos mecânicos especiais, praticamente como feitiços programados em computador! E estão lá também ninja com próteses cibernéticas, gueixas-robô, templos xintoístas com servidores de rede interna… Tudo isso concebido sob uma ótica bem japonesa, e não uma mera visão externa da sua história e cultura como estamos mais acostumados por aqui.

Enfim, Tenra Bansho Zero é um jogo bastante único em todos os sentidos possíveis. Só me falta mesmo é arranjar um grupo novo pra jogar umas partidas… Enquanto não consigo, pelo menos tenho me divertido adaptando alguns dos seus elementos para 3D&T no blog RPGista, do qual sou colaborador. Quem se interessar pode dar uma olhada.

We Are Anonymous

Não tanto tempo atrás assim, o nome Anonymous varreu a internet como um furacão. Não acho que ninguém que se julgue minimamente bem informado vai deixar de reconhecê-lo: a entidade coletiva, ideal político ou, segundo alguns, simplesmente organização criminosa que causou algum furor ao atacar alvos que vão desde a Igreja da Cientologia até empresas como o PayPal, Visa e outras, muitas vezes em uma defesa apaixonada dos ideais políticos do WikiLeaks e o seu fundador, Julian Assange. Era só uma questão de tempo, assim, até que livros e publicações em profusão começassem a explorar o tema. We Are Anonymous: Inside the Hacker World of LulzSec, Anonymous, and the Global Cyber Insurgency, da editora londrina da revista Forbes Parmy Olson, foi só o primeiro que eu porventura acabei encontrando em uma livraria e comprando.

A obra faz um relato aprofundado sobre a história do grupo, desde a fundação do 4chan e o seu infame fórum /b/ até a prisão dos seus membros mais conhecidos. Um dos seus primeiros méritos, inclusive, é justamente o de fugir do lugar comum ou de se fundamentar apenas em suposições e panfletarismo midiático, buscando como fonte principal do seu relato os próprios perpetradores do grupo – conforme descrito longamente ao fim do livro, as histórias contadas tomam como base, além dos relatos públicos dos atos do grupo, diversos logs de chats vazados para a imprensa, e, principalmente, entrevistas diretas da autora com diversos dos hackers e apoiadores do Anonymous e do LulzSec.

Claro, isso leva também a outros problemas particulares: se os próprios usuários da internet, em especial os que se envolveram com o grupo, são conhecidos por mentir compulsivamente e sem qualquer razão aparente, como saber o que levar a sério ou não nestas entrevistas? Olson admite o problema e faz as suas escolhas durante o livro, mas é difícil não imaginar algumas das suas fontes mais recorrentes gargalhando atrás dos seus computadores, pensando ter feito a sua maior trollagem. Mesmo levando isso em conta, no entanto, ainda acho que o livro faz um excelente trabalho em desmistificar o grupo, buscando o seu lado mais humano além da coletividade, tentando entender as razões que levam pessoas anônimas escondidas atrás de nicks virtuais, muitas vezes adolescentes mesmo, a militar em prol de causas que pouco entendem, geralmente sem conhecer totalmente os riscos envolvidos nos seus atos.

Obviamente, não espere que a autora realmente assuma o lado do Anonymous, e defenda os seus atos como revolucionários ou em prol do bem maior ou qualquer coisa assim. Trabalhando para uma revista como a Forbes, é claro que ela os enxerga como perigosos, muitas vezes quase como bullies virtuais, e enfatiza com veemência o seu caráter de ilegalidade. No entanto, ao tentar sinceramente entendê-los e humanizá-los, ela também consegue fugir daquela primeira camada de conservadorismo, enxergando bem além do vandalismo digital que turva a visão de muitos. Em especial, ela consegue expor com bastante eficiência toda a desinformação de veículos de mídia e dos órgãos de policiamento como o FBI, que tentavam enxergar organização e ideologia onde muitas vezes havia só lulz e algum direcionamento fraco, feito por “líderes” que geralmente não tinham mais autoridade do que um aluno popular de colégio. Nisso, o livro também ajuda bastante a compreender, mais do que apenas o fenômeno que discute, a própria internet como entidade virtual.

Outro aspecto que acho interessante de destacar no livro é o seu valor literário. A autora tenta dar algum floreio ao seu estilo narrativo, descrevendo algumas cenas em detalhes como se fosse realmente uma testemunha visual; isso incomoda um pouco do nível da credibilidade da informação, mas também torna a leitura um tanto mais envolvente. Você passa a conhecer e se importar com os personagens do livro como se eles fossem realmente personagens de um romance, com direito a um enredo repleto de intrigas, traições e um final épico, o que acaba causando um certo choque quando você para para pensar que de fato acompanhou muito daquilo tudo através de noticiários. O livro não faria feio mesmo como um romance cyberpunk, e não duvido que seja melhor e mais interessante do que muita coisa que o Neal Stephenson já escreveu.

No fim, alguns problemas à parte, ainda acho que We Are Anonymous é uma leitura bastante interessante e informativa. Não vá achando que você sabe tudo o que há para saber a respeito apenas ao lê-lo, é claro, como não deveria ao ler qualquer livro que seja; no entanto, ele ainda traz alguns insights e reflexões relevantes, lançando de forma didática e objetiva alguma luz sobre fenômenos e acontecimentos que podem ser difíceis de entender para alguns. Tenho certeza que muitos dos que o lerem não irão mais olhar para as suas senhas virtuais da mesma forma que antes.

A Trilogia Nikopol

A Trilogia Nikopol, do francês nascido na ex-Iugoslávia Enki Bilal, é considerada uma das grandes obras dos quadrinhos europeus de ficção científica oitentistas, a par com qualquer clássico da Metal Hurlant. Ele segue as desventuras de Alcide Nikopol em um futuro caótico e distópico em meados do século XXI, e o que acontece quando ele se envolve com divindades egípcias, ditadores fascistas e outros personagens peculiares.

Como o nome bem indica, trata-se não apenas de uma história, mas três álbuns que levaram mais de dez anos para serem publicados originalmente, reunidos aqui em um volume caprichadíssimo com capa dura da editora Nemo. Vale destacar inclusive que o preço, se parece um pouco pesado a princípio, se dilui facilmente nesse fato – basta imaginar quanto custariam as três histórias publicadas individualmente pela Devir ou a Conrad…

A Feira dos Imortais, em todo caso, a primeira das histórias, abre com uma estranha pirâmide voadora pairando sobre uma Paris dominada por uma ditadura fascista. Já a primeira cena dá bem o tom do que vamos encontrar, quando vemos deuses como Anúbis, Toth e Set discutindo a pressão que farão sobre o governo local para resolver o seu problema de combustível para a nave, enquanto jogam, entre todos os jogos possíveis, Banco Imobiliário! Ao mesmo tempo, Nikopol, que fora exilado após desertar o exército francês e estava há trinta anos em estado de animação suspensa, retorna à cidade para encontrá-la completamente diferente de quando a viu pela última vez.

Entre os tradicionais discursos políticos e sociais da tradição cyberpunk, assim, é interessante ver os momentos de paródia e humor negro que pontuam a narrativa. Alguns inclusive fizeram o salto para a realidade posteriormente – basta lembrar que o boxe-xadrez, por exemplo, que atualmente é uma modalidade esportiva levada bastante a sério, fez sua primeira aparição em Frio Equador, a terceira história do volume. Entre os dois extremos, pílulas alucinógenas, conspirações sobrenaturais e ambientes surreais, pontuados por uma série de personagens únicos e situações de risco.

Como seria de esperar de qualquer álbum europeu da tradição Metal Hurlant, a arte é maravilhosa, com um estilo mais fotográfico e repleta de arquiteturas impossíveis e cenários imaginativos. Os deuses com cabeças de animais são um elemento à parte, praticamente uma obsessão do autor. Apenas achei que a narrativa em quadrinhos um pouco truncada, pelo menos na primeira história, repleta de infodumps e narrações em off – é interessante ver como o autor evolui ao longo das histórias, sendo A Mulher Armadilha, a segunda, a melhor das três na minha opinião, com direito a uma femme fatale e outros elementos que remetem à literatura noir.

No fim, tenho que recomendar A Trlogia Nikopol para qualquer um que goste de quadrinhos, ficção científica ou histórias imaginativas de maneira geral. Vale a pena desembolsar alguns tibares para ler e receber alguns choques pesados de imaginação.


Sob um céu de blues...

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