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Trecho avulso

Gostava de livros realistas, desses que eram pouco mais do que uma sucessão de episódios cotidianos, sem um objetivo muito claro guiando a trama. Dois amigos em um bar, um casal passeando na cidade, crianças brincando no parque. Não achava que a vida tinha fantasia suficiente, mas gostava da ilusão de que era essa a verdadeira ficção, e que o mundo que o esperaria ao fechar o livro seria mais interessante, mais intenso, mais colorido.

Trilogia do Rato

Hear_the_wind_singPara quem gosta de escrever seus rascunhos vez por outra, é um exercício interessante ver como os escritores que admira começaram suas carreiras, como eram seus primeiros livros e como eles diferem das suas obras mais famosas. Penso sempre no caso do Italo Calvino, que ficou conhecido por seus livros cheios de fábula e fantasia, mas que começou com um livro essencialmente realista, A trilha dos ninhos de aranha. Para além do lado da curiosidade, dá um pouco mais de esperança também ver como estes escritores tiveram começos muitas vezes hesitantes e descuidados, e como eles evoluíram e desenvolveram seus estilos características.

No caso de Haruki Murakami, que já há algum tempo é o meu xodó literário, esta estreia corresponde a dois livros em específico: Hear the Wind Sing e Pinball 1973. Sem edição em português, mesmo a única edição em inglês deles é bastante rara, sendo na verdade parte de uma coleção para ensinar a língua para os nativos japoneses – o próprio autor parece considerar os dois livros de baixa qualidade, e não se anima em vê-los lançados em outros países (apesar de que há rumores de que eles devem receber uma edição norte-americana logo). Consegui acesso a eles graças apenas às maravilhas da tecnologia moderna e dos leitores de livros digitais.

Embora sejam dois livros com enredos e acontecimentos próprios, ambos possuem os mesmos protagonistas – o narrador sem nome e seu amigo, referido apenas pelo apelido de Rato -, e soam um pouco como obras-irmãs, por serem relativamente curtas (em torno de 120 páginas cada) além de compartilharem de um estilo e temática semelhantes. No primeiro, os dois personagens possuem 21 anos e são recém egressos do mundo universitário; a narrativa consiste basicamente de episódios em que eles retornam à sua cidade natal, visitam o bar de J., um imigrante chinês com quem desenvolvem uma forte amizade, e discorrem sobre temas como o ofício da escrita e o movimento estudantil enquanto bebem, conhecem mulheres e ouvem músicas ocidentais. Um episódio especial que acaba recebendo um pouco mais de atenção diz respeito a uma determinada moça que o narrador leva bêbada para casa uma noite, e os acontecimentos trágicos que a envolvem.

Pinball_englishJá no segundo livro temos um pequeno avanço temporal para o ano de 1973, quando o narrador e seu amigo possuem 25 anos. Os dois estão separados e não chegam a se encontrar durante a narrativa, mas ela alterna constantemente entre eles, um pouco como um duo de jazz improvisando um dueto. O narrador agora trabalha em uma agência de tradução e divide o apartamento com duas irmãs gêmeas, enquanto Rato se vê às voltas com um caso amoroso que não sabe bem como resolver. No meio disso, discursos sobre a solidão e a busca por uma máquina de pinball especial.

São livros simples e pequenos, bem diferentes de obras ambiciosas como The Wind-Up Bird Chronicle e 1Q84, por exemplo; se há algum livro mais recente do autor que eles lembrem, provavelmente seja Após o Anoitecer. Mas é interessante notar como certas características que se tornariam marcantes já se revelam, como as referências à cultura ocidental (seja na música ou na literatura, com a citação a um certo autor de ficção científica Derek Heartfield – provavelmente um pseudônimo para Kurt Vonnegut), bem como os personagens únicos como o par de gêmeas que o narrador não consegue distinguir ou o próprio Rato. Ainda que o cenário das histórias seja essencialmente realista, já vemos também um certo surrealismo latente, no absurdo de cenas como o enterro de um painel telefônico ou o diálogo afetivo e sentimental entre o narrador e a referida máquina de pinball que constitui o clímax do segundo livro.

O que chama muito a atenção, no entanto, é a aparente falta de rumo dos personagens e do enredo. Os livros se fazem basicamente com uma sequência de episódios, sem muita conexão direta entre si exceto o fato de acontecerem com os mesmos personagens; não há propriamente uma busca a ser realizada ou um objetivo último a se cumprir. É um pouco como um diário casual, uma literatura cotidiana, e pode-se ver bem forte o estilo hesitante de um autor estreante, ainda sem uma voz muito bem definida com que escrever. Por outro lado, esta mesma falta de rumo acaba se revelando uma força, da mesma forma como ela é em autores como Bukowski ou Tao Lin – para alguém que se encontra em uma encruzilhada existencial muito semelhante à dos personagens, é fácil criar uma ligação com eles, e se ver dentro das situações e dilemas que eles encontram. (Aliás, é interessante comparar essa falta de rumo com outro romance do autor, South of the Border, West of the Sun, cujo protagonista constamente faz referência à forma como desperdiçou toda a década dos seus vinte anos).

Capa_Cacando carneiros.inddIsso é muito punjente quando vamos analisar o terceiro livro da trilogia, Caçando Carneiros (este com edição em português), que o próprio Murakami considera o seu primeiro romance “de fato.” Os protagonistas agora estão há poucos meses de completarem trinta anos; ao analisá-los em conjunto, portanto, é possível ver uma certa jornada de amadurecimento, enquanto a falta de rumo que sentiam após saírem da universidade vai aos poucos desaparecendo, e eles se veem capazes de aceitar alguma objetividade em suas vidas. Essa objetividade é personificada na figura de um carneiro com uma marca de estrela, que os aproxima novamente depois de anos e dá a eles algo a que buscar ao longo da narrativa, e é difícil não imaginar que o destino último de Rato represente um pouco uma recusa de aceitar a entrada nesta nova fase, algo que o narrador sem nome parece fazer com menor dificuldade.

Aqui também já podemos ver um romance murakamiano mais típico, repleto de acontecimentos surreais e absurdos, bem como os fetiches peculiares que se tornariam constantes nos seus personagens (leia-se, orelhas incrivelmente bonitas). O estilo é muito mais maduro e bem acabado, com uma voz narrativa mais clara e consciente de si.

dance dance danceApesar destes três livros fecharem a “trilogia do Rato” propriamente dita, há ainda um quarto volume que retoma muito dos temas recorrentes a ela. Em Dance Dance Dance (também com edição em português) novamente encontramos um narrador sem nome, que podemos concluir que seja na verdade o mesmo dos livros anteriores, e mesmo Rato chega a ser brevemente citado, assim como o Hotel do Golfinho de Caçando Carneiros, que volta a ter um papel importante a cumprir. É interessante pensar nele como um epílogo da trilogia: podemos ver assim como o narrador de fato amadureceu e envelheceu ao longo dos anos, e torna muito significativo, por exemplo, o fato de ser o único livro em que ele termina a história acompanhado, sem ser abandonado pelas mulheres que conhece ao longo do caminho (o que não quer dizer que não seja um final angustiante à sua própria maneira, é claro).

Enfim, é bem claro para mim que muito da leitura que faço dos livros tem a ver com o momento que vivo atualmente, como já falei em outra resenha este ano. Não sei até que ponto posso dizer que estes pensamentos condizem realmente com a intenção do autor, ou se outro leitor em outra situação faria a mesma leitura que eu, ou veria nos livros as mesmas virtudes. Penso como tem sido difícil para mim manter um certo ritmo de leitura ultimamente; nada que eu pegava para ler me envolvia, e fazia uns bons meses que eu não terminava um livro. Mas então de repente me vejo em um personagem, e isso talvez me dê alguma força para ir um pouco mais adiante. O que me falta, talvez, seja encontrar o meu próprio carneiro com marca de estrela.

Relatos Selvagens

relatos cartazJá faz um bom tempo que o cinema argentino tem lançado filmes de sucesso, tanto de crítica como público. Em comparação, o cinema brasileiro em geral é bem vexatório, apesar de um ou outro filme do Jorge Furtado ou outro diretor eventual que fuja dos chavões Globo Filmes / filme de arte pra ganhar subsídio governamental. Se nem sempre um Wagner Moura é sinônimo de um bom filme, um Ricardo Darín no pôster consegue ser sim um bom indicativo de que você passará umas duas horas muito bem aproveitadas.

Relatos Selvagens se insere muito bem nessa tradição dos nossos hermanos. O filme é composto, na verdade, por seis histórias curtas, coladas por um mesmo tema: pessoas comuns que simplesmente perdem a paciência, e por um momento cruzam a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Da história introdutória que lembra uma música do Chumbawamba à festa de casamento que acaba por dar certo de um jeito bem errado, as histórias tentam explorar um pouco desse absurdo que há no cotidiano, e o quanto ele é em realidade bastante frágil e fácil de se quebrar por motivos que podem ser tão banais quanto uma ofensa no trânsito ou tão sérios quanto uma propina policial.

Damián Szifron, o diretor, conduz cada uma das histórias com grande maestria, lançando mão de uma bela gama de recursos narrativos e visuais. Há uma influência tarantinesca bem evidente nos enquadramentos e na trilha sonora; mas, muito mais, há um quê kafkiano em algumas das tramas, e muito de tragédia grega na forma como elas sempre descambam rapidamente para o desespero generalizado dos personagens.

Subjaz, é claro, uma crítica não muito velada ao mundo moderno e às hipocrisias que permitem que ele funcione. Você pode sair da sessão refletindo sobre o absurdo das burocracias governamentais, os preconceitos do sucesso financeiro que te permitem comprar o carro do ano, ou o papel da fidelidade conjugal. Mas, mais do que tudo, há apenas o prazer de se contar e ouvir uma boa história: você com certeza sairá da sessão após dar muitas risadas de um humor negro que consegue ser crítico sem ser preconceituoso, e inteligente sem ser obscuro.

Assistam Relatos Selvagens, enfim. Posso dizer sem medo de errar que é o filme mais engraçado, e um dos mais imperdíveis, de 2014.

South of the Border, West of the Sun

southoftheborderAcho que todos passamos vez ou outra por aqueles momentos de inflexão e revisão da vida, em que revemos aquilo pelo que passamos e avaliamos o que poderíamos ter feito diferente, ter tentado ou não em determinados momentos, e que efeitos teriam no longo prazo da nossa vida. E se eu tivesse me declarado para a minha paixão platônica da oitava série? E se tivesse escolhido estudar Administração ao invés de História? E se tivesse me esforçado para manter contato com amigos, conhecidos, parentes?

Há quem dê a isso nomes próprios – crise dos vinte anos, dos trinta anos, da meia-idade -, e há quem simplesmente passe por elas sem aviso prévio. Em South of the Border, West of the Sun, o japonês Haruki Murakami encontra talvez a sua metáfora perfeita: a síndrome de Piblokto, ou histeria Ártica, que acomete os membros de povos inuit a partir de determinada idade, quando muitos abandonam tudo o que têm e começam a caminhar em direção ao pôr do sol, buscando alguma terra mágica que se encontraria no extremo oeste do mundo conhecido.

Da mesma forma, Hajime, o protagonista do livro, após uma década de incertezas e morosidade, finalmente se encontrou na vida como pai de família e administrador de dois bares de jazz bem sucedidos em Tóquio. No entanto, tudo é posto em perspectiva no momento em que ele reencontra Shimamoto, amiga de infância com quem perdera contato aos doze anos de idade, mas cuja sombra nunca o abandonou completamente. Andando em uma linha tênue entre o delírio e a realidade, ele passa a rever então os erros que cometeu na sua trajetória, a repensar os meios pelos quais chegou até aquele ponto, e a imaginar as tantas outras formas pelas quais a sua vida poderia ter se encaminhado.

Como os velhos inuit, Hajime busca nesse reencontro aquela terra mágica de felicidade que perdera ao se afastar da amiga, como se partisse na sua própria jornada de delírio rumo ao pôr do sol. No entanto, por mais que tente adiar a decisão, em algum momento sabe que terá que fazer a opção entre a vida que conquistou e aquela que sempre desejou para si.

É um romance curto, porém incrivelmente intenso. Não há nada das mil páginas e três volumes de um 1Q84; no entanto, suas frases e temas são também muito mais objetivos, sem gorduras sobrando, deixando entre os capítulos momentos de reflexão profunda sobre o relacionamento que temos com o passado e as opções que fizemos ao longo da vida. É um Murakami naquilo que ele tem de melhor, e extremamente recomendado.

Era Pra Ser

era pra ser capaAntes de mais nada, é bom deixar claro que esta deve ser a resenha mais chapa branca do blog. Conheço o Gabriel desde os tempos idos do Multiply, já o conheci pessoalmente, e, mesmo que estejamos há quatro estados de distância, considero ele um dos meus melhores amigos. Minha admiração pelo trabalho dele vem de longe, as suas idéias inusitadas, o seu olhar non sequitur sobre o mundo, a sua arte meio cartunesca mas sem deixar de ser tocante.

Faz um tempo já que ele tem publicado quadrinhos diversos em um site próprio, chamado Vida Submarina, todos eles muito bacanas e originais. Era Pra Ser é uma dessas histórias, a maior delas, na verdade, que ele selecionou para esta publicação impressa independente. E ela já impressiona no próprio acabamento da edição, bem mais cuidadoso e profissional do que o seu fanzine médio de fundo de quintal: o papel é especial, e a capa é cartonada e tem mesmo orelhas.

E do que a história fala? O dia-a-dia de um casal após uma perda irrecuperável, e a forma como eles tentam refazer a sua rotina e retornar à normalidade. Suas conversas, suas brigas, suas formas de relaxamento e de tentar aliviar a tensão que os ronda – um roteiro bem mundano na sua superfície, desenvolvido principalmente através de ação e diálogos, sem grandes discursos filosóficos ou questionamentos intelectuais.

Por baixo dessa aparência, no entanto, escondido nos quadros e entre eles, há um mar de coisas não ditas e pensamentos invisíveis. A silhueta de um fantasma que os acompanha em suas rotinas, os delírios auto-destrutivos causados pela culpa, tudo deixado subentendido de forma brilhante pela linguagem visual dos quadrinhos.

Enfim, um quadrinhos muito legal. Se tiver como, visite o site do autor e tente entrar em contato para ver se ainda há exemplares para encomenda. E quem sabe ele até não faz um desenho exclusivo legal pra você também…

ornitorrinco

Greta

slavicpaganTinha quatorze anos quando Greta foi contratada. Meu pai havia acabado de retornar de uma viagem de negócios ao norte da Europa, e poucos dias depois nos apresentava a ela, nossa nova empregada doméstica. Ela moraria em nosso apartamento e ocuparia o quarto apropriado na área de serviço. Devia ser tratada com respeito e cordialidade, e apenas uma regra a mais deveria ser seguida além das que valeriam para qualquer outra:

– Nunca, jamais, agradeçam-na por qualquer coisa.

Nos dias seguintes nos acostumamos aos poucos com sua presença. Greta era muito eficiente, mais do que qualquer empregada que tivemos antes ou depois. Nunca mais tivemos um apartamento tão limpo. Ela encontrava focos de poeira que não imaginávamos existir, e fazia brilhar como novas áreas que não percebíamos estar sujas até que passasse por lá. Trabalhava sempre de forma muito rápida, quase sobrenatural; você podia observá-la e ela pareceria estar no mesmo pique de uma empregada comum, mas bastava desviar os olhos por um instante e, quando a visse novamente, teria vencido o dobro de faxina do que esperava. Também era uma excelente cozinheira, com um leque interminável de receitas envolvendo massas, carnes e linguiças, e nunca houve um rasgo em uma de minhas roupas que não estivesse magicamente consertado na manhã do dia seguinte.

Eu estudava então em uma escola particular durante as manhãs, e tinha a maioria das tardes livres, que passava geralmente em casa, vendo televisão, jogando videogames ou dormindo. Era um garoto tímido e retraído, com poucos amigos com quem sair, praticamente apenas dois colegas de turma desajustados como eu: Bruno, um garoto grande que se enfurecia fácil com piadas sobre o seu peso, e Pedro, que era o único aluno negro da escola além de sua irmã mais nova. Duas ou três vezes por mês um deles ia até minha casa ou eu ia até a deles para estudarmos, jogarmos videogame, conversarmos sobre os últimos gibis do Homem-Aranha ou apenas falarmos mal de professores e colegas. Não tinha irmãos, meu pai trabalhava o dia inteiro no escritório, e minha mãe como gerente em uma loja de roupas no shopping local; assim, minha companhia no resto do tempo se resumia a Greta.

No início talvez nem pudesse chamá-la realmente de companhia. Estava acostumado a ignorar a presença das empregadas anteriores, e esta foi também minha primeira atitude então. Éramos dois estranhos, exceto por estarmos sob o mesmo teto; eu a deixava fazer seus serviços em paz, enquanto assistia aos filmes da Sessão da Tarde ou o que mais estivesse me ocupando no momento. Até que uma conversa com Bruno, em uma de suas visitas após a aula, mudou tudo.

– Você tem uma empregada muito bonita. – ele disse, entre uma rodada de videogames e outra.

– Você acha?

– É sim. A da minha casa é uma velha feia, queria ter uma empregada como a sua.

Não tocamos mais no assunto durante toda a tarde, mas à noite, enquanto me revirava pela cama tentando dormir, ele me veio novamente ao pensamento. Greta era, realmente, muito bonita, muito mais do que as nossas empregadas anteriores, ou a de qualquer outra família que eu conhecesse. Estas eram todas feias, ou gordas, ou velhas; Greta, ao contrário, era pequena e magra, e parecia ter a minha idade ou apenas um pouco mais, muito embora meu pai garantisse que fosse bem mais velha. Tinha cabelos loiros, lisos e longos, quase batendo nos joelhos, uma pele branca tão delicada que seria capaz de rasgar com um toque, e um par de olhos verdes claros quase ao ponto de se tornarem azuis.

Já no dia seguinte eu a olhava de uma forma diferente. Antes podíamos passar o dia inteiro a poucos metros de distância, e eu nunca a perceberia; agora, no entanto, era eu que a procurava, e inventava coisas a fazer onde estivesse trabalhando. Observava-a escondido, atrás de portas entreabertas, ou enquanto fingia me ocupar de outra coisa; ela me tomava toda a atenção quando estava em casa, e eu não conseguia me concentrar em qualquer outro assunto.

Quanto mais a observava e conhecia seus costumes, mais alguns aspectos do seu comportamento começavam a me intrigar. Logo notei, por exemplo, que Greta jamais reclamava de nada, fosse da sujeira que fazíamos, fosse dos pedidos que lhe passávamos. Sua postura era sempre de total submissão, olhando para o chão quando lhe falávamos, acatando as ordens que recebia com um simples balanço de cabeça. Acho que nunca a ouvi pronunciar qualquer palavra em português – sabia que não era muda, pois cantarolava canções em um idioma desconhecido enquanto trabalhava, e era certo que nos entendia muito bem quando nos dirigíamos a ela, mas jamais nos respondeu com qualquer comentário ou objeção articulada.

Além disso, e apesar de todas as receitas que conhecia, Greta era, aparentemente, vegetariana. Sua única refeição diária era composta por alguns legumes e verduras que preparava em um prato ao fim da tarde e comia sozinha, na área de serviço. Este também era, até onde eu podia saber, o único pagamento que recebia, uma vez que jamais presenciei meu pai repassando-lhe algum salário em dinheiro.

Nada me intrigava mais, no entanto, do que a recomendação de nunca lhe dar um agradecimento. Muitas vezes me vi imaginando o que aconteceria se o fizesse, e em mais de uma tive o “obrigado” na ponta da língua após algum pedido inventado apenas para isso – mas bastava lembrar-me de meu pai e do castigo que viria quando descobrisse para recuar, e deixá-la voltar às suas tarefas rotineiras.

Se havia tantas questões sobre Greta, é verdade também que ela tinha muitos mais encantos. Era sempre cuidadosa e atenciosa com o que fazia, e nunca nos recusou qualquer pedido. E não apenas a aparência, mas todos os seus gestos e movimentos pareciam ser dotados de uma beleza quase mágica: quando mexia os braços era como se pintasse o ar com pinceladas suaves e graciosas, e o seu caminhar era cuidadoso e ritmado como uma dança.

Assim, aos poucos, as tardes que passava com Greta foram se tornando a razão de minha existência. Já não era apenas em casa que ela tomava meus pensamentos, mas também na rua, na escola, na casa dos meus amigos. Todo o resto não passava de incomodação, provas heróicas as quais eu tinha que sobreviver para desfrutar daquilo que realmente importava. Até que chegou a vez de Pedro vir me visitar após a aula.

Como Bruno, ele também se impressionou com a beleza de Greta. Desta vez, no entanto, eu estava preparado para continuar no assunto, e até mesmo um pouco ansioso com a possibilidade de falar sobre ela com alguém, ao invés de guardar para mim tudo o que sentia. Foi preciso apenas alguns minutos conversa para que ele fizesse o comentário que me assombraria durante todo o mês seguinte.

– Você acha que o seu pai está transando com ela? – ele disse.

– O quê? – respondi, já sentindo um calafrio subindo as minhas costas.

– Eu vi num filme que, quando se tem uma empregada bonita assim, é quase certo que o dono da casa está fazendo sexo com ela.

– Ela não faria isso.

– Mas ele faria?

Terminei aquela tarde com muitos arranhões pelo corpo, uma mancha roxa e uma marca de mordida nos braços, e um amigo a menos durante uma semana. Mais do que isso, no entanto, toda a inocência dos meus sentimentos quanto a Greta foi perdida. Eu podia ser ainda um garoto, e até um tanto ingênuo, mas era já um adolescente, e, fosse pelos estudos ou por comentários e piadas de colegas, sabia bem o que o sexo representava. Eu mesmo fantasiava com ela em meus momentos íntimos, e não muitas semanas antes com colegas de classe e até algumas professoras; mas agora havia uma nova imagem que não conseguia expulsar dos meus pensamentos: a de Greta com meu pai, ou qualquer outra pessoa que não fosse eu.

Durante vários dias não consegui olhar para ela. Fugia da sua presença, e buscava outras coisas com que me ocupar – gibis, videogames, estudos. Mesmo nelas, no entanto, Greta não saía dos meus pensamentos e me impedia de me concentrar. Logo já estava rendido outra vez, e voltava a observá-la e persegui-la como se nada houvesse mudado.

Exceto que tudo havia mudado. Já não a via mais com um olhar deslumbrado, mas sim sedento, sorvendo cada instante da sua presença como um lobo esfomeado. Não me escondia mais quando queria vê-la; apenas parava no cômodo onde ela estava, sentando-me em algum lugar ou recostando-me na parede, e a observava fixamente, sem me preocupar com sua reação. Ela, por outro lado, nada fazia – apenas continuava seus afazeres como se eu não estivesse ali, ou não passasse de mais uma peça da mobília.

Toda essa passividade me fazia imaginar o que ela faria se eu lhe pedisse – ou melhor, mandasse – vir se deitar comigo. Tinha quase certeza que de não me recusaria, assim como não recusaria a qualquer outro que fizesse o pedido. No entanto, não era capaz de reunir a coragem necessária para fazê-lo, e apenas me via imaginando acontecer enquanto a olhava, sentindo meu corpo se aquecer e avermelhar enquanto certas partes de mim enrijeciam.

Meus pais também não demoraram a perceber a minha atitude desembaraçada em relação à Greta. Minha mãe me repreendeu mais de uma vez, quando me pegou olhando a empregada nas poucas vezes em que estava em casa. Meu pai também, mas com ele eu já não me importava; sua mera presença me lembrava da conversa com Pedro, e por isso preferia ignorar que estivesse lá.

E então veio a noite em que, após acordar durante um sonho estranho, fui até o banheiro lavar o rosto, e depois à cozinha pegar um copo d’água. Não sei se foi a minha intuição que me fez ir em seguida à área de serviço, ou se já então ouvia algum ruído abafado, ou mesmo se não era apenas a minha vontade de me sentir próximo à Greta por alguns instantes; o fato é que fui até lá, e encontrei o seu quarto com a luz acessa e a porta entreaberta. Aproximei-me devagar, levando o rosto com cuidado para perto da fresta, tentando descobrir o que ocorria lá dentro sem relevar minha presença. E então percebi que Greta não estava sozinha.

O choque me manteve imóvel por alguns minutos, mas logo me recuperei e voltei para o quarto. No entanto, não consegui mais dormir aquela noite, sem conseguir me livrar da imagem do que vi.

No dia seguinte, durante a aula, fui diversas vezes repreendido pela falta de atenção. Voltei para casa, mal toquei na comida durante o almoço e tentei evitar Greta o quanto pude. Não consegui: bastou que ela passasse pela minha frente durante a limpeza da sala, enquanto eu assistia à televisão, para que eu lembrasse de tudo o que ocorrera, e a segurasse e puxasse pelo braço.

– Eu vi o que você estava fazendo ontem à noite. – ela se virou em minha direção, olhando-me como se não entendesse o que eu dizia. Meus olhos começaram a marejar, e eu já sentia as primeiras lágrimas escorrendo pelo lado do rosto. – Por que você fez isso, Greta?

Puxei-a para cima do sofá e me posicionei sobre ela. Continuava a perguntar por quê? entre choros e soluços, enquanto levantava o seu avental e sua saia, e abaixava em seguida sua calcinha. Eu endurecia, mas ela nada fazia para resistir; apenas aceitava a tudo me olhando, passiva, como se já esperasse pelo que estava acontecendo.

Talvez tenha sido a sua falta de atitude, o pouco interesse que demonstrava em impedir meus movimentos, ou então fui eu que percebi subitamente o que estava fazendo, mas o fato é que eu não consegui continuar. Parei de repente de me mover sobre ela, e olhei fixamente nos seus olhos vazios de sentimento. Levantei desajeitado do sofá e corri para o quarto, batendo a porta atrás de mim.

Já estava encolhido e aos prantos sobre a cama quando ela se abriu devagar, revelando Greta, que entrou e veio em minha direção. Eu levantei o rosto para vê-la; ela se aproximou, sentou-se ao meu lado, e começou a secar minhas lágrimas suavemente com as mãos. Logo seus dedos se moveram para trás, em direção à minha nuca, e a seguraram e puxaram para perto dela, apertando-me contra seus lábios em um beijo longo.

Greta se afastou de minha boca e começou a descer em direção ao pescoço, ao ombro esquerdo, ao peito, parando em cada um deles com um beijo curto. Eu endurecia um pouco mais a cada vez que seus lábios me tocavam, e em seguida também com o calor molhado da sua língua. Com mãos ágeis, ela me despiu aos poucos, livrando-me de minha camisa, e depois de minhas calças e roupas íntimas. Por fim, subiu em mim, e eu me senti entrando nela enquanto a apertava contra o meu corpo e começava a movê-lo devagar.

Quando terminamos, ela levantou da cama e ajeitou a roupa, antes de começar a caminhar em direção à porta. Eu a chamei antes que saísse do quarto, fazendo-a parar e se virar em minha direção. Tinha no rosto um olhar sério e passivo, como se o que acabara de fazer não fosse diferente de tirar uma mancha da parede.

Emudeci ao vê-la com aquela expressão, esquecendo de repente todo o milhar de coisas que passava pela minha cabeça. Queria dizer que a amava, que a queria para sempre comigo, que fugiria com ela; quando abri a boca para falar, no entanto, consegui formular apenas uma palavra:

– Obrigado.

Ela não respondeu, e apenas se virou novamente e saiu do quarto. Ao fim do dia já não estava mais em lugar nenhum do apartamento, sumindo de minha vida quase tão rápido quanto aparecera.


Sob um céu de blues...

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