Wizard of the Crow

WizardOfTheCrowNgũgĩ wa Thiong’o é um autor queniano que já há vários anos é posto como candidato a um possível Nobel de literatura. Sua obra, e a sua vida, é muito ligada à história recente do seu país e do seu continente – como tantos outros ativistas políticos, ele também foi preso pela ditadura de Daniel arap Moi, e é uma anedota bem conhecida da sua biografia que um de seus livros foi escrito no papel higiênico da prisão.

Pode-se ver muito destas experiências em Wizard of the Crow, livro lançado pelo autor em 2004, após um hiato de quase vinte anos da literatura adulta. Nele conhecemos a nação fictícia de Aburiria, um pastiche de todos os clichês sobre o continente africano, governado pela sua própria versão dos ditadores sanguinários como Robert Mugabe ou Idi Amin – um líder conhecido apenas como o Líder, que domina a população com um misto de mão de ferro e carisma quase místico, e é dito possuir toda sorte de poderes misteriosos. O protagonista, no entanto, é um jovem chamado Kamiti, recém retornado da Índia com uma série de certificados de cursos de especialização, atrás de um emprego e futuro na empobrecida nação africana. Incapaz de consegui-los, acaba encontrando dentro de si uma habilidade misteriosa que o permitirá mudar os rumos do país.

Como esta sinopse deixa bem claro, o mote principal do livro é o de ser uma sátira política – e ela certamente está lá, mas acompanhada de muito mais. Em certo sentido, o que se tem é um grande estudo, apresentado em forma de paródia, da sociedade africana contemporânea de uma maneira geral, da sua história desde os tempos coloniais, e da sua relação com o poder e com os países capitalistas ocidentais. Entre outros, um espaço bastante extenso é dado ao papel da mulher nessas sociedades, através de uma segunda protagonista, Nyawira, líder do grupo rebelde Movimento Pela Voz do Povo, que por uma série de circunstâncias acaba se tornando companheira de Kamiti nos seus empreendimentos sobrenaturais.

Tudo é contado com uma dose muito forte de fantasia e surrealismo, com um aceno ao realismo fantástico latino americano, e um humor ácido que constantemente subverte a realidade e o faz parar a leitura para rir. Thiong’o escreve com muita desenvoltura, e a narração toda é muito envolvente, alternando constantemente entre a seriedade, o humor e o simples encantamento. Você pode sair de uma descrição belíssima de um lago de lágrimas que cristaliza o próprio tempo e ir parar em uma fuga escatológica de uma prisão política em que o fugitivo utiliza como arma um balde de fezes. E entre um e outro, pode se deparar ainda com discursos sobre o poder das palavras e resumos sublimes da história da dominação ocidental na África.

Mais do que tudo, no entanto, Wizard of the Crow é um livro sobre aceitação. Para que possa fazer pleno uso de seus poderes milagrosos, e com eles ajudar a mudar o destino do seu país, Kamiti precisa primeiro aceitá-los – e com eles aceitar também a sua herança africana, a sua negritude, e que, assim como os seus certificados de cursos estrangeiros, nem tudo o que vem de fora é necessariamente melhor do que a cultura ancestral do continente. Muitas vezes é apenas essa aceitação do que ele é que o põe à frente de seus antagonistas, tomados pelo desejo de serem o que não são (personificado em uma doença misteriosa que os faz repetirem continuamente a palvra “se…”), o que os leva a desconfiar de aliados e se aliar a inimigos. É muito sintomático que, ao longo do livro, apenas aqueles capazes de ter essa aceitação consigam agir com alguma lucidez em meio ao absurdo que é a vida em Aburiria.

Imagino que o livro ecoe nisso um pouco da própria trajetória do autor, que publicou seus primeiros livros em inglês com o nome ocidental James Ngũgĩ, antes de assumir o nome africano e começar a publicar seus livros no dialeto gĩkũyũ. O mesmo acontece frequentemente ao longo da história – personagens com dois nomes, um ocidental e um africano, ou que utilizam a língua inglesa para dar ênfase a certos pontos do seu discurso. Citando o próprio livro, um escravo perde primeiro seu nome, e depois sua língua.

Essa defesa na verdade ultrapassa a questão da língua, e se transforma em uma apologia da própria expressividade africana. Muito da energia narrativa do livro não vem meramente do seu surrealismo e fantasia, mas do seu modo de contar a história, com uma oralidade muito acentuada e recursos e técnicas que remetem a contadores tradicionais. O seu próprio recurso à fantasia, com discursos que se estendem por “sete dias e sete noites” ou personagens surreais com olhos do tamanho de lâmpadas e orelhas de coelho, parecem remeter a contos de fadas. Há mesmo um determinado personagem, um dos mais interessantes do livro, cuja função principal parece ser dar essa voz de contador à narrativa, enquanto espalha pelo país as histórias milagrosas do Feiticeiro do Corvo.

Vem da língua também, no entanto, um dos poucos pontos fracos do livro. A edição em inglês foi traduzida pelo próprio autor, e pode-se ver o texto um pouco truncado algumas vezes. O que incomoda mais, no entanto, e eu não sei se isso foi um problema da edição digital que adquiri na loja da Kobo, é que há muitas trocas de letras e pontuação – o Líder (“Ruler“), por exemplo, incontáveis vezes se transforma em Buler; outras tantas vezes há um L no lugar de um I, ou mesmo a pontuação é trocada de uma interrogações para um R.

Mas é um detalhe pequeno, técnico mesmo, que não me impediu de apreciar e me encantar com o livro. Alguém mais crítico talvez vá encontrar um problema maior com o assumido panafricanismo defendido pelo autor, mas no fundo, mesmo que reconheça a crítica, é um ponto que posso entender também como dentro do contexto. Para mim, está no mesmo patamar de um Cem Anos de Solidão, ou Meu Nome é Vermelho; mesmo as suas setescentas páginas no final parecem poucas, e eu me vi várias vezes adiando o final da leitura apenas porque não queria que ele acabasse. No fim, o Mumu que me perdõe, mas eu tenho um novo favorito pro próximo Nobel.

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Sob um céu de blues...

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