Perdido Street Station

large_perdido_street_station_usPerdido Street Station é um livro difícil de resenhar. Não que seja absurdamente complicado, ou qualquer coisa nessa linha; no entanto, a quantidade de elementos que ele agrega, temas sobre a qual trata e assuntos que me instiga a falar é tamanha que eu até fico um pouco receoso de esquecer alguma coisa importante. Mas vamos lá, então, porque, difícil que seja, é também um livro sobre a qual certamente vale a pena comentar.

Começando pelo autor: China Miéville, principal expoente da New Weird, autor também de The Scar, outra história ambientada no mundo de Bas-Lag, que, por acaso, eu havia lido antes apesar de na verdade ser Perdido Street o primeiro da série – parece que eu tenho algum tipo de sina de começar sempre pelos segundos volumes. E, em geral, os méritos que eu destaco neste aqui valem também para aquele: Miéville é um autor de mão cheia, que se vale de recursos variados para contar suas histórias, e tem uma abordagem sobre o gênero fantástico bastante peculiar, fugindo dos clichês e lugares comuns; não espere encontrar por aqui elfos ou anões, entre outras coisas. Mas, claro, eu não preciso falar apenas por mim – basta ver os comentários derretidos de Michael Moorcock, Neil Gaiman e outros autores consagrados já nas capas das edições pocket.

Apesar de ambos os livros se passarem no mesmo mundo, no entanto, eles não completam uma história única; há em cada um uma pequena referência aos personagens do outro, além de um pequeno detalhe de Perdido Street que coloca em andamento os acontecimentos de The Scar, mas ambos são histórias completas e independentes, que apenas dividem um cenário em comum. E este aqui é, ainda, um livro muito mais sombrio e pesado, com cenas perturbadoras e momentos que fazem a fantasia suja de um Inimigo do Mundo parecer bobinha e juvenil. Mas há, mesmo assim, alguns elementos que aproximam as duas histórias, e as tornam algo como romances irmãos – tanto The Scar como Perdido Street Station são anti-épicos de fantasia, que pegam os elementos tradicionais dos épicos fantásticos e os subvertem e modificam.

Os personagens, por exemplo, são, em ambos os livros, pessoas comuns – artistas, pesquisadores, jornalistas -, e não os reis, heróis e aventureiros tão típicos do gênero – aliás, para quem está acostumado com histórias de RPG, é especialmente marcante a forma como é retratado o grupo de aventureiros que, em dado momento, toma parte nos acontecimentos. O foco do livro, de qualquer forma, está nessa vida cotidiana de mundos de fantasia, onde a magia e criaturas fantásticas existem e são tratadas com naturalidade e rotina; poderíamos dizer que é uma espécie de fantasia realista, em oposição ao realismo fantástico de autores latino-americanos como Gabriel García Marquez e Jorge Luís Borges, com um certo pé na ficção científica. E é em meio às suas vidas fantásticas cotidianas que os personagens se envolvem com questões maiores do que podem lidar, e são obrigados a fazer escolhas e sacrifícios que trarão pesadas conseqüências para todo o mundo à sua volta.

Apesar de lidar com personagens cotidianos, no entanto, nem The Scar nem Perdido Street Station deixam de ser, em qualquer momento, épicos de ação e aventura. Ainda há, por exemplo, as viagens por pontos distantes de um mundo fantástico, com descrições deslumbradas sobre seus habitantes e situações – e não é porque em Perdido Street, principalmente, esse mundo se resume a uma cidade que ele é menos vasto e impressionante, repleto de criaturas intrigantes e maravilhosas; é significativo que o livro abra com a chegada de um personagem à metrópole de New Crobuzon e termine com a saída de outro. A fantasia dele é predominantemente urbana, de tendências góticas, e não rural e selvagem como é tão típico do gênero; é um mundo de ciências taumatúrgicas e complexas máquinas à vapor, repleto de raças fantásticas e personagens característicos. E há ainda monstros enlouquecedores na tradição de H. P. Lovecraft, um governo controlador e repressor que remete a George Orwell, e diversos outros elementos colados e encaixados com perfeição, como todo bom pastiche deve ser.

Claro, também não vou dizer que esta seja uma obra completamente livre de defeitos. Ele começa bastante devagar, apresentando calmamente personagens e situações antes de colocá-los em conflito, ainda que o crescendo de ação seja bastante acentuado, e na metade final seja difícil largá-lo para fazer qualquer outra coisa. Mais para o final há também aparições relâmpagos de certos personagens que não parecem realmente fazer muito sentido além da vontade do autor de colocá-los na história; e é possível ver algumas pontas de moralismo em muitos momentos que não condizem com o ambiente pesado e crítico que domina a maior parte do livro. Nada disso, no entanto, faz Perdido Street Station deixar de ser uma obra brilhante e magnífica, e uma leitura obrigatória para qualquer um que ache que literatura fantástica pode ser também madura e crítica, sem por isso deixar de ser envolvente e cativante.

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Sob um céu de blues...

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