O Jogo das Contas de Vidro

8577990036_2tO Jogo das Contas de Vidro é um clássico do autor alemão Herman Hesse, o livro pela qual ele ganhou o prêmio Nobel na década de 40 do século passado, lançado na recente linha de pockets da editora Record, a BestBolso. Acredito que o primeiro ponto a se destacar é a ótima qualidade das edições da série, com capa em papel especial e ilustrada, e folhas de boa qualidade (apesar de um pouco claras demais), que diferem bastante do padrão pocket sem destoar muito no preço, que ainda fica na média dos 20 reais para os lançamentos mais caros. E, aí já seguindo o padrão do formato, ela geralmente conta também com uma pequena biografia do autor, introduzindo leitores novos à sua obra.

O livro propriamente dito divide-se em três partes. A primeira é um curto estudo histórico sobre o jogo que dá nome à obra, também conhecido por Jogo de Avelórios, uma atividade lúdica e intelectual fictícia a qual muitos sábios e acadêmicos da também fictícia comunidade de Castália se dedicam profissionalmente em um futuro distante (não há menção direta a datas na narrativa, mas a contra-capa da edição diz que a ação principal se passa no século XXIII; isso não faz do livro uma história de ficção científica, no entanto). O próprio tema do jogo também é recorrente na maior parte do livro, e em geral ele parece servir de metáfora para a idéia do saber acadêmico e da erudição vazias, que são um fim em si mesmos e pouco ou nada devolvem à sociedade pelo tempo e recursos que consomem. Eu, no entanto, acabei por fazer uma relação um tanto diferente a seu respeito: pela nata profissional intelectualizada que o pratica, pela trabalhosa forma de preparo das partidas, com extensas pesquisas de referências e temas acadêmicos, e pela sua natureza pretensamente artística, me ocorreu em algum momento da leitura que o tal Jogo de Avelórios tem muito comum com a visão intelectulizada que alguns jogadores parecem ter do RPG. Assim, muitas das situações e decadências por que o jogo passa no decorrer da sua história, com o crescente afastamento do povo comum e a sua restrição a uma comunidade cada vez mais isolada e distante de jogadores, me pareceram ser plausíveis também para o RPG, se esse tipo de visão se tornar predominante. Mas aí eu já estou divagando, claro, e, na verdade, acredito que não seja difícil de fazer uma associação semelhante com qualquer tipo de entretenimento que se torne excessivamente intelectualizado, da literatura à música ao cinema e ao futebol.

De qualquer forma, a segunda parte do livro, a mais extensa e que constitui o corpo principal da narrativa, trata de uma biografia fictícia de José Servo, uma virtuose no jogo desde a infância, que em dado momento da sua vida recebe o cargo de Magister Ludi, ou Mestre do Jogo de Avelórios, o mais alto título dado a um jogador, com a função de coordenar e regular a sua prática. Os detalhes da sua vida são destrinchados desde a infância, com a entrada no universo acadêmico, passando pela descoberta e envolvimento com o jogo, e também pelos conflitos e discussões com duas figuras em especial: um colega de fora do universo acadêmico, e um historiador beneditino que conhece durante um seminário sobre o jogo em uma abadia. A esses confrontos, entre outros tantos, é dado bastante importância na história, pois é a partir deles que Servo se faz os principais questionamentos e reflexões a respeito do papel que ele e a comunidade acadêmica desempenham, bem como sobre a função do saber e do cultivo do espírito, o que gradualmente se torna o tema principal da obra. Ela é, assim, uma leitura bastante interessante e provocante sobretudo para aqueles com algum tipo de aspiração dentro desse universo, uma vez que não é difícil cair em questionamentos e dúvidas semelhantes – eu sei que eu, ao menos, já passei bastante por isso, e ainda me pego muitos vezes pensando e refletindo a respeito.

A segunda parte, enfim, acaba com a morte abrupta e um tanto inesperada do protagonista, o que também não é nenhum spoiler, já que é um fim anunciado desde bastante cedo, além de esperado da maioria das biografias. Quem espera o fim da leitura, no entanto, se deparará então com aquela que é, talvez, a melhor e mais envolvente parte do livro, na centena de páginas final: as obras póstumas de José Servo. Constituem as tais obras alguns poemas atribuídos a ele, e, principalmente, três contos que fecham definitivamente a narrativa. A partir de três personagens bastante diversos – um xamã primitivo, um ermitão cristão e um príncipe indiano -, ele explora de forma mais sucinta e direta os temas que haviam composto o livro até então, sempre com grande habilidade e clareza, além de um leve apelo apelo ao fantástico, resultando em histórias bastante cativantes e espirituosas. Um encerramento de ouro para uma grande obra, certamente.

É importante destacar, no entanto, que talvez O Jogo das Contas de Vidro não seja uma obra fácil de ser lida por qualquer um. Trata-se de um romance indiscutivelmente erudito, em parte por ser recheado de referências eruditas e se desenvolver em um universo de erudição, mas também por tratar de temas e questionamentos que dizem respeito principalmente ao mundo dos eruditos e acadêmicos. Por mais cativante e envolvente que seja a narrativa, não consigo deixar imaginar boa parte dos leitores em potencial se sentindo entediados e fatigados pelos extensos devaneios e diálogos a respeito da filosofia e natureza da História ou da função do saber acadêmico, por exemplo. De qualquer forma, para alguém que se identifique nestas questões, e saiba se conectar ao enredo e personagens do livro, é uma leitura facilmente encantadora, e talvez mesmo transformadora.

13 Respostas to “O Jogo das Contas de Vidro”


  1. 1 Ana Carolina Silveira 04/01/2011 às 21:57

    Boa resenha, deu vontade de ler o livro.

    (e sabe que não li O Lobo da Estepe pq li a sinopse, vi que tinha um tal de Teatro Mágico, a associação de ideias foi inevitável e não consegui desassociar para ler)…

    • 2 Bruno 04/01/2011 às 22:42

      Posso imaginar, heheheh. Eu comprei recentemente uma edição dupla do Hesse, que vinha dois livros dele, Sidarta e Demian. Inclusive tinha aquele esquema deles estarem impressos virados, um de um lado e o outro do outro =P Mas tá na pilha, ainda não tive pique de começar a ler…

      • 3 Ana Carolina Silveira 28/05/2011 às 01:16

        Demian é tão excelente… A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas. Sério. Li em dois dias, mesmo a profundidade não me atrapalhou, e achei maravilhoso.

        Daí comecei o Lobo na Estepe. Ando lutando com o livro desde março, estou lá pela página 60 ainda…

  2. 4 Jorge Aracaty 24/03/2011 às 22:16

    Muito legal, parabéns pelos comentários e pela sinceridade.
    201103242216 Jorge Aracaty.

  3. 5 Paulo Andrade 28/05/2011 às 00:31

    Levei uns 10 anos para ler “O Jogo das Contas de Vidro”.
    Minha dificuldade estava no excesso de referências e sutilezas que envolvem deste a teoria musical até detalhes linguísticos do latin e do sânscrito.

    É um livro fantástico – Tanto para a leitura rápida quando para uma análise em profundidade. Lamento não conhecer a lingua alemã para ler no original.

    A evolução do garoto José Servo até atingir o nível de magister é notável – Os diálogos com o mestre musicae são de arrepiar, para quem aprecia a música erudita.

    Obrigado pelar resenha.

    Vou botar o livro na lista dos próximos 10 que devo ler novamente.

  4. 6 Aldo 31/12/2011 às 20:56

    “A música não consiste apenas nas vibrações e figurações puramente mentais que abstraímos dela, mas durante séculos e séculos, consistiu principalmente em um prazer dos sentidos, no exalar da respiração, no bater do compasso, no colorido, no atrito e nas excitações da trama vocal, e no vibrar dos instrumentos em conjunto. Certamente o espírito é o principal, e certamente a descoberta de novos instrumentos, a modificação dos antigos, a introdução de novas tonalidades e de novas regras ou proibições formais e harmônicas, não passam de um gesto, de algo exterior, assim como os trajes e as modas de um povo são apenas a exterioridade, mas precisamos ter compreendido e experimentado o sabor desses símbolos de um modo sensorial, intensivamente, para compreender por meio deles uma época e um estilo. Toca-se música com as mãos, com a boca, com os pulmões, e não só com o cérebro, e quem sabe ler as notas mas não toca nenhum instrumento com perfeição, não se deve pôr a falar a respeito de música. E assim , a história da música também não se pode em absoluto compreender com uma narração abstrata sobre estilos e, por exemplo, as épocas de decadência da música não seriam explicadas, caso não se reconhecesse nelas a contínua preponderância da parte sensorial e quantitativa sobre a parte espiritual.” (HESSE, H. O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO, 1970, p.63).
    Notável contribuição para o conceito de música. Mostra sua indignação frente ao movimento modernista de Viena , a desagregação da tonalidade, o dilaceramento rítmico e a ruptura harmônica, ou seja , aquilo que ele considerava o caos. Ler conforme Viena, Berlin dos anos 1920 a 1943. No sec XXIII , apenas a suposição da existência de Castália.
    Boa Leitura!

  5. 7 Ana Terra 10/04/2012 às 16:57

    Acabei de comprá-lo, estou esperando chegar! O Lobo da Estepe li 3 vezes de tão apaixonada que fiquei… foi meu primeiro contato com hermann… em seguida devorei Demian e Sidarta… não há nada melhor para se encontrar do que encontrando com Hermann e seus vários “eus”!

  6. 8 Job Alves dos Santos 17/05/2012 às 16:09

    A turbulência da vida de Hesse se reflete em sua obra que indica uma procura constante do equilíbrio interior. Seus livros são apixonantes. Já tive a oportunidade de ler a maioria deles. O Jogo das Contas de Vidros, seu último livro é também seu ponto culminante. Talvez a síntese metafórica de todos. Uma história de vida. Excelente.

    Job Alves dos Santos

  7. 9 Maria J. Meireles 13/07/2012 às 14:17

    Acima, comentários de pessoas extremamente cultas, que me causam grande admiração. Nunca li H. Hesse, embora há muito conheça o seu nome. Agora, estou ansiosa para ter uma iniciação e me pergunto: – terei a compreensão necessária para usufruir de tal leitura? Espero que sim. Na minha idade, começo a desvendar e apreciar verdadeiramente as delícias do que se encontra no âmago de todas as artes e de tudo o que é belo. Com base no que disse Paulo Andrade (acima), que este “é um livro fantástico tanto para leitura rápida quanto para uma análise em profundidade”, certamente H. Hesse poderá tornar-se um dos meus novos interesses. (?)

  8. 10 Samuel 15/01/2013 às 01:02

    O jogo das contas de vidro é com certeza um dos livros mais significativos que já li. Não sei se pela fragilidade do momento em que eu vivia, fiz um paralelo com a relação em que eu estava vivendo; consegui me reerguer a partir dessa leitura.


  1. 1 Baudolino « Rodapé do Horizonte Trackback em 30/08/2009 às 13:01
  2. 2 Resenha – Baudolino – Inominattus Trackback em 01/09/2009 às 10:06
  3. 3 Hesse e eu │Hesse and me│ « Diários de Filosofia Trackback em 28/12/2009 às 12:15

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