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No Man’s Sky

nomanssskyUma passagem pouco lembrada de O Pequeno Príncipe relata o encontro do personagem-título com um geógrafo. O cientista está sentado em uma mesa no seu planetoide, com um grande livro à sua frente; quando o principesinho se aproxima e pergunta o que ele faz, este logo lhe responde: ele anota todas as coisas do universo.

Pode não parecer um bom agouro começar uma resenha com uma citação a um livro infantil, ainda mais uma que parece tanto com um deboche do pensamento científico, mas é difícil não se pegar pensando nessa passagem específica ao jogar No Man’s Sky. Às vezes o jogo chega a parecer uma adaptação do personagem de Saint-Éxupery, embora reimaginado com uma roupagem de ficção científica hard: você assume o papel de um explorador espacial, viajando de planeta em planeta a bordo da sua nave, sem um objetivo muito claro na maior parte do tempo. Cada planeta é criado proceduralmente, usando um complexo algoritmo desenvolvido pelos criadores, capaz de gerar, segundo se anunciou, mais de 18.000.000.000.000.000.000 (dezoito quintilhões) de mundos diferentes.

Se parece demais, é porque é mesmo: calculou-se que, mesmo que você passe apenas um segundo em cada planeta, levaria cerca de cinco bilhões de anos para explorá-los todos. Se você quiser, portanto, pode ser um jogo para explorar durante uma vida inteira – muitas vidas inteiras, aliás.

A verdade é que uma experiência tão extensiva, no entanto, não tem como ser exatamente muito profunda. Se o universo de No Man’s Sky é absurdamente vasto, no fim das contas acaba parecendo também superficial demais. No seu cerne, trata-se de um jogo de sobrevivência, focado na extração de recursos naturais para melhorar seus equipamentos e mantê-los funcionando; são esses recursos que você encontrará com mais frequência nas vastas paisagens majoritariamente desabitadas de cada planeta. Nos momentos mais extremos há até algum combate, tanto no chão como espacial, embora os controles desajeitados o incentivem a não abusar muito da sua presença; mas o grosso da sua experiência de jogo se passará cumprindo a mesma missão do geógrafo citado acima: encontrando animais, plantas e minérios criados proceduralmente, e lhes dando nomes para compartilhar com outros jogadores.

É difícil não fazer um contraste com tudo o que foi prometido durante a produção, através de trailers que mostravam mundos cheios de vida e animais gigantescos, até a possibilidade de encontrar outros jogadores no meio de suas viagens espaciais. No Man’s Sky não cumpre exatamente tudo o que prometeu, o que deixou muitos jogadores enfurecidos com o desenvolvedor Sean Murray, levando a uma taxa recorde de devoluções e queda de vendas após a semana de lançamento. Isso ainda se intensificou com a quantidade de bugs que o jogo possui, levando às vezes até a travar a partida, que tem sido reduzida devagar com patches de correção. No fim, não há como tirar toda a razão de quem preferiu devolver o jogo.

Por outro lado, dentro do que de fato foi cumprido, de alguma forma ele se tornou algo que eu não consigo parar de jogar. Há muito nele que lembra jogos como Shadow of the Colossus ou Journey – jogos tomados por espaços vazios, onde a jornada é frequentemente muito mais do que o destino. Mesmo a trilha sonora, que por sinal é ótima, tem algo que lembra eles, com pequenos arpejos dissonantes tocados entre longos compassos de silêncio, gerando um sentimento entre a estranheza e o maravilhamento.

Para não dizer que simplesmente não há um objetivo a ser cumprido, o jogo lhe apresenta logo dois deles, um mais direto e de curto prazo, e o outro um pouco mais mais vasto e demorado. O primeiro é a busca pelo Atlas, uma espécie de entidade alienígena que o guia através de sinais pelos sistemas planetários, levando-o de um ponto a outro atrás de um objetivo misterioso. E o segundo é a busca por um elusivo centro da galáxia, e um destino misterioso que pode aguardá-lo quando o fizer. A verdade, no entanto, é que aqueles que buscarem alguma linearidade e senso de objetivo, como em um jogo mais tradicional, e apenas seguir atrás dos checkpoints sem parar por um instante para observar o que se encontra ao seu redor, são justamente os que não conseguirão entender o que ele tem de mais envolvente e fascinante.

O ponto é que mesmo os detalhes mais interessantes do seu enredo só são revelados na exploração, em monólitos espalhados pelos planetas que contam a história secreta de três civilizações alienígenas e a sua relação com o Atlas e os sentinelas, máquinas sencientes que protegem os recursos naturais dos planetas. Talvez seja sobre isso que No Man’s Sky seja, realmente: a sensação de descoberta e exploração do desconhecido. A inspiração óbvia são clássicos da ficção científica hard, em especial os de Arthur C. Clarke; o jogo até escancara essa referência, ao incluir citações de livros do gênero na tela de morte enquanto você é transportado ao recomeço da partida. Se é verdade que há algo de repetitivo na geração dos planetas, que frequentemente utilizam os mesmos padrões apenas rearranjados diferentemente, vez por outra ele ainda lhe surpreenderá com a beleza inesperada de uma paisagem alienígena, entre uma atmosfera surreal, plantas e animais bizarros e um outro planeta enorme nascendo como o sol no horizonte.

No fim das contas, No Man’s Sky é um jogo inegavelmente imperfeito, que promete muito mais do que cumpre, literalmente mira nas estrelas e talvez acabe errando por alguns anos-luz de distância. Mas é um jogo que ainda consegue ser fascinante e envolvente à sua própria maneira, se você tiver as referências e interesses que o ajudem a apreciá-lo. Eu sei que posso dizer que ele certamente aperta os botões certos em mim: no meu espírito de cientista, que encontra prazer na exploração e descoberta; e na minha infância de vastas horas gastas olhando para o céu noturno com o sonho distante de ser um astronauta. Mas talvez não seja, mesmo, um jogo para todo mundo.

Furi

Furi_PosterUma fascinação meio antropológica que tenho é com o tema dos duelos individuais – “dois entram, um sai,” citando aquele clássico contemporâneo. Mais do que tudo, do apelo à virilidade e outras psicologias de bar, acho que tem a ver mesmo com a adolescência assistindo animes e filmes de artes marciais; aquele clichê de fazer toda a trama complexa pelo domínio / destruição do Japão / mundo / universo / existência se resolver magicamente em uma única batalha final entre Kenshin e Shishio, Goku e Freeza, Seiya e Saga de Gêmeos, Ryu e M. Bison/Vega. É possível resgatar esse tropo mais atrás, ainda, desde filmes chanbara sobre samurais e seus duelos de honra, que passaram para o ocidente através da sua influência sobre uma geração de diretores de faroestes (o duelo de pistoleiros ao pôr-do-sol, no fundo, é pouco mais do que uma roupagem alternativa do duelo de espadas sob o luar). Imagino que haja algo da própria história e cultura japonesas/orientais de maneira geral aí: de certas guerras históricas que marcaram a cultura japonesa, passando pela cultura do samurai desmilitarizado do período Edo, até a influência bem mais que óbvia dos clássicos da literatura wuxia de origem chinesa.

A ambientação de Furi bebe muito dessa fonte, e é claro que isso me gerou um apelo bem particular. O seu esqueleto de roteiro está lá quase como uma desculpa, uma forma de gerar o conflito entre o protagonista e cada um dos seus adversários. No papel de um fugitivo de uma prisão peculiar, você deve enfrentar diversos carcereiros que querem impedi-lo de sair; é claro que há um desenvolvimento um pouco mais complexo, incluindo a razão última para que você esteja preso em primeiro lugar, mas em última instância ele não busca ser muito mais do que isso. O clima final gerado acaba parecendo muito com certos animes cult, como M. D. Geist ou Genocyber, onde o arremedo de roteiro é mais uma desculpa para a violência, impressão que é reforçada com o design de personagens feito por Takashi Okazaki, de Afro Samurai.

Essa desculpa acaba servindo, portanto, para dar forma a um jogo de ação de características bem únicas. Aqui ele se vale também de outro clichê, mais específico dos jogos eletrônicos – os “chefões de fase.” Nos jogos do passado, por razões técnicas mesmo (em especial a memória limitada), eles acabavam sendo um elemento narrativo fundamental, que quebravam a rotina de fases intermináveis com inimigos irrelevantes para apresentar um confronto mais único, especial e, geralmente, difícil. Furi pode ser resumido basicamente em um “jogo de chefes:” não há fases intermediárias, e você apenas pula de um chefe para outro na sua jornada rumo à liberdade (quase literalmente, aliás – a transição entre as fases se dá por um portal que o transporta e muda radicalmente o cenário entre um inimigo e outro), intercalando-os com caminhadas solitárias pelas paisagens de cada cenário enquanto um certo NPC revela gradualmente a história a ser contada.

A jogabilidade é bastante simples; basicamente, você possui um botão para ataque com espada, um para disparar com a pistola de energia, um para esquiva/”dash” e um para bloqueio. É possível “carregar” os ataques e esquivas, segurando o botão por mais tempo, e há um pequeno bônus por acertar o momento exato do bloqueio, mas não há outras complicações. Uma peculiaridade que achei interessante foi a de usar o direcional analógico direito para disparar, ao invés de um dos botões: você basicamente aponta para o lado que quer atirar e o tiro sai, de forma bem intuitiva e inteligente. Também não há ganho de experiência ou novas habilidades ao longo do jogo: você possui todas as ferramentas desde o primeiro confronto, e a grande questão é basicamente como você, o jogador, aprende a usá-las para vencer os inimigos.

O diferencial, assim, está mesmo no design de cada inimigo. Cada “chefe” é dividido em várias etapas, adquirindo ao longo do combate novas formas de ataque que você deve aprender a evitar. Há uma ênfase bem grande na sua capacidade de antecipação: o jogo é repleto de dicas visuais e sonoras que permitem que você adivinhe quando o golpe será realizado, para saber quando bloquear e abrir o espaço para o contra-ataque. As etapas também são divididas entre momentos com o estágio mais aberto, dando espaço para esquivas longas e tiroteios, e outros em que a sua movimentação é limitada, para forçar o combate corpo-a-corpo. Por fim, o estágio final de cada chefe normalmente envolve um bullet hell, com o inimigo atirando tudo o que possui contra você, e você tentando o possível para esquivar enquanto busca uma abertura para acertar o ataque derradeiro.

Postos estes elementos comuns, o jogo realmente brilha nas formas com que cada inimigo se diferencia dos demais. Há inimigos mais focados no combate corporal, enquanto outros o farão desviar por quase todo o estágio disponível. Um dos confrontos mais marcantes e intensos envolve uma batalha contra uma franco-atiradora com a habilidade de se tornar invisível; você deve procurá-la pelo estágio, que é um dos mais espaçosos do jogo, enquanto evita ficar na sua linha de mira, buscando proteção entre paredes pelo caminho. Em outro a disputa é basicamente uma corrida sobre plataformas, com você avançando e desviando de tiros e ataques enquanto busca alcançar a adversária na última etapa. Mesmo visualmente há bastante variedade: um chefe é um guerreiro pseudo-viking, outro veste um traje de mergulho em um lago tóxico; há espaço para inimigos angelicais, que o tentarão a abandonar a jornada pacificamente, e mesmo o seu clássico tropo do “chefe espelhado.”

Não é um jogo fácil, é bom deixar claro. Você não o vencerá pelo cansaço, apenas por adquirir um novo ataque ultra-poderoso que vencerá o inimigo; a ênfase é muito maior na sua habilidade como jogador, em criar novas formas de usar os comandos básicos. Isso pode torná-lo bastante frustrante, uma vez que você constantemente se verá perdendo o jogo por um reflexo mal executado ou botão apertado errado. Por outro lado, ele raramente é injusto, e é bastante gratificante ser capaz de vencer finalmente um inimigo que o destruiu e humilhou por várias tentativas; chega a ser uma experiência totalmente nova passar pelas fases uma segunda vez, e ver que aquele chefe que o desafiou por horas fica na verdade ridiculamente fácil quando você já é capaz de antecipar todos os seus ataques. Há ainda a opção de diminuir a dificuldade, se você quiser apenas conhecer a história, mas o jogo praticamente o envergonha por escolhê-la: a diferença para dificuldade normal é gritante, como aumento de vidas disponíveis e diminuição das etapas dos inimigos, e você também não tem o direito de receber nenhum dos troféus do jogo.

No fim, Furi não vai ser um jogo que qualquer um conseguirá apreciar. A história minimalista e a capacidade de frustrá-lo podem afastar muitos logo nas primeiras fases. Mas ele também possui muitas qualidades: jogabilidade intensa e bem executada, inimigos marcantes e envolventes, uma trilha sonora eletrônica realmente boa, composta por nomes conhecidos do gênero. Pode valer uma experimentada, pelo menos.

Galak-Z: The Dimensional

jaquette-galak-z-pc-coverNostalgia é uma coisa engraçada. Às vezes me pego imaginando se todos os gostos que temos mesmo depois de adultos não são definidos muito cedo, e então passamos o resto da vida tentando resgatar os momentos em que os adquirimos. Como se pudéssemos parar o tempo e voltar à época em que passávamos o dia inteiro assistindo desenhos animados e se imaginando no comando de naves espaciais e robôs de combate. Existe mesmo toda uma indústria da nostalgia, que alimenta a cultura contemporânea de reboots e remakes, bem como uma infinidade de retroclones que buscam emular as séries originais que os inspiraram.

Galak-Z: The Dimensional (ou, no nome completo, Uchuu Senshi Galak-Z, o Soldado Espacial Galak-Z – e não, não tem nada a ver com chocolate branco) se fundamenta muito nesse tipo de nostalgia. Há um clima muito claro que ele quer emular no seu pastiche de roteiro e referências visuais: histórias de ficção científica de animes das décadas de 1970 e 1980. A inspiração mais óbvia é Macross/Robotech – as famosas saraivadas de mísseis, o caça espacial com turbinas propulsoras, até o almirante na ponte de comando -, mas pode-se pegar referências visuais a Gundam na versão mecha da nave (e é claro que ela se transforma em um mecha de combate); a Patrulha Estelar na USS Axelios, a sua nave-mãe; mesmo a Zillion na pistola que o modelo do personagem porta fora da nave.

Na verdade, o aspecto emulação vai bem além da narrativa, e pode-se ver que ele tenta recuperar um pouco da própria experiência de se assistir uma série vinte ou trinta anos atrás. O jogo todo é dividido em cinco “temporadas,” cada uma contendo cinco episódios (as fases propriamente ditas); e cada um deles tem mesmo um título aleatório gerado processualmente, e é “escrito” por um autor fictício. O próprio menu de pausa emula uma tela de VHS, remetendo à época em que a única forma de assistir certos animes era através de fansubbers com imagens tremidas. No fim, só senti falta mesmo é de uma abertura animada.

Claro, não deixe esse apelo ao saudosismo enganá-lo – o ponto em que o jogo realmente brilha é a jogabilidade. Novamente, ele tenta resgatar algo de clássicos do passado, baseando a sua mecânica básica em Asteroids, com o uso de botões de propulsores dianteiros e traseiros (e um terceiro lateral, usado para desviar de tiros inimigos) para movê-lo inercialmente pelo vácuo espacial. Já nas fases, ele acaba seguindo o modelo de um roguelike, com mapas gerados processualmente a cada partida e preenchidos com upgrades e power-ups, representando cavernas em asteroides ocos, cruzadores abandonados ou esconderijos de piratas espaciais. Mesmo os objetivos a serem cumpridos são definidos aleatoriamente, com exceção do último episódio de cada temporada.

Todos os elementos são executados com precisão milimétrica, e o resultado é uma experiência de jogo muito gratificante. Você logo aprende que planejamento é fundamental, usando a inércia do movimento para percorrer espaços sem ser detectado – afinal, como estamos falando de ficção científica oitentista, aqui o som se propaga no vácuo. E quando um combate ocorre, você pode esperar que as coisas fiquem bem caóticas rapidamente, em especial até você pegar o jeito dos controles.

Uma vez que comece a entender como o jogo funciona, é fácil encontrar meios criativos de vencer um grupo de inimigos: desde o combate frontal, passando por surpreendê-los por trás, até usando o próprio cenário contra eles, lançando-os contra barris explosivos ou espinhos nas paredes de asteroides. Em último caso, você pode até mesmo lançar as três facções de inimigos – tropas imperiais, piratas espaciais e insetos mecânicos – umas contra as outras, enquanto dispara em meio ao caos, destrói/captura o objetivo, e sai voando pelo outro lado da tela!

Essa jogabilidade tão bem executada é uma das coisas que evita que o jogo se torne frustrante, uma vez que ele é bastante difícil. Se você morre em uma fase, precisa reiniciá-la do começo, perdendo todos os power ups acumulados; você apenas os mantêm entre um episódio e outro, zerando-os a cada começo de temporada. A pegada é um pouco arcade, voltada para o jogo casual, e como as fases não tendem a ser muito grandes, você raramente sente que perdeu muita coisa. Mas há um modo avançado, chamado Rogue, em que você deve vencer uma temporada inteira de uma só vez (talvez como uma espécie de binge-watching?), recomeçando-a do primeiro episódio a cada morte.

Enfim, a verdade é que sou um pouco suspeito para falar aqui, marcado que sou pelas tardes assistindo Robotech na Sessão Aventura e me imaginando no comando de um caça de combate espacial. Galak-Z realmente é um jogo que te pega pela nostalgia. Mas então te prende pela jogabilidade perfeitamente executada, e os combates espaciais caóticos e incrivelmente divertidos. Para quem se interessa por aventuras espaciais e clima retrô, há muito o que gostar.

Glasshouse

glasshouseÉ curioso como um livro pode não causar um impacto muito grande em você logo após ser lido, mas acabar retornando em algum momento posterior e causar uma pequena explosão de ideias. Você o termina e pensa que não é grande coisa, mas então semanas, meses ou anos depois ele subitamente retorna ao seu pensamento, e de repente você se dá conta de que ele tinha um significado muito maior do que você percebeu inicialmente.

Glasshouse foi o primeiro livro do autor inglês Charles Stross que li, anos atrás, antes mesmo de Accelerando (seu livro mais conhecido) ou The Atrocity Archives. Na época, talvez por ter menos referências a seu respeito, achei uma ficção científica curiosa e instigante, mas acho que não consegui realmente entendê-lo na sua totalidade. Foi preciso algum tempo de maturação das minhas próprias ideias para que a sua história retornasse à minha memória, e eu pudesse entender o quão provocante ela é realmente.

O enredo se passa no século XXVII, muito depois da humanidade atingir a singularidade – alguns leitores defendem que ele divide o mesmo universo com Accelerando, mas trata-se na verdade de uma obra independente, que retoma muito dos temas daquela sem referi-la diretamente. A base da sociedade é uma extrapolação da tecnologia da informação, que transforma os próprios corpos humanos em pouco mais além de bits e bytes; você pode até mesmo fazer uma gravação de todas as informações contidas no seu corpo e então recriá-lo no caso de uma morte acidental, como se fosse um save point de um jogo eletrônico.

Outra consequência desta tecnologia é que é possível fazer alterações no próprio corpo alterando as suas linhas de código, recebendo habilidades únicas, membros extras ou o que mais você quiser. Talvez este seja o elemento que torne o livro mais provocante, e extremamente atual em vista de debates recentes da nossa sociedade: o seu próprio gênero, aqui, é apenas uma linha de código, que pode ser alterada livremente de acordo com a vontade do usuário. O protagonista, que abre o livro no gênero masculino, em um determinado momento muda-se para uma mulher para participar de um experimento social em uma estação espacial, e passa a maior parte do livro desta forma; e o mesmo acontece com outros personagens importantes.

Isso é posto em um forte contraste com a sociedade puritana norte-americana da década de 1950, cuja recriação é o objetivo do referido experimento social. É um período tratado como uma “idade das trevas” pelos personagens, não só pelas suas características intrínsecas, que o transformam rapidamente em um panóptico de pesadelo e dão ao enredo a sua característica de thriller literário, mas também porque poucos registros confiáveis a seu respeito sobreviveram – o que ecoa, aliás, certas entrevistas recentes de especialistas sobre a perenidade nem sempre lembrada de arquivos digitais. Claro, trata-se de um livro já com dez anos, então talvez algumas das respostas a que chegam neste debate pareçam datadas e não muito satisfatórias; mas em última instância, acredito que ainda valha mais pelas perguntas que faz e as ideias que provoca.

E talvez essa seja mesmo a principal função da (boa) ficção científica – não necessariamente encontrar as melhores respostas, mas pelo menos fazer as melhores perguntas. Trata-se, em todo caso, de um livro bastante instigante e provocador, como me acostumei a encontrar nos outros trabalhos do autor que li depois.

A Balada de Halo Jones

BaladaHaloJonesAntes da Liga Extraordinária, de Watchmen, de V de Vingança e todas aquelas séries pela qual Alan Moore é mais conhecido, havia Halo Jones. A Balada de Halo Jones é uma das obras-primas cult do mago dos quadrinhos britânicos, uma das histórias que o lançou ao estrelato originalmente na Inglaterra, inspirando de peças de teatro até bandas de rock, antes da consagração definitiva que viria no mercado norte-americano.

A história se passa no século 50 – um futuro tão absurdamente distante que é difícil até de ser concebido amplamente. Tudo o que conhecemos da Terra dessa época é o Aro, uma grande colônia sobre o oceano que abriga desempregados e outros excluídos sociais, sustentados por uma ajuda financeira concedida pelo governo. É um ambiente perigoso, onde uma simples visita ao mercado envolve tensão e planejamento quase a nível militar; e é onde vive Halo Jones, a personagem principal, que leva uma vida entediada e sufocante até que, após uma série de acontecimentos chocantes no seu círculo de amigos, decide fugir para longe – apenas para longe.

Um dos grandes méritos da história, principalmente nas duas primeiras partes, é pegar esse cenário futurista e caótico, com suas modas exóticas e gírias esquisitas, e tratá-lo como um ambiente absolutamente normal, habitado por pessoas normais. Halo é exatamente o tipo de garota comum que você encontraria num bar ou shopping center; possui amigos comuns, interesses comuns, paixões comuns por astros de bandas de rock. A identificação com ela e com seus dilemas, assim, é bastante profunda, e faz com que a história toda seja bastante envolvente. E se a própria Halo já não é cativante o bastante, o tempo todo encontramos novos personagens interessantes, de Rodice, a melhor amiga que fica para trás nesse desespero da protagonista por fugir para longe, até à não-entidade sem nome na qual ninguém consegue prestar atenção, responsável por alguns dos momentos mais emocionalmente intensos e dramáticos do roteiro.

A narrativa é muito influenciada pelo formato original da história, em capítulos semanais de cerca de cinco páginas cada publicadas na revista de quadrinhos de ficção científica 2000 A.D. Ela acaba lembrando bastante uma telenovela, em que o enredo é contado em passagens curtas, sempre com um cliffhanger na última cena para fisgar o leitor para o próximo episódio. Para os fãs do autor, é bastante interessante ver como ele se adapta a esta limitação, e começa a desenvolver as técnicas arrojadas de narrativa pela qual ficaria famoso no futuro.

Talvez por focar tanto nessas questões mais cotidianas, no entanto, as duas primeiras partes também são um pouco mais vagarosas, construindo sem muita pressa, em paralelo ao plano principal, elementos e situações que só serão profundamente explorados mais adiante; talvez seja um pouco difícil mesmo apreciá-las se não se estiver disposto a entrar no clima e se deixar levar pela ambientação, como eu geralmente estou. Mas então chegamos no Livro Três, e o enredo dá uma virada total no clima e na temática, quando Halo se alista para a guerra na nebulosa da Tarântula. Mais do que apenas pelo ambiente neurótico e caótico com que é representada a zona de conflito – que encontra a metáfora perfeita nos efeitos da gravidade gigante de um dos planetas sobre o tempo, fazendo meses passarem em poucos minutos -, é toda a identificação com a personagem construída nas partes anteriores que torna marcante a transformação e degradação pela qual ela passa nesse ambiente. O efeito dramático, além da óbvia analogia com a situação dos veteranos da Guerra do Vietnã, é bastante eficiente, chocando e provocando reflexões a respeito por dias depois da leitura.

Na soma final, eu pessoalmente considero A Balada de Halo Jones uma obra-prima; talvez seja mesmo a minha história preferida de Alan Moore (talvez empatado com Promethea). Ela consegue mesmo estar à frente do seu tempo em muitos aspectos – em tempos em que a representatividade dos sexos em diferentes mídias é tão discutida, é bastante contundente encontrar uma história de ficção científica em quadrinhos de três décadas atrás que tem uma mulher não-sexualizada como protagonista. O único ponto que talvez não tenha envelhecido tão bem é a arte de Ian Gibson, que não é exatamente feia, mas também parece um tanto datada comparada ao trabalho de artistas mais modernos. Mas é muito bom ver ela ganhando finalmente uma edição digna nas mãos da Mythos, com capa dura, papel especial e galeria de capas no final (apesar dela estar incompleta, apenas com as capas da 2000 A.D., sem incluir capas das edições encadernadas), visto que a edição anterior, da (felizmente) finada Pandora Books, era bastante mal produzida. Apenas senti falta das introduções do autor para cada ato da história.

Mesmo assim, recomendo muito.

After School of the Earth

after schoolAcho que todos já devem ter tido em algum momento a fantasia do sobrevivente – de ser o último sobrevivente de alguma catástrofe, e como viver nessa situação. Pra um cara tímido e solitário como eu, que tem certa dificuldade em se relacionar intimamente com outras pessoas, o mundo de repente parece um lugar muito mais simples pra se viver quando se tira essas pessoas da paisagem, ou pelo menos a maior parte delas. Alguma parte do apelo de jogos como Shadow of the Colossus e Journey, ou mesmo livros/filmes como Eu Sou A Lenda e todos os demais que seguem o tropo do apocalipse zumbi, pelo menos para mim, está justamente em oferecer a visão de um ambiente assim, um mundo onde você é livre para explorar os cenários idílicos e desoladas sem o risco de dar de cara com outro ser humano no caminho.

After School of the Earth é um mangá que explora um pouco esse tema. Dois anos após figuras misteriosas conhecidas como phantoms começarem a capturar pessoas e fazê-las desaparecer, apenas quatro indivíduos sobraram em todo o Japão (ao menos, até onde eles mesmos saibam): o garoto Masashi e as garotas Anna, Yaeko e Sanae. Os capítulos então acompanham o seu dia-a-dia no mundo desabitado, buscando mantimentos e tentando sobreviver enquanto tentam descobrir as razões que levaram à situação atual.

O tom na maior parte do tempo é o que se costuma chamar de slice of life, ou seja, aquelas “fatias da vida,” histórias de tramas mundanas como fazer um filme, cuidar de uma gripe e os relacionamentos que se desenvolvem entre os personagens a partir disso. O próprio título é bem claro como metáfora: é o período “pós-escola” (ou talvez de férias escolares) da própria Terra, em que os personagens não têm mais responsabilidades além de se divertir e aproveitar o tempo livre para o lazer.

Vez por outra há um encontro com um phantom, e então a trama maior do desaparecimento da humanidade é retomada por algumas páginas. No entanto, achei estes os momentos mais descartáveis – a história está no seu auge enquanto explora os próprios personagens e seus relacionamentos, aquilo que perderam quando os phantoms atacaram, e a solidão que sentem no mundo desabitado e como os demais ajudam a superá-la. Os phantoms acabam funcionando mais como um lembrete de que aquilo não pode durar para sempre, e eventualmente a escola voltará para acabar com a alegria das férias.

A arte é boa, com personagens de traços mais mundanos e sem os exageros de estilização que são comuns em certos mangás com pitadas de humor. Gostei especialmente da composição das capas, evocando a idéia das férias com personagens em geral em trajes de banho em um cenário desolado qualquer na capa da frente, e então referindo o tema dos desaparecimentos ao mostrar o mesmo cenário mas sem os personagens na contra-capa.

E então há a questão do fanservice. O tema é polêmico, e não quero realmente fazer um juízo de valor aqui. Goste ou não, o fato é que ele meio que se tornou um elemento da própria linguagem dos mangás, ainda mais quando a trama já parte de elementos tão característicos do gênero infame dos haréns – fato do qual a própria história é bem consciente, e chega a usar como fonte de humor em alguns momentos. Pelo menos ele não chega a ser exagerado, talvez com exceção das piadas bobas sobre os peitos das protagonistas que cansam com certa rapidez, e não chega a ser usado como justificativa única da história na maior parte do tempo. Só o que incomoda é quando você se dá conta de que a fonte desse fanservice são personagens adolescentes; você tenta relevar isso com a consciência de que, bem, o próprio protagonista também é adolescente, e é impossível evitar alguma tensão sexual entre personagens na situação em que eles se encontram (e não é como se as minhas próprias fantasias de sobrevivente fossem totalmente livres de algumas perversões), mas também não há como evitar aquela pulguinha atrás da orelha durante a leitura. Pelo menos o autor sabiamente evita cruzar certos limites, e não sensualiza a personagem mais nova do grupo, que possui apenas onze anos.

Em todo o caso, mesmo com os poréns do parágrafo anterior, há algo nesse mangá que realmente me pegou e me envolveu. Provavelmente seja a aura de solidão dos personagens e da situação em que se encontram, algo com a qual eu posso me identificar e sentir empatia.


Sob um céu de blues...

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